Qual a função do tecido adiposo multilocular?

Índice

  • 1 Características
    • 1.1 Histologia
    • 1.2 Origem
    • 1.3 Distribuição corporal
  • 2 Cadeia transportadora de elétrons e desacopladores
    • 2.1 Produção de energia na célula – cadeia respiratória e fosforilação oxidativa
    • 2.2 O que é desacoplamento?
  • 3 UDP-1 e Termogênese
    • 3.1 Visão geral
    • 3.2 Mediação nervosa e transdução de sinais
    • 3.3 Regulação da UCP-1
      • 3.3.1 Nucleotídeos de purina
      • 3.3.2 Ácidos Graxos livres
      • 3.3.3 Acil-Coa
  • 4 Conclusões
    • 4.1 Referências Bibliográficas:

“Locus” é uma palavra em latim que significa “lugar” ou “local”. O tecido adiposo multilocular é aquele que apresenta vários locais de armazenamento de lipídios em seu citoplasma, ou seja, múltiplas inclusões citoplasmáticas lipídicas. A principal função desse tecido é a produção de calor em resposta ao frio. Neste texto, o tecido adiposo multilocular será discutido, principalmente no que diz respeito à sua capacidade termogênica no corpo humano.

Características

Histologia

O tecido adiposo multilocular, ou marrom, é um tecido conectivo especializado presente na espécie humana e em alguns animais hibernantes. É mais expressivo no período fetal e em recém-nascidos, mas estudos recentes apontam a presença de tecido adiposo marrom em indivíduos adultos, mesmo que em pequena quantidade.

            Os adipócitos marrons, que constituem o tecido, são células pequenas (cerca de 60 micrômetros de diâmetro) e poligonais, envolvidas por membrana basal (produzida pelos próprios adipócitos), com núcleo esférico ligeiramente excêntrico, muitas gotículas lipídicas espalhadas pelo citoplasma e muitas mitocôndrias (com configuração das cristas mitocondriais em “prateleira”). O tecido é lobulado por septos e trabéculas de tecido conectivo propriamente dito, que carregam vasos sanguíneos e nervos do sistema nervoso autônomo eferente simpático, que inerva o tecido.

Qual a função do tecido adiposo multilocular?
Figura 1. Corte histológico corado por Hematoxilina e Eosina de tecido adiposo marrom em microscopia de luz.    Fonte: Olympus Net Image server SQL

Nota-se, na figura 1, a posição excêntrica do núcleo arredondado dos adipócitos, que está marcado em roxo (hematoxilina).  Os círculos brancos indicam as gotículas de lipídios, material esse que foi retirado durante o processamento histológico. Na figura 2, observam-se as mitocôndrias numerosas do adipócito multilocular, com cristas mitocondriais alongadas, em forma de “prateleira” (M), e as gotículas lipídicas (L).

            Macroscopicamente, o tecido adiposo multilocular apresenta uma coloração amarronzada. Isso ocorre por dois motivos: primeiro, esse tecido é altamente vascularizado, e o ferro presente na hemoglobina contribui para essa coloração; segundo, em razão da grande quantidade de mitocôndrias, que apresentam citocromos com átomos de ferro. É por esse motivo que esse tecido também é chamado de “marrom” ou “pardo”.

Origem

O tecido adiposo tem origem a partir da diferenciação de células mesenquimais, células tronco multipotentes que constituem o embrião/feto. A partir da ativação da expressão dos receptores ativados por proliferadores de peroxissoma gama (PPARgama), a célula mesenquimal se diferencia em lipoblasto, ou pré adipócito. Em seguida, mediante expressão do gene UCP-1, que codifica a proteína desacopladora 1 (da qual falaremos mais adiante), o lipoblasto se diferencia em adipócito multilocular.

Distribuição corporal

O tecido adiposo marrom ou pardo se apresenta em maior quantidade nos recém-nascidos. Isso porque, devido a sua capacidade termogênica (da qual trataremos mais adiante), ele é capaz de proteger o bebê do frio e manter sua temperatura corporal ideal. No geral, recém-nascidos ainda são incapazes de gerar uma resposta adequada de tremores, o que explica a importância do tecido adiposo multilocular nos primeiros anos de vida.   Quanto à distribuição, o tecido se localiza na região posterior do pescoço,  região interescapular, ao redor dos rins e adrenais e ao longo da aorta abdominal do recém-nascido.

 Com o passar dos anos, a porcentagem de gordura marrom diminui significativamente. Um indivíduo adulto apresenta cerca de 10% do seu tecido adiposo correspondente ao multilocular. Quanto à distribuição do tecido em adultos, ele está presente na região cervical, supraclavicular e paravertebral, e pode aumentar mediante exposição a baixas temperaturas. Curiosamente, estudos apontam que indivíduos do sexo feminino apresentam uma porcentagem maior de gordura marrom em relação aos indivíduos do sexo masculino.

Cadeia transportadora de elétrons e desacopladores

Para compreender o processo de termogênese do tecido adiposo multilocular, é necessário analisar o funcionamento da respiração celular a nível da cadeia respiratória e fosforilação oxidativa, e o conceito de desacoplamento.

Produção de energia na célula – cadeia respiratória e fosforilação oxidativa

A respiração celular é o processo no qual a célula oxida substratos energéticos e armazena essa energia química na forma de trifosfato de adenosina (ATP), com consumo de oxigênio e produção de CO2 e água.

Primeiramente, é necessária a produção de equivalentes redutores, como NADH e FADH2, que transportem elétrons para as cristas mitocondriais, onde ocorrerá a cadeia transportadora de elétrons e a fosforilação oxidativa. Esses equivalentes redutores são produzidos principalmente a partir do ciclo do ácido cítrico (ou ciclo de Krebs), que ocorre na matriz mitocondrial.

Em seguida, as moléculas aceptoras de elétrons são oxidadas na cadeia transportadora de elétrons. Esse processo envolve 4 complexos proteicos presentes na membrana interna da mitocôndria, que são responsáveis por transportar os elétrons recebidos até o O2 (aceptor final), e utilizar a energia redutora para bombear prótons da matriz mitocondrial para o espaço intermembrana. Esse bombeamento cria uma diferença de distribuição de carga elétrica entre os dois meios, de cerca de 180 mV, assim como uma diferença de potencial hidrogeniônico, de cerca de 0,25 unidades de pH. Isso gera um gradiente eletroquímico, também chamado de força próton motriz. Ou seja, a energia obtida da oxidação de substratos energéticos está, agora, armazenada nesse gradiente de concentração elétrico entre a matriz mitocondrial e o espaço intermembrana.

Em mitocôndrias normais, a energia do gradiente eletroquímico é convertida em ATP pela enzima ATP-sintase. Essa enzima também está presente na membrana mitocondrial interna, e é por ela que os prótons irão migrar de volta para a matriz. Esse fluxo a favor do gradiente de concentração carrega energia, e a ATP-sintase utiliza essa energia para formar moléculas de ATP. Essa é a fosforilação oxidativa.

O que é desacoplamento?

Pode-se dizer que a cadeia transportadora de elétrons e a fosforilação oxidativa são processos acoplados, ou interdependentes. O aumento ou redução de algum desses processos tem o mesmo efeito sobre o outro. Por exemplo, a diminuição da razão ATP/ADP da célula aumenta a atividade da ATP-sintase e, portanto, da fosforilação oxidativa. Como consequência, a velocidade do transporte de elétrons pela cadeia respiratória também aumentará, de modo a manter o gradiente eletroquímico de acordo com a demanda por energia.

O desacoplamento ocorre quando esses processos param de funcionar de forma coordenada. O mecanismo de desacoplamento se baseia em impedir a criação do gradiente de prótons. Assim, a velocidade da cadeia transportadora de elétrons não será mais regulada pela fosforilação oxidativa, e vice-versa.

Um importante desacoplador endógeno, presente no tecido adiposo multilocular, responsável pela sua capacidade termogênica é a uncoupling protein 1, ou proteína desacopladora 1, ou UCP-1 (em compêndios mais antigos, chamada de termogenina). Mas como ela é capaz de gerar calor através do desacoplamento?

UDP-1 e Termogênese

Visão geral

A UDP-1 é uma proteína muito expressa em adipócitos multiloculares, e está presente na membrana mitocondrial interna das várias mitocôndrias desses tipos celulares. Ela funciona como um canal através do qual os prótons atravessam de volta do espaço intermembrana para a matriz. Dessa forma, a cadeia respiratória e a fosforilação oxidativa são desacopladas. A velocidade do fluxo de elétrons não é mais regulada pela disponibilidade de ADP e Pi, o bombeamento de prótons permanece numa taxa elevada, e a energia do gradiente eletroquímico, ao invés de ser convertida em ATP, é dissipada pelo canal da UCP-1 na forma de calor.

Não é à toa que o tecido adiposo multilocular apresenta muitas mitocôndrias. É justamente para tornar a geração de calor mais eficiente. Além disso, como a taxa de respiração celular é intensa, o fornecimento de O2 para a cadeia transportadora de elétrons deve ser feito, também, em uma taxa elevada. Para compensar essa necessidade, o tecido adiposo marrom apresenta-se altamente vascularizado, como já foi dito anteriormente.

Qual a função do tecido adiposo multilocular?
Figura 4: representação esquemática do funcionamento da UCP-1
na cadeia transportadora de elétrons. O fluxo de prótons pela
ATP-sintase está inibido (linha tracejada). Ao invés disso, os
prótons fluem pela UDP-1, liberando calor. Fonte: Bioquímica
Ilustrada de Harper – 31.ed

Mediação nervosa e transdução de sinais

O tecido adiposo multilocular é inervado pelo sistema nervoso autônomo simpático, e a resposta ao frio é mediada pelo neurotransmissor norepinefrina. A via de regulação inicia-se no quiasma pré-óptico, que recebe informações do núcleo supraquiasmático a respeito da temperatura corporal e sanguínea. O sinal do quiasma pré-óptico vai ao Núcleo Hipotalâmico Ventromedial, onde é processado e, em seguida, caminha até o nervo pré-ganglionar, liberando acetilcolina na cadeia de nervos simpáticos. O sinal continua nas fibras pós ganglionares para a liberação de norepinefrina.

A norepinefrina ativa os receptores beta3-adrenérgicos da membrana do adipócito marrom, ativando a via do AMP cíclico. Essa via tem como resultado a fosforilação da Lipase Hormônio Sensível e da Perilipina, duas enzimas que, quando fosforiladas, são responsáveis pela degradação dos Triacilgliceróis em ácidos graxos e glicerol.

Os ácidos graxos, agora livres no citoplasma do adipócito, serão utilizados como substrato energético. Eles passarão por um processo chamado de  beta-oxidação, que ocorre na matriz mitocondrial, e que converte os ácidos graxos em moléculas de acetil-CoA. Essas moléculas entrarão no ciclo do ácido cítrico para a formação de aceptores de elétrons reduzidos (NADH e FADH2). Por fim, esses aceptores fornecem elétrons para a cadeia respiratória, de modo a formar o gradiente eletroquímico, cuja energia será dissipada na forma de calor pela UCP-1.

Regulação da UCP-1

O controle do transporte de prótons pela UCP-1 ainda apresenta algumas divergências acadêmicas. Nesse texto, serão tratadas algumas das hipóteses de regulação.

Nucleotídeos de purina

           Foi identificado que derivados de adenina e guanina, como difosfato e trifosfato de guanina (GDP e GTP), e difosfato e trifosfato de adenosina (ADP e ATP), podem ligar-se com alta afinidade à UDP-1, inibindo a permeabilidade de membrana e reacoplando a respiração à fosforilação

Ácidos Graxos livres

                       Alguns estudiosos apontam que os ácidos graxos livres podem ativar o canal da UCP-1. O mecanismo de ativação ainda não foi confirmado, mas há hipóteses de que eles podem atuar como efetores alostéricos, ou cofatores, ou mesmo como carreadores de prótons.

Acil-Coa

                       Essa molécula é resultante da ativação dos ácidos graxos para a beta oxidação. Uma enzima chamada Acil-Coa sintetase adiciona uma molécula de coenzima A ao grupo hidroxila do ácido, formando uma ligação tioéster. Essa molécula é capaz de ativar alostericamente o canal da UCP-1.

Qual a função do tecido adiposo multilocular?
Figura 5: representação esquemática do mecanismo
 de indução da resposta ao frio a partir da norepinefrina.
Os nucleotídeos de purina são encarregados de inibir
 a ação da UCP-1 quando não há estímulo.
Fonte: Princípios de Bioquímica de Lehninger – 7.ed.

Conclusões

            O tecido adiposo multilocular, pardo ou marrom é um tecido conjuntivo especializado do corpo humano, cuja função principal é a termogênese, ou seja, a produção de calor. Esse processo é resultado do desacoplamento da cadeia respiratória e da fosforilação oxidativa, pela proteína uncoupling protein 1 (UCP-1), nas inúmeras mitocôndrias que os adipócitos multiloculares apresentam. O conhecimento sobre o tecido adiposo marrom, assim como seu mecanismo bioquímico e fisiológico de produção de calor, é essencial para entender a complexidade do organismo humano e seus métodos únicos e naturais de se manter funcionante.

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Autor: Eduardo Moreira

Intagram: @dumoreira013

Qual a função do tecido adiposo multilocular?

O texto acima é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Referências Bibliográficas:

TAVARES, Vladimir; HIRATA, Mario Hiroyuki; HIRATA, Rosario D. Crespo. Receptor ativado por proliferadores de peroxissoma gama (Ppargama): estudo molecular na homeostase da glicose, metabolismo de lipídeos e abordagem terapêutica. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, v. 51, n. 4, p. 526-533, 2007.

NELSON, David L.; COX, Michael M.. Princípios de Bioquímica de Lehninger – 7.ed.. Artmed Editora, v. 1, f. 656, 2018. 1312 p.

RODWELL, Victor W. et al. Bioquímica Ilustrada de Harper – 31.ed.. McGraw Hill Brasil, v. 3, f. 400, 2021. 800 p.

JUNQUEIRA, L.C.U. & CARNEIRO, J. Histologia Básica. 11ª Ed. Rio

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Qual a função do tecido adiposo unilocular e multilocular?

Enquanto no tecido adiposo unilocular temos células grandes, no tecido adiposo multilocular, essas são pequenas e de formato poligonal. O tecido adiposo multilocular é especializado na produção de calor, estando relacionado, portanto, com a manutenção da temperatura corpórea.

Quais as principais funções do tecido adiposo multilocular?

O tecido adiposo multilocular é encontrado, em maior quantidade, em recém-nascidos e em animais que hibernam. Sua principal função é a produção de calor, ajudando, desse modo, na manutenção da temperatura. Nos animais que hibernam, esse tecido é comumente chamado de glândula hibernante.

Qual é a classificação do tecido adiposo multilocular?

O tecido adiposo multilocular, também pode ser chamado de marrom/pardo e possui várias gotículas de gordura em cada adipócito. Ele é característico de recém nascidos e animais que hibernam, pois sua principal função é manter o calor corporal. Ao longo dos anos esse tipo de tecido adiposo vai desaparecendo.

Onde se encontra tecido adiposo multilocular?

Na espécie humana há tecido adiposo multilocular durante a vida fetal, localizado nas regiões das cinturas pélvica e escapular. Sua maior parte desaparece lentamente após o nascimento. Em animais que hibernam este tecido tem grande importância durante a etapa de saída da hibernação.