Descrição Geral
Definições
- Dor:
- De acordo com a International Association for the Study of Pain (IASP), a dor é “uma experiência sensorial e emocional, desagradável, associada a dano tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de dano”.
- Sofrimento ou angústia mental
- Nocicepção:
- Estímulo nocivo (ou tóxico) ou estímulo que pode tornar-se nocivo com a exposição prolongada
- Processo através do qual os recetores periféricos da dor transmitem ao SNC informações sobre o dano tecidual atual (ou potencial) como sendo dor
- Nociceptor: recetor no órgão-alvo que deteta alterações bioquímicas associadas a dano tecidual atual ou potencial
- Hiperalgesia: resposta exagerada a estímulos nocivos
- Alodinia: sensação de dor em resposta a um estímulo inócuo
Tipos de dor
- Dor fisiológica (aguda)
- Dor patológica (crónica)
- Nocicetiva:
- Dor em resposta a estímulos reais ou potencialmente prejudiciais
- Frequentemente descrita como dor localizada
- Agravada pelo movimento
- Neuropática:
- Lesão ou comprometimento do nervo, está associada à alodinia
- Muitas vezes descrita como uma irradiação ou dor lancinante
- Independente do movimento
Tabela: Diferenças entre dor aguda e crónica
Podem variar consistentemente com o grau de gravidade da dor | Sem alterações ou com alterações mínimas |
Útil | Inibe a função e não é útil |
Curto prazo; melhoria com a cicatrização da lesão | Mantém-se presente apesar da ausência de lesão em curso |
Aumenta a probabilidade de dor crónica quando presente na fase aguda | Etiologia comum da dor crónica |
Frequentemente encontrada durante o estado de dor aguda | Frequentemente apresenta-se com alguma dor neuropática |
Diferenças nos tipos de dor e as suas etiologias mais comuns
CRPS, pela sigla em inglês: síndrome de dor regional complexa
Embriologia
- 7 semanas: desenvolvimento de terminações nervosas livres
- 18 semanas: respostas hormonais de stress à dor
- 23-30 semanas: projeções talâmicas no córtex somatossensitivo
- 26 semanas: reações hemodinâmicas e comportamentais a estímulos dolorosos
Função da dor
- Medida adaptativa para minimizar e evitar a ampliação dos danos teciduais
- Respostas evocadas:
- Fuga do estímulo nocivo (e.g., reflexos espinhais)
- Movimentos antecipatórios (e.g., movimento dos braços para proteger os olhos e o rosto, esbracejar antes de um impacto iminente)
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Anatomia e Fisiologia das Vias da Dor
Fases
- Transdução
- Transmissão
- Modulação
- Perceção central
Processo de nocicepção
- Estímulos térmicos, mecânicos ou químicos de intensidade nociva entram em contacto com um tecido.
- O tecido lesionado liberta mediadores inflamatórios, incluindo:
- Globulina
- Proteínas cinases
- Ácido araquidónico
- Histamina
- Fator de crescimento do nervo (NGF, pela sigla em inglês)
- Substância P (SP)
- Peptídeo relacionado com o gene da calcitonina (CGRP, pela sigla em inglês)
- Estes mediadores estimulam os canais transdutores (semelhantes aos canais dependentes de voltagem) → estimulam os potenciais do recetor (transdução)
- Os potenciais dos recetores evocam potenciais de ação nas fibras nervosas sensitivas.
- Os potenciais de ação são transportados como sinais aferentes via fibras nervosas sensitivas, para os gânglios da raiz dorsal e para o corno dorsal da medula espinhal (transmissão).
- A partir daí, o sinal é transmitido pela medula espinhal até ao tronco cerebral e ao tálamo, onde pode ocorrer o processamento (modulação).
- O sinal chega, finalmente, ao córtex
somatossensitivo (perceção central). A interpretação biopsicossocial da experiência dolorosa envolve também:
- Amígdala: envolvida na resposta emocional e afetiva à dor e na modulação da dor
- Hipotálamo: envolvido na resposta neuroendócrina da corticotropina à dor
- Substância cinzenta periaquedutal: centro chave para a modulação da dor, envolvida em comportamentos de dor aversivos e defensivos
- Gânglios da base: envolvidos nos aspetos cognitivos, afetivos e discriminativos (capacidade de localizar a aferência sensitiva) da perceção da dor
- Córtex cerebral: local final de perceção da dor, potencial para ativação consciente de vias descendentes e modulação da dor
Modulação da dor
- Os sinais de dor são modulados (redução da transmissão de aferentes nociceptivos) por peptídeos opioides endógenos (e.g., endorfinas, dinorfinas, encefalinas) na:
- Medula espinhal
- Gânglios da raiz dorsal
- Substância cinzenta periaquedutal do mesencéfalo (PAG, pela sigla em inglês)
- Este mecanismo ocorre nas vias “descendentes” (“inibitórias”).
- Mecanismos de ação dos peptídeos opioides endógenos:
- Ativação dos recetores opioides mu, kappa e delta → diminuição do influxo pré-sináptico de Ca2+ → diminuição da libertação de glutamato e SP
- Aumento da condutância ao K+ nos neurónios do corno dorsal
- Outros moduladores incluem:
- Norepinefrina (NE)
- Glicina
- GABA
Diagrama a demonstrar a via de transdução, transmissão, modulação e perceção central da dor
Imagem por Lecturio.Tipos de fibras nervosas aferentes
Fibras tipo A:
- Grandes e mielinizadas → de condução rápida
- A-alfa: recetores primários do fuso muscular e do órgão tendinoso de Golgi
- A-beta:
- Axónio aferente com o maior diâmetro
- Recetores secundários do fuso muscular que contribuem para mecanorrecetores cutâneos.
- Percecionar o toque leve e/ou estímulos em movimento
- A-delta:
- Terminações nervosas livres que conduzem estímulos relacionados com a pressão e temperatura.
- Velocidade de condução de aproximadamente 20 m/s
- A-gama: neurónios motores que controlam a ativação intrínseca do fuso muscular.
Fibras tipo B:
- Fibras finamente mielinizadas de tamanho médio
- Responsáveis pelas informações autonómicas
Fibras tipo C:
- Fibras lentas de nocicetores não mielinizados
- Velocidade de condução de aproximadamente 2 m/s
- Respondem a combinações de estímulos térmicos, mecânicos e químicos
Lâminas de Rexed
- Mapa somatossensorial e motor organizado e disposto na medula espinhal (principalmente no corno dorsal) de cada segmento espinhal
- Os diferentes tipos de nervos sensitivos (e alguns motores, lâminas VI-IX) e as informações correspondentes que carregam são organizados de modo a realizarem sinapse em territórios específicos, no corno dorsal, conhecidos como lâminas.
- Existem 10 lâminas, designadas I–X:
- Lâmina I: recebe e retransmite estímulos nocivos e térmicos
- Lâmina II: recebe e retransmite estímulos físicos nocivos e não nocivos e está envolvida na modulação da dor
- Lâmina III: recebe e retransmite estímulos físicos relacionados com o toque leve e proprioceção
- Lâmina IV: recebe e retransmite estímulos físicos não nocivos
- Lâmina V: recebe e retransmite estímulos nocivos e está envolvida na modulação da dor
- Lâmina VI: recebe e transmite informações envolvidas nos reflexos espinhais e na proprioceção
- Lâmina VII: recebe e transmite informações relacionadas à função visceral e estímulos nocivos
- Lâmina VIII: recebe e retransmite informações relacionadas com a modulação do movimento voluntário
- Lâmina IX: recebe e retransmite informações relacionadas com o controlo motor (contração muscular generalizada)
- Lâmina X: localizada centralmente (comissura cinzenta central); onde os neurónios sensitivos e motores se cruzam antes de ascender/descer e onde ocorre algum grau de cross-talk interneuronal (modulação)
- Há também núcleos associados, que não se enquadram no âmbito desta discussão.
- Sob condições fisiológicas, a informação sensitiva e motora (e a modulação a esta associada) é transmitida dentro e entre as lâminas, de uma forma altamente organizada e previsível.
- Sob condições patológicas (e.g., aferências nociceptivas persistentes, dano neurológico), pode existir um rearranjo anormal de aferências sensitivas que contribuem para o desenvolvimento de sensibilização central e outras manifestações de dor crónica:
- As aferências neuronais nociceptivas encaminham-se para lâminas dedicadas a estímulos não nocivos ou motores.
- As aferências motoras ou não nocivas encaminham-se para lâminas dedicadas a estímulos nociceptivos.
- Leva à perceção anormal de dor em resposta a estímulos ou movimentos normalmente não nocivos:
- Alodinia
- Hipersensibilidade
- Hiperalgesia
- Parestesia/disestesia
- Desenvolvimento de dor neuropática numa área desprovida de dano nervoso
- Expansão do campo recetivo além do território normal de um nervo periférico
- Dor espontânea na ausência de estímulos nocivos ou dano tecidual
- Podem-se desenvolver reflexos interneuronais anormais:
- A ativação muscular ou movimento articular (estímulos motores, estímulos propriocetivos) desencadeia estímulos dolorosos.
- Estímulos dolorosos podem desencadear atividade motora anormal (e.g., hipertonicidade, espasmo muscular).
- Estímulos dolorosos podem desencadear
fenómenos autonómicos ou entéricos e vice-versa. Por exemplo:
- Náusea em resposta a um estímulo doloroso
- Sudorese e/ou piloereção em resposta a um estímulo doloroso
- Vasoconstrição numa área exposta a um estímulo doloroso (ou seja, CRPS)
Corte transversal da medula espinhal a demonstrar as lâminas de Rexed (esquerda) e os núcleos associados (direita)
Imagem por Lecturio.Vias ascendentes e descendentes da dor
Via ascendente da dor:
- Nociceptores:
- Recetores na periferia que respondem ao calor, frio intenso, distorção mecânica, mudanças no pH e irritantes químicos (e.g., ADP, bradicinina, serotonina, histamina)
- Condução nervosa aferente → neurónio de 1ª ordem
- Corpos celulares dos neurónios:
- Os corpos celulares dos neurónios de 1ª ordem estão localizados no corno dorsal e nos gânglios da raiz dorsal da substância cinzenta espinhal (ou gânglio do trigémeo)
- O glutamato, a SP e o CGRP são os principais neurotransmissores libertados pelos aferentes primários
- Neurónio de 2ª ordem:
- Após a sinapse na medula espinhal, os neurónios de 1ª ordem projetam-se para neurónios de 2ª ordem.
- Os neurónios de 2ª ordem cruzam a linha média na comissura branca anterior
- Estes neurónios ascendem, então, ao tálamo através do trato espinotalâmico contralateral, transportando as sensações de dor e temperatura.
- Tálamo:
- Do tálamo, o estímulo é enviado ao córtex cerebral somatossensitivo através de fibras que correm no ramo posterior da cápsula interna
- Outros neurónios talâmicos projetam-se para áreas do córtex associadas a respostas emocionais (e.g., giro cingulado, córtex insular)
Via descendente da dor:
O hipotálamo e as regiões corticais processam estímulos dolorosos e sinalizam a libertação de mediadores inibitórios e hormonas (e.g. opioides, peptídeos, norepinefrina, glicina e GABA) que suprimem a dor de forma efetiva → modulação da dor.
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Dor Visceral
Características
- Mal localizada
- Desagradável
- Associada a náuseas e sintomas autonómicos
Processo de nocicepção
- Os nociceptores nas paredes das
vísceras são sensíveis à distensão e inflamação do órgão → são evocados recetores e potenciais de ação:
- A dor muda de intensidade quando produzida em estruturas peristálticas (e.g., intestinos).
- A dor pode ser aguda aquando da contração e rude durante o relaxamento.
- Os potenciais de ação são transportados por fibras aferentes via nervos simpáticos e parassimpáticos do plexo mioentérico.
- O sinal é transmitido para os corpos neuronais, nos gânglios dos nervos dorsais (e cranianos) → o sinal continua para o corno dorsal da medula espinhal.
- Teoria da convergência-projeção: fibras aferentes viscerais convergem com fibras aferentes somáticas, nos mesmos corpos neuronais do corno dorsal → o sinal é enviado através da medula espinhal para o tálamo e o córtex somatossensitivo.
- A dor é percebida como proveniente de estruturas somáticas correspondentes às fibras somáticas, que convergiram com as fibras viscerais (dor referida).
- Por
exemplo:
- A dor no enfarte agudo do miocárdico é referida ao membro superior esquerdo.
- A dor causada pela distensão ureteral é referida ao testículo correspondente nos homens.
- Também podem existir manifestações motoras/sudomotoras em estruturas somáticas, relacionadas com o segmento espinhal correspondente, mediadas por interneurónios espinhais.
- Na literatura osteopática, esta manifestação é denominada facilitação ou reflexo viscerossomático.
- Exemplo: espasmo muscular, restrição fascial na musculatura paraespinhal a um nível espinhal a corresponder a disfunção visceral
- Por
exemplo:
Diagrama que ilustra a teoria da convergência-projeção da dor visceral
Imagem por Lecturio.Sensibilização Periférica versus Central
Sensibilização periférica
- Resulta de nocicepção periférica persistente ou repetitiva (inflamação tradicional) ou lesão nervosa
- A hiperestimulação ou dano ao neurónio de 1ª ordem altera os traçados elétricos e a elaboração de neurotransmissores (e.g., SP, CGRP, NGF).
- A inflamação e a lesão inicial combinam-se para criar uma sensação aprimorada de dor e perpetua a
resposta à mesma:
- A dor neuropática pode desenvolver-se numa área desprovida de lesão nervosa.
- Pode manifestar-se com hipersensibilidade, hiperalgesia e alodinia.
Sensibilização central
- Fenómeno que se pensa que ocorre centralmente, talvez ao nível das lâminas de Rexed
- Geralmente, é uma progressão da sensibilização periférica, mas também pode ser produzida sem qualquer estímulo periférico conhecido ou sem um insulto ao SNC.
- Sensibilização central segmentar: alterações neuroplásticas que ocorrem em resposta a uma lesão física, que causa ativação constante da via da dor (ou seja, progressão da sensibilização central)
- Sensibilização central suprassegmental: alterações neuroplásticas em locais cerebrais da via da dor com ou sem lesões conhecidas (do SNC).
- Frequentemente, ocorre no contexto de insultos ao SNC (e.g., acidente vascular cerebral, lesão na medula espinhal)
- Frequentemente, associada a
condições psiquiátricas:
- Perturbações de ansiedade
- Distúrbios do humor (e.g., depressão)
- Distúrbios do sono
- Disútrbio de somatização
- Pode ocorrer como um distúrbio primário (e.g., fibromialgia)
Mecanismos de sensibilização da dor periférica e central
A Teoria do Portão da Dor
- Existe um “portão” sensorial fisiológico ao nível do corno dorsal, em qualquer segmento espinhal (ou
núcleo do nervo craniano).
- Apenas uma parte da informação sensorial pode passar pelo portão a qualquer momento.
- A passagem preferencial através do portão é concedida aos sinais sensitivos provenientes de fibras nervosas maiores, mais fortemente mielinizadas e de condução mais rápida.
- Um portão aberto é um corno dorsal a receber um estímulo nocivo (doloroso) isolado.
- Um portão fechado é um corno dorsal que recebe estímulos físicos (não nocivos) simultâneos.
- Os sinais de dor recebidos são, em grande parte, conduzidos por fibras A-delta (de condução relativamente lenta) e tipo C (de condução lenta), enquanto que as fibras A-alfa e A-beta (de condução rápida) transportam estímulos físicos não nocivos (e.g., movimento, vibração, pressão, temperatura, estimulação elétrica).
- Esta distinção torna-se muito importante quando estímulos dolorosos (nocivos) e outros estímulos físicos (não nocivos) são aplicados simultaneamente no campo receptivo de um nervo periférico.
- Estímulos físicos não nocivos (conduzidos por fibras mais rápidas, maiores e mais fortemente mielinizadas) recebem passagem preferencial pelo portão, diminuindo ou eliminando o estímulo doloroso (nocivo) que chega.
- Os humanos, sem se aperceberem, aplicam este conceito diariamente para aliviar insultos nocivos triviais. Por exemplo:
- Coçar (estímulo físico não nocivo) uma picada de mosquito (estímulo químico nocivo) para aliviar o prurido (dor)
- Esfregar (estímulo físico não nocivo) o cotovelo (“funny bone” (“osso engraçado”)) depois de embater no batente de uma porta (estímulo físico nocivo) para aliviar a dor
- A “equipa da dor” aplica propositadamente este conceito para tratar a dor de forma não farmacológica:
- Massagem
- Fisioterapia
- Estimulação do nervo periférico
- Estimulação da medula espinhal
Relevância Clinica
- Dor crónica: dor que se estende além do período esperado de cura (> 3 meses), com uma patologia de base insuficiente para explicar a presença ou extensão da dor. A dor crónica pode interromper o sono, as atividades diárias e a função psicossocial. Esta é frequentemente observada em indivíduos com neoplasias e requer uma abordagem terapêutica muito personalizada.
- Controlo da dor: Hoje, os profissionais médicos têm inúmeras opções – farmacológicas e não farmacológicas – para aliviar a dor. A estratégia de tratamento especificamente seguida depende do tipo de dor, das circunstâncias, da perspetiva e da condição subjacente do indivíduo.
- Síndrome da dor regional complexa (SDRC, pela sigla em inglês): condição caracterizada por dor excruciante, desproporcional ao evento desencadeante, e acompanhada de alodinia, alterações da temperatura, descoloração da pele e edema, entre outros achados. Esta síndrome afeta mais frequentemente as mulheres do que os homens e muitas vezes é incitada por trauma. O diagnóstico é clínico, apoiado pelo Consenso de Budapeste. A síndrome de dor regional complexa está intimamente relacionada com o litígio de questões relacionadas com o trabalho, o que exige cuidados especiais por parte do médico.
Referências
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- House, S. A. (2021). Pain. In: Kellerman, R. D., Rakel, D. P. (Eds.), Conn’s Current Therapy. Elsevier, pp. 32–39.
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- Mendell, L.M. (2014). Constructing and deconstructing the gate theory of pain. Pain 155:210–216. //doi.org/10.1016/j.pain.2013.12.010