O que eram os poros que Robert Hooke observou

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

105

Robert Hooke e a pesquisa microscópica

dos seres vivos

Roberto de Andrade Martins

*

Resumo: O livro Micrographia, publicado em 1665 por Robert Hooke (1635-1703),

foi uma das primeiras obras onde o microscópio foi aplicado ao estudo dos seres

vivos. Alguns desenhos minuciosos desse livro se tornaram famosos, como o de

uma pulga e o de um piolho. Não há dúvidas de que a microscopia introduziu um

novo modo de ver o mundo; mas qual foi, exatamente, a contribuição desses

estudos de Hooke? Por um lado, a Micrographia apresenta descrições detalhadas de

seres vivos, acompanhadas de desenhos, permitindo conhecer melhor alguns as-

pectos microscópicos dos animais e das plantas. Porém, muito mais do que

isso, nessa obra. O trabalho de Hooke não foi simplesmente um conjunto de

observações ao acaso. Ele era um pesquisador experiente, tendo trabalhado com

Robert Boyle e outros importantes cientistas durante muitos anos. Sabia fazer

perguntas e respondê-las através da experimentação, e foi essa técnica experimen-

tal que ele trouxe para o estudo microscópico dos seres vivos.

Palavras-chave: história da biologia; Hooke, Robert; microscopia

Robert Hooke and the microscopic investigation of living beings

Abstract: Roberto Hooke (1635-1703) published in 1665 his Micrographia, one of

the first works in which the microscope was applied to the study of living beings.

Some of the detailed drawings of this book became famous, such as those of a flea

and of a louse. It is evident that the use of microscopy introduced a new way of

seeing the world, but what exactly was the contribution of Hooke’s researches?

On one hand, Micrographia presents detailed descriptions of living beings, together

with drawings, allowing us to become acquainted with some microscopic features

of animals and plants. However, there was much more than plain descriptions in

this work. Hooke’s work was not a mere collection of chance observations. He

was an expert researcher, having worked with Robert Boyle and other important

* Grupo de História da Ciência e Ensino, Universidade Estadual da Paraíba (UEPB); Grupo

de História, Teoria e Ensino de Ciências (GHTC), Universidade de São Paulo (USP). E-

mail:

106

scientists for several years. He knew how to ask questions and to answer them by

experiments, and he brought this experimental technique to the microscopic study

of living beings.

Key-words: history of biology; Hooke, Robert; microscopy

1 INTRODUÇÃO

Robert Hooke (1635-1703) foi um importante filósofo natural que deu

contribuições a diversas áreas do conhecimento. Suas contribuições mais

conhecidas são no campo da física, mas seus estudos microscópicos sobre

seres vivos também foram muito importantes. Embora Hooke não esteja

entre os cientistas mais populares, todos os que estudaram detalhada-

mente suas contribuições ficaram impressionados. Edward Andrade o

considerava “Provavelmente o homem mais inventivo que já viveu até

hoje, e um dos mais hábeis experimentadores” (Andrade, 1950, p. 153).

Este artigo apresentará alguns desses aspectos de sua obra, contidos no

seu livro Micrographia, publicado em 1665. Pode-se afirmar que, nessa obra,

Hooke se destacou pelo cuidado das descrições e desenhos, pela variedade

de objetos naturais estudados e, principalmente, pelo seu esforço em com-

preender a função de cada parte dos pequenos seres vivos, fazendo não

apenas observações mas também experimentos, de forma sistemática. Para

isso, utilizou sua vasta experiência de experimentação, desenvolvida em sua

colaboração com importantes pesquisadores da época, como Robert Boyle.

2 INFORMAÇÕES BIOGRÁFICAS

Robert Hooke nasceu em 18 de Julho de 1635 na vila de Freshwater,

que fica na ilha de Wight, no Canal da Mancha

1

. Seu pai era o cura da Igre-

ja de Todos os Santos, nessa vila. Quando criança, Hooke era fraco e do-

entio. Gostava de se dedicar à construção de brinquedos e dispositivos

mecânicos, tentando reproduzir tudo o que via. “Ele também tinha uma

grande fascinação por desenho, tendo com aproximadamente a mesma

idade copiado com uma pena diversas gravuras que o sr. Hoskins (filho do

mestre da famosa Hoskins Cowpers) se admirou por alguém que não tinha

sido instruído pudesse imitá-las tão bem” (Waller, 1705, p. ii).

1 Uma das principais fontes de informação sobre a vida de Hooke é a biografia escrita por

Richard Waller (1705), que o conheceu pessoalmente e utilizou seus manuscritos para

coletar informações sobre o pesquisador.

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O pai de Hooke morreu em outubro de 1648, quando este tinha 13 a-

nos de idade, deixando-lhe uma herança pequena aproximadamente 40

libras (Chapman, 1996, p. 242). Por causa de sua facilidade artística, Hooke

foi então enviado para Londres para trabalhar como aprendiz de Peter

Lely, o principal pintor de retratos de aristocratas, na época. Não conse-

guiu permanecer muito tempo com ele porque o cheiro das tintas a óleo

aumentava muito as dores de cabeça que tinha desde criança (Waller, 1705,

p. iii). Hooke desistiu desse trabalho e foi então aceito como estudante na

Westminster School, dirigida por Richard Busby, que o acolheu bondosamen-

te e que lhe permitiu viver em sua residência (Chapman, 1996, p. 242).

Aprendeu idiomas clássicos (latim e grego) e um pouco de hebraico e al-

guns idiomas orientais. Nessa fase, começou a se dedicar ao estudo da

matemática, que não o havia interessado anteriormente, e continuou a se

dedicar a inventos mecânicos (Waller, 1705, p. iii).

Em 1653, aos 18 anos de idade, Hooke deixou Westminster indo para

Oxford, passando a estudar no Christ Church College. Passou por grandes

dificuldades financeiras e, para sobreviver, tornou-se servidor de certo

senhor Goodman, além de trabalhar no coro da Christ Church (Chapman,

1996, p. 243; Andrade, 1950, pp. 154-155; Waller, 1705, p. iii). Os estudos

de Hooke não correram muito bem: ele apenas obteve o título de mestre

em artes dez anos depois, em 1662 ou 1663, aos 28 anos de idade.

Graças à influência de Richard Busby, pouco depois de chegar a Ox-

ford Hooke teve acesso a John Wilkins (1614-1672), e depois passou a

construir aparelhos para ele, como modelos de máquinas voadoras (Jardi-

ne, 2004, pp. 111-114). A partir de 1655 ele já era bem conhecido no círcu-

lo de pesquisadores de Oxford por sua capacidade de construir dispositi-

vos experimentais.

O médico Thomas Willis (1621-1675), do Christ Church College, que tinha

montado em sua residência um laboratório, interessou-se por Hooke e

empregou-o como seu “assistente químico” (Andrade, 1950, p. 155).

Aproximadamente em 1658, depois de deixar o trabalho com o doutor

Willis, Hooke se tornou auxiliar de Robert Boyle (1627-1691), que era

pouco mais velho do que ele (Chapman, 1996, p. 243). Foi apresentado

por Wilkins, que também apoiava o trabalho de Boyle. Foi contratado

como “mecânico” (o equivalente a um técnico de laboratório), tendo cons-

truído em 1658 ou 1659 uma “máquina pneumática” (bomba de vácuo)

para Boyle, que foi fundamental para suas pesquisas e que só foi superada

pela bomba inventada por Otto von Guericke (1602-1686) em 1672 (An-

drade, 1950, p. 155). Os experimentos realizados com esse aparelho foram

108

depois descritos em um livro que Boyle publicou em 1660. Na mesma

época, estava construindo modelos de máquinas voadoras para Wilkins e

começou estudos de astronomia com Seth Ward (1617–1689), construindo

um relógio de pêndulo para registro das observações (Waller, 1705, pp. iii-

iv). Através de seu contato e colaboração com Willis, Wilkins, Boyle, Ward

e outros filósofos naturais da época, Hooke se tornou não apenas um auxi-

liar muito útil mas também um importante pesquisador, tendo depois tido

um papel central no desenvolvimento da Royal Society, como veremos na

próxima seção deste artigo.

O primeiro trabalho científico individual de Hooke foi um estudo sobre

aquilo que chamamos atualmente de capilaridade e tensão superficial, pu-

blicado sob a forma de um livreto em 1661, quando tinha 26 anos (Andra-

de, 1950, p. 156).

A principal área de pesquisa de Hooke foi a física, mas ele também deu

importantes contribuições à meteorologia, à astronomia, à geologia, tendo

também estudado fenômenos biológicos como a respiração (Andrade,

1950, p. 153).

Fig. 1. Representação do rosto de Robert Hooke, por Rita Greer (2006), a partir

de descrições de dois de seus contemporâneos (John Aubrey e Richard Waller). A

artista incorporou a esse desenho algumas características de Hooke, como olhos

saltados, rosto e nariz finos, queixo pontudo e boca pequena, com lábio superior

fino. Fonte: //commons.wikimedia.org

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Como já foi dito, Hooke tinha uma grande habilidade manual, e alegou

ter inventado mais de 100 dispositivos – incluindo peças importantes para

relógios e a junta universal utilizada até hoje em mecanismos de transmis-

são. Realizou aperfeiçoamentos importantes em termômetros, microscó-

pios, bombas de vácuo e outros dispositivos de uso em pesquisa científica

(Robinson, 1945, p. 486).

A saúde de Hooke era péssima, desde pequeno. Quando adulto, tinha

terríveis dores de cabeça, vômito, tontura, insônia, pesadelos e outras per-

turbações (Andrade, 1950, p. 185).

Há descrições sobre a aparência de Hooke (indicando que ele era muito

magro e corcunda, quando adulto), mas não são conhecidos retratos dele.

Existe um registro de que em 1710 o erudito alemão Zacharias von Uffen-

bach visitou a Royal Society e lá examinou os retratos de Hooke e de Boyle.

O retrato de Boyle ainda existe, mas o de Hooke desapareceu (Chapman,

1996, p. 239). Assim, todos os retratos atualmente utilizados para represen-

tar Hooke são imaginários ou espúrios (ver Fig. 1).

Durante grande parte de sua vida, Hooke passou por enormes dificul-

dades financeiras. No entanto, ao falecer, era uma pessoa consideravelmen-

te rica – principalmente por causa do seu trabalho de reconstrução de

Londres, que será mencionado mais adiante tendo sido encontrado, de-

pois de sua morte, um baú de ferro contendo “muitos milhares de libras

em ouro e prata” (Waller, 1705, p. xiii).

Depois que conseguiu se estabilizar financeiramente, Hooke se tornou

um grande colecionador de livros. Após sua morte, sua biblioteca foi ven-

dida, e o catálogo de venda continha mais de 3.000 volumes (Feisenberger,

1966, p. 47)

2

. Sua coleção de livros era bastante completa e variada, inclu-

indo obras sobre medicina (como trabalhos de William Harvey) e muitos

livros sobre plantas e herbários médicos (Feisenberger, 1966, p. 49). Foi

certamente uma pessoa de interesses amplos e de grande cultura, que con-

seguiu se firmar graças a um enorme esforço pessoal.

3 HOOKE E A

ROYAL SOCIETY

Embora o grupo que depois constituiu a Royal Society tenha se formado

em Oxford, a maior parte de seus membros havia se transferido para Lon-

2 Para efeito de comparação, podemos citar que a magnífica biblioteca pessoal de Newton,

quando ele faleceu, era constituída por 1.896 volumes, tendo sido avaliada em 270 libras

(Feisenberger, 1966, p. 42).

110

dres em 1659. Eles se reuniam no Gresham College, depois das conferências

sobre astronomia de Christopher Wren e sobre geometria de Laurence

Rooke (Birch, 1756, vol. 1, p. 3). No dia 28 de novembro de 1660, em uma

reunião de que participaram William Brouncker, Robert Boyle, Alexander

Bruce, Robert Moray, Paul Neile, John Wilkins, Jonathan Goddard, Willi-

am Petty, William Balle, Laurence Rooke, William Croone, Christopher

Wren e Abraham Hill

3

, foi decidida a criação de um “College for the Promoting

of Physico-Mathematical Experimental Learning”, sob a presidência de Wilkins

(ibid, vol. 1, p. 3). Dois anos depois, com aprovação régia, tornou-se The

Royal Society of London”.

Segundo Henry Robinson, foi Boyle quem apresentou Hooke ao grupo

que formou a Royal Society (Robinson, 1945, p. 485). Porém, desde 1655,

antes de conhecer Boyle, Hooke tinha contato com John Wilkins, que

foi o principal responsável pela criação dessa sociedade, e com outras pes-

soas do seu círculo.

A Royal Society procurava seguir o pensamento de Francis Bacon, fugin-

do de especulações teóricas vazias e dedicando-se mais ao conhecimento

direto da natureza. Os seus membros valorizavam muito a observação e a

experimentação. Porém, nem todos tinham a facilidade e interesse em

preparar pessoalmente seus experimentos e mostrá-los aos demais partici-

pantes. Por isso, logo depois de receberem o aval do rei, surgiu a idéia de

contratarem uma pessoa que prestasse esse tipo de serviços ao grupo.

No dia 12 de novembro de 1662, segundo Thomas Birch,

Sir Robert Moray propôs o sr. Hooke como curador de experimentos da

sociedade; e sendo aceito por unanimidade, ordenou-se que o sr. Boyle re-

cebesse os agradecimentos da sociedade por dispensar seu uso; e que o sr.

Hooke deveria vir e se sentar entre eles, e trazer a cada dia das reuniões três

ou quatro experimentos dele próprio, e cuidar de outros que lhe sejam

mencionados pela sociedade. (Birch, 1756, vol. 1, p. 124)

As reuniões da Royal Society eram semanais, e portanto o encargo de

Hooke não era leve: a cada semana deveria não apenas produzir três ou

quatro novos experimentos por sua livre iniciativa, como ainda preparar

outros solicitados pelos membros da Royal Society, sobre os mais variados

temas (Robinson, 1945, p. 485). Por exemplo, em 14 de janeiro de 1663,

3 Há uma lista completa dos membros da Royal Society, durante seu período de formação, no

artigo de Esmond Beer (1950).

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“O sr. Hooke propôs trazer para a próxima reunião os seguintes experi-

mentos: 1. Sobre a sobrevivência de insetos em ar comprimido. 2. Sobre a

força de corpos em queda. 3. Sobre a respiração. 4. Sobre as diferentes

refrações na água fria e quente” (Birch, 1756, vol. 1, p. 179).

Antes de ser escolhido como curador de experimentos, Hooke ainda

não participava da Royal Society. A partir dessa época teve a permissão de

estar presente às reuniões, mas ainda não era um membro, propriamente

dito.

Ao contrário da maioria dos membros da Royal Society, Hooke não era

um aristocrata. Embora seu trabalho fosse valorizado, certamente ele era

visto como um “estranho”, sob o ponto de vista social. Inicialmente, ele

era simplesmente o empregado de Boyle, que o ajudava em seus experi-

mentos (Bennett, 1980, p. 34). Como já dissemos, ele demorou muito tem-

po para obter um título universitário sendo, portanto, inferior também sob

o ponto de vista acadêmico (Andrade, 1950, p. 155).

Os membros da Royal Society podiam solicitar a Hooke que realizasse

observações, construísse aparelhos e fizesse experimentos que ele próprio

talvez não tivesse interesse em fazer; e podiam também questionar seus

resultados, pois ele era um empregado da sociedade (Neri, 2003, p. 99). A

expressão “ordenou-se ao sr. Hooke” [“Mr. Hooke was ordered”] aparece

com grande freqüência nos relatos das reuniões da sociedade.

Ao mesmo tempo em que o trabalho de Hooke era fundamental para a

Royal Society, certamente as pressões para desenvolver experimentos varia-

dos devem ter dificultado muito sua dedicação mais constante e profunda a

qualquer tema de pesquisa. Ao longo de 40 anos ele desenvolveu centenas

– talvez milhares – de experimentos originais, muitos deles brilhantes e que

se tornaram conhecidos, outros inconclusivos ou meras repetições de estu-

dos já realizados anteriormente. Sua ocupação como curador de experi-

mentos explica, em grande parte, por que motivo muito do que Hooke

iniciou ficou incompleto (Robinson, 1945, p. 485). Por outro lado, seu

trabalho foi o que permitiu que a sociedade efetivamente cumprisse o pro-

grama de trabalho experimental que desejava.

Não há dúvidas de que Hooke foi o homem que mais contribuiu para es-

truturar a forma da nova Sociedade e para manter sua existência ativa. Sem

seus experimentos semanais e trabalho prolífico, ela dificilmente teria so-

brevivido ou, pelo menos, teria se desenvolvido de um modo bastante dife-

rente. (Robinson, 1945, p. 485)

112

Aos poucos, Hooke foi ganhando novos encargos. No dia 19 de outu-

bro de 1663, “Foi ordenado que o sr. Hooke mantenha a guarda dos bens

da sociedade, sendo para isso designada a galeria oeste do Gresham College

(Birch, 1756, vol. 1, p. 316). Foi também adquirindo maior respeitabilidade.

No dia 3 de junho de 1663, quase um ano após sua designação como cura-

dor, foi eleito Membro (Fellow) da Royal Society: “O sr. Hooke foi eleito um

membro da sociedade pelo conselho, e isento de todas as taxas” (Birch,

1756, vol. 1, p. 250).

No início de junho de 1664, Sir John Cutler informou à Royal Society sua

vontade de criar uma “conferência mecânica”, com um salário anual de 50

libras. No dia 22 do mesmo mês, diversos membros se reuniram para dis-

cutir sobre isso, e por fim, no dia 9 de novembro, decidiram designar Ho-

oke como responsável por essas conferências, de forma vitalícia (Waller,

1705, pp. viii-ix).

No final de junho de 1664 decidiu-se que deveria haver uma votação

dos curadores da Royal Society; talvez houvesse alguma insatisfação com

relação ao seu trabalho. No entanto, no dia 23 de novembro ele foi pro-

posto para uma posição estável de curador de experimentos, e no dia 11 de

janeiro de 1664 foi eleito curador vitalício, com um salário adicional, além

do fornecido por Sir John Cutler (Waller, 1705, p. ix).

No mesmo ano, Hooke foi escolhido como professor de geometria do

Gresham College, sucedendo a Isaac Barrow (que tinha sido professor de

Isaac Newton). Passou então a ter uma ocupação acadêmica regular, embo-

ra sua maior dedicação fosse à Royal Society (Robinson, 1945, p. 485).

Inicialmente, a posição de curador da Royal Society não era remunerada

(Andrade, 1950, p. 158). Posteriormente, embora Sir John Cutler tivesse

prometido pagar 50 libras anuais a Hooke, não cumpriu a promessa. De-

pois que este faleceu, Hooke entrou com uma ação judicial contra os her-

deiros de Cutler para obter seu pagamento, e obteve resultados positi-

vos cerca de 30 anos depois, em 1696. Nos primeiros anos da Royal Society,

Hooke parece ter sobrevivido por seu trabalho de construção de instru-

mentos de todos os tipos. Depois do grande incêndio de Londres, em

1666, ele teve um trabalho muito lucrativo na reconstrução da cidade (An-

drade, 1950, p. 159).

Em 1677, com o falecimento de Henry Oldenburg (1619-1677), que era

o secretário da Royal Society, Hooke foi escolhido para substitui-lo, assu-

mindo essa nova incumbência no dia 25 de outubro de 1677 (Waller, 1705,

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113

p. xx), mantendo essa posição até 1682 (Andrade, 1950, p. 161). Mas foi

principalmente por seu trabalho experimental que ele contribuiu para o

desenvolvimento daquela sociedade.

A influência de Francis Bacon sobre a Royal Society (e especificamente

sobre Hooke) foi enorme, tendo levado a um programa de trabalho obser-

vacional e experimental e colocando em segundo plano qualquer discussão

puramente teórica (Kargon, 1971, p. 72).

Um manuscrito de Hooke, provavelmente escrito em 1663, descreve a

metodologia do trabalho experimental que ele propôs à Royal Society, em

seu papel de curador:

Portanto, eu concebo que o método de realizar experimentos pela Royal So-

ciety deveria ser este. Primeiro, propor o projeto e objetivo do curador nesta

presente investigação. Segundo, fazer o experimento, ou experimentos,

sem pressa, com cuidado e exatidão. Terceiro, ser diligente, preciso e curio-

so, tomando nota e mostrando à assembléia de espectadores as circunstân-

cias e efeitos que aí ocorrem que sejam relevantes – ou que ele assim con-

sidere – com respeito à sua teoria. Quarto, depois de concluir o experimen-

to, discursar, argumentar, defender e explicar melhor as circunstâncias e e-

feitos nos experimentos precedentes que possam parecer duvidosos ou di-

fíceis; e propor quais novas dificuldades e questões surjam, que exijam ou-

tras tentativas e experimentos a serem feitos, para seu esclarecimento e

resposta; e depois, apresentar os axiomas e proposições que forem assim

claramente demonstrados e provados. Quinto, registrar o procedimento

todo de proposta, planejamento, experimentação, sucessos ou falhas, as

objeções e objetores, as explicações e explanadores, as propostas e propo-

nentes de novas tentativas adicionais; e, em uma palavra, a história de todas

as coisas e pessoas que sejam relevantes e circunstanciais em todo o entre-

tenimento da dita Sociedade; que deve ser preparada e executada, bem es-

crita em um livro encadernado, para ser lida no início da reunião da dita

Sociedade; e no dia seguinte de reunião, deve ser lida de novo, e novamen-

te discutida, aumentada ou diminuída, conforme exija o assunto, e então

ser assinada por um certo número de pessoas presentes, que estiveram pre-

sentes e testemunharam todo o procedimento, as quais, subscrevendo seus

nomes, darão prova indubitável à posteridade sobre toda a história. (De-

rham, 1726, p. 26-28)

No seu trabalho de 1666, “Método para aperfeiçoar a filosofia natural”,

Hooke recomendou que o pesquisador da natureza não deveria ser um

mero compilador de fatos: ele deveria ter habilidade em matemática e em

mecânica (ou seja, na construção de aparelhos e dispositivos), deveria ser

capaz de desenhar bem, seu pensamento deveria ser livre de preconceitos,

114

não deveria tentar trabalhar sozinho, e deveria tornar o conhecimento que

adquirisse livremente disponível a todos (Oldroyd, 1987, p. 146). Foram

ideais como este que guiaram o seu trabalho, e o da Royal Society.

Entre os muitos aparelhos que utilizou, Hooke construiu telescópios e

microscópios de vários tipos. Os estudos microscópicos que realizou fo-

ram publicados em 1665, no livro Micrographia, com apoio da Royal Society.

4 A OBRA “

MICROGRAPHIA

A Micrographia é considerada uma das mais importantes obras científicas

de todos os tempos (Gest, 2005, p. 267). O título completo da obra de

Hooke é Micrographia, or some physiological descriptions of minute bodies made by

magnifying glasses with observations and inquiries thereupon – ou seja, “Micrografia,

ou algumas descrições fisiológicas de pequenos corpos, feitas com lentes

de aumento, com observações e investigações sobre os mesmos”. Deve-se,

no entanto, observar que o adjetivo “fisiológico” não tinha o sentido que

lhe atribuímos hoje em dia. Hooke o utilizou no sentido etimológico, de

“estudo da natureza”.

O interesse de Hooke não era especificamente biológico (nem entomo-

lógico, embora tenha estudado muitos insetos) e sim microscópico. Ele

observou todo tipo de coisas ao microscópio, como fios de seda, areia, a

lâmina de uma navalha, vidro, carvão, etc. (Weiss & Ziegler, 1928, p. 95).

Porém, muitas das 60 observações descritas na Micrographia são de objetos

biológicos, como a cabeça de uma mosca, uma pulga, uma formiga, o fer-

rão de uma abelha, os dentes de um caracol, cabelo, superfície de folhas, e

uma fina seção de um pedaço de cortiça (Gest, 2005, p. 267).

Hooke utilizou o microscópio para estudar detalhes de vegetais, mofo,

cogumelos, esponjas e muitos outros seres. Entre muitos outros resultados

importantes, a Micrographia apresentou a primeira descrição conhecida de

um microorganismo, o fungo microscópico Mucor.

Os insetos aparecem em 15 das 38 pranchas que ilustram a Micrographia.

Cerca de um terço das suas observações se refere a insetos e outros peque-

nos animais (Weiss & Ziegler, 1928, p. 96). Os estudos de Hooke a respei-

to de insetos foram não apenas inovadores em suas descrições, mas tam-

bém em suas investigações sobre os processos relacionados com os mes-

mos. Estudou detalhadamente as patas da mosca, o ferrão de uma abelha e

a construção da teia por uma aranha. Descreveu cuidadosamente a pulga e

o piolho, fornecendo grandes desenhos desses animais.

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As observações microscópicas que serviram como base para a Microgra-

phia foram desenvolvidas principalmente em 1663. A partir de abril desse

ano, Hooke apresentou novas observações e desenhos à Royal Society, quase

todas as semanas (Neri, 2003, p. 97). Esse trabalho foi realizado a pedido

da sociedade. No dia 1

o

de abril de 1663, “O sr. Hooke foi encarregado de

trazer em cada reunião pelo menos uma observação microscópica” (Birch,

1756, vol. 1, p. 215). Thomas Birch assim descreve alguns dos primeiros

relatos de Hooke, apresentados no dia 14 de abril de 1663:

O sr. Hooke mostrou dois esquemas microscópicos, um representando os

poros da cortiça, cortada tanto transversalmente [longitudinalmente] quan-

to perpendicularmente; o outro de uma pedra de Kettering4, que parecia

ser composta por glóbulos, sendo estes ocos, cada um tendo três camadas

grudadas uma na outra, e assim constituindo uma única pedra sólida.

Pediu-se que ele examinasse a casca de outras árvores, e que escrevesse tu-

do o que conseguisse observar sobre estas aparências e outras semelhantes;

e também que trouxesse na próxima reunião a representação dos pequenos

peixes que nadam no vinagre. (Birch, 1756, vol. 1, p. 218)

Atendendo ao pedido da sociedade, na semana seguinte (dia 22 de a-

bril), “O sr. Hooke trouxe duas observações microscópicas, uma de engui-

as em vinagre; a outra sobre um mofo azulado sobre um pedaço de couro

mofado” (Birch, 1756, vol. 1, p. 219).

É provável que as observações de Hooke tenham sido aperfeiçoadas

com o auxílio de discussões constantes com os demais membros da Royal

Society, e houve pelo menos um caso em que seu trabalho foi rejeitado

quando apresentou um desenho de uma aranha que parecia ter seis olhos

(Neri, 2003, p. 98). “O sr. Hooke apresentou duas observações microscó-

picas, uma de uma mina de diamantes comuns em pederneiras; a outra de

uma aranha que parecia ter seis olhos: mas esta última ainda não estava

desenhada perfeitamente” (Birch, vol. 1, p. 231).

No entanto, não foi apenas a pedido da Royal Society que Hooke iniciou

estudos microscópicos. Não se sabe quando ele começou a se interessar

pelo assunto, mas conhece-se um conjunto de esboços de insetos que ele

fez entre julho de 1660 e julho de 1661 (Neri, 2003, p. 116). Janice Neri

encontrou esses desenhos de Hooke, que não haviam sido reconhecidos

anteriormente, em um caderno de anotações de John Covel. Esses dese-

4 Kettering fica no condado de Northampton.

116

nhos, produzidos entre julho de 1660 e julho de 1661 mostram sete insetos

(observados ao microscópio ou com lentes), acompanhados por algumas

anotações (Neri, 2005). Um dos esquemas (de um pseudo-escorpião) pare-

ce ter servido de base para uma das ilustrações da Micrographia. Um dos

aspectos interessantes desse manuscrito é que nele está registrada a partici-

pação de alguns colaboradores nesses estudos microscópicos. Infelizmente,

essas pessoas são identificadas apenas por iniciais, RG, DC, ET.

Hooke completou a redação do livro em junho de 1664, entregando-o à

Royal Society, que o passou a Lord Brounckner para revisar o manuscrito, e

depois passá-lo a outros membros da sociedade antes de ser impresso. Isso

atrasou um pouco sua publicação.

A Micrographia tornou-se conhecida principalmente por causa de suas

excelentes ilustrações, como a de uma pulga. O dom artístico de Hooke foi

essencial para o sucesso da Micrographia, pois conseguiu transformar as

imagens confusas produzidas pelo microscópio em magníficas figuras níti-

das e convincentes (Chapman, 1996, p. 256).

O trabalho realizado por Hooke na sua Micrographia contribuiu para re-

forçar sua posição no meio científico da época, e para sua aceitação social

pelos demais membros da Royal Society (Neri, 2003, p. 96). Mesmo assim, a

situação de Hooke sempre permaneceu ambígua, pois era ao mesmo tem-

po um membro da Royal Society, e um funcionário pago pela mesma.

5 OS MICROSCÓPIOS USADOS POR HOOKE

A Micrographia apresenta uma descrição detalhada de um microscópio

composto utilizado por Hooke, acompanhada por sua representação (Fig.

2). De acordo com a descrição apresentada, esse instrumento permitia

obter aumento de aproximadamente 40 diâmetros.

Os principais problemas do microscópio composto, em meados do sé-

culo XVII, eram seu pequeno poder de ampliação, a inexistência de um

modo de manipular o objeto de estudo (que era simplesmente colocado

sobre uma superfície horizontal) e a dificuldade de obter uma boa ilumina-

ção do objeto estudado (Ball, 1966, p. 58). Os microscópios populares,

chamados de “vidros de pulgas”, utilizados para observar insetos, amplia-

vam apenas cerca de 10 vezes. As imagens observadas nos antigos micros-

cópios sofriam distorções e também um efeito chamado “aberração cro-

mática” – os detalhes e bordas ficavam indefinidos, cercados por duas

faixas avermelhada e azulada.

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

117

Fig. 2. O microscópio composto representado por Hooke na Micrographia. Fonte:

Hooke, 1665, prancha 1.

Sob o ponto de vista técnico, Hooke parece ter introduzido as seguintes

inovações no seu microscópio composto: formato compacto e pequeno

tamanho

5

; um poderoso sistema de iluminação, empregando luz difusa

para evitar os fortes reflexos ocasionados pela luz solar direta; a introdução

de uma lente intermediária entre a objetiva e a ocular (posteriormente de-

nominada “lente de campo”)

6

, para aumentar a luminosidade e o campo de

visão da imagem; o sistema de sustentação do microscópio, que permitia

movimentos do seu corpo em qualquer direção; uma plataforma giratória

para colocar as amostras estudadas (Mayall, 1886, pp. 1007-1010). Forne-

ceu também muitas indicações práticas sobre o uso do microscópio, inclu-

indo um método para determinar sua ampliação.

5 Os primeiros microscópios compostos eram de grande tamanho. Os que foram descritos

no início do século XVII tinham comprimento de aproximadamente dois metros (Hogg,

1867, p. 3). Na década de 1620 começaram a ser desenvolvidos instrumentos menores.

6 Não se sabe se foi Hooke quem inventou a lente de campo. Eustachio Divini também

descreveu microscópios compostos com a lente de campo em 1668 (Hogg, 1867, p. 8).

118

O poder de ampliação deste microscópio composto, de acordo com os

padrões atuais, era muito pequeno semelhante ao das lupas que utiliza-

mos. Os microscópios didáticos utilizados nas universidades possuem uma

ampliação dez vezes maior.

Porém, além do microscópio composto, Hooke também utilizou mi-

croscópios com uma única lente esférica minúscula, capazes de maior am-

pliação (cerca de 200 ou 300 vezes). Ele não apresentou uma figura desses

instrumentos, e por isso muitos autores não os mencionam, fixando-se

apenas no aparelho composto. Porém, a Micrographia contém uma descri-

ção detalhada sobre como construí-los (Hooke, 1665, fol. f, verso).

O microscópio que eu usei a maior parte das vezes tinha uma forma muito

semelhante à da sexta figura do primeiro esquema. [...]

E assim é que, se você tomar um pedaço muito límpido de vidro de Vene-

za quebrado, e em uma lamparina puxá-lo formando fios ou cabelos muito

finos, e então mantiver as extremidades desses fios na chama, eles se derre-

terão e produzirão uma pequena gota ou glóbulo redondo, que ficará pen-

durado na ponta do fio. [...] Se um deles for fixado com um pouco de cera

macia contra um pequeno buraco de agulha, olhando através de uma placa

fina de bronze, chumbo, ou qualquer outro metal, e se olharmos através

dele para um objeto colocado muito próximo, ele aumentará e tornará al-

guns objetos mais distintos do que qualquer um dos grandes microscópios.

(Hooke, 1665, fol. f.2)

Os microscópios que usavam uma lente muito pequena (Fig. 3) são

associados principalmente a Antony van Leeuwenhoek (1632-1723), mas

Hooke os utilizava anteriormente. Brian Ford estudou um dos micros-

cópios de Leeuwenhoek conservados na Universidade de Utrecht, testando

seu funcionamento e verificando que era capaz de produzir uma ampliação

de 266 vezes e uma resolução de aproximadamente um micron. Com esse

instrumento, Ford afirma ter sido capaz de observar com facilidade células

vermelhas do sangue e bactérias (Ford, 1982, p. 1822)

7

. No início do século

XIX, George Wollaston (1738–1828) comentou que o microscópio com-

posto jamais superaria o microscópio simples (Ernst, 1900, p. 149).

7 Os melhores microscópios ópticos do século XX, utilizando objetivas de imersão em

óleo, costumam ampliar de 600 a 1.000 vezes. O limite de visibilidade com microscópios

ópticos ideais seria de 0,2 µm, mas esse limite não é atingido na prática. Bons microscópios

com ampliação de 300 vezes podem chegar a discriminar 1 µm, como os de Leeuwenhoek

(e talvez os de Hooke).

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

119

Fig. 3. Réplica de um microscópio simples (uma única lente) de Leeuwenhoek.

Fonte: //commons.wikimedia.org

Pode ser que Hooke tenha inventado sozinho o microscópio com pe-

quena esfera de vidro

8

, mas outros pesquisadores haviam utilizado mi-

croscópios semelhantes (com uma única lente minúscula) um pouco antes,

como por exemplo Jan Hudde, em 1663 (Wilson, 1997, p. 79). Segundo

Catherine Wilson, os pesquisadores do norte da Europa utilizavam princi-

palmente microscópios de uma única lente, os do sul preferiam microscó-

pios compostos (ibid., p. 79).

8 Há autores que atribuem a invenção do microscópio simples com pequenas esferas de

vidro a Nicolaas Hartsoeker (Hogg, 1867, p. 4), o que é evidentemente um absurdo, já que

este autor nasceu em 1656, sendo ainda criança na época em que Hooke descreveu esse tipo

de instrumento. Na verdade, o trabalho de Hartsoeker com microscópios data da década de

1670, quando trabalhou com Leeuwenhoek, que já construía microscópios desse tipo.

Segundo Charles Singer, os microscópios simples, com lentes esféricas muito pequenas,

foram inventados por Hooke, sendo logo depois descritos por Hartsoeker, Butterfield e Jan

van Mussenbroeck (Singer, 1914, p. 253).

120

Lorande Woodruff (1919, p. 263), Edward Andrade (1950, p. 159) e

outros autores acreditaram que Hooke desenvolveu todos os estudos pu-

blicados na Micrographia utilizando apenas seu microscópio composto. Isso

é um equívoco. Seria impossível descrever os detalhes microscópios apre-

sentados nessa obra utilizando apenas uma ampliação de 40 vezes.

Em uma publicação posterior, Hooke apontou um problema que o fez

abandonar o uso dos microscópios simples depois de algum tempo:

Além disso, descobri que o uso deles ofendia meu olho, e forçou e enfra-

queceu muito a vista, sendo esta a razão pela qual deixei de fazer uso deles,

embora na verdade façam o objeto aparecer muito mais claro e distinto, e

aumentem tanto quanto o microscópio duplo: de fato, para aqueles cujos

olhos possam suportá-lo bem, é possível com o microscópio simples fazer

descobertas melhor do que com um duplo, porque as cores que perturbam

muito a visão clara nos microscópios duplos são evitadas nos simples.

(Hooke, 1679, pp. 96-97)

6 A PULGA DE HOOKE

Uma das figuras mais famosas da Micrographia é a de uma pulga, repre-

sentada na prancha 34 e descrita na observação 53 do livro (Hooke, 1665,

pp. 210-211). Vamos inicialmente transcrever toda a descrição, que deve

ser lida acompanhando a figura (Fig. 4), e depois comentá-la.

Mesmo se não tivesse qualquer outra relação com o homem, a força e a be-

leza desta pequena criatura mereceriam uma descrição.

Com relação à sua força, o Microscópio não é capaz de fazer descobertas

maiores do que o olho nu, a não ser pelo curioso arranjo de suas pernas e

juntas, para exercer essa força, que se manifesta muito claramente, tal que

nenhuma outra criatura que observei até agora possui nada semelhante;

pois suas juntas são adaptadas de tal modo que ela pode, por assim dizer,

dobrá-las uma dentro da outra, e subitamente esticá-las até seu comprimen-

to completo, ou seja, das pernas frontais, as partes A do esquema 34, ficam

dentro de B, e B dentro de C, paralelas ou lado a lado. Mas as partes das

duas [patas] seguintes ficam ao contrário, ou seja, E dentro de D, e F den-

tro de E, mas também paralelas; mas as partes das pernas posteriores, G, H

e I, se dobram uma dentro da outra, como as partes de uma régua articula-

da dupla, ou como o pé, perna e coxa de um homem. Ela [a pulga] contrai

essas seis pernas em conjunto, e quando pula, as estica e assim exerce sua

força total de uma só vez.

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

121

Fig. 4. Desenho de uma pulga, da Micrographia. Fonte: Hooke, 1665, prancha 34,

entre páginas 210 e 211.

Mas, em relação à sua beleza, o microscópio mostra que ela é toda adorna-

da com uma veste curiosamente polida de couraça negra perfeitamente ar-

122

ticulada9, cercada por multidões de pinos afiados, quase com a mesma

forma dos espinhos de um porco-espinho, punhais cônicos de aço; a cabe-

ça é adornada de cada lado por um olho negro redondo e vívido K, atrás

de cada um dos quais aparece uma pequena cavidade L, na qual ele parece

mover para frente e para trás certa película coberta por muitos pelos trans-

parentes pequenos, que provavelmente podem ser seus ouvidos; na parte

da frente da cabeça, entre as duas patas anteriores, ele tem duas longas pe-

quenas presas, ou melhor cheiradores, MM, que têm quatro juntas, e o

peludas, como as de várias outras criaturas; entre elas, tem uma pequena

tromba, ou bastão, NNO, que parece consistir em um tubo NN e uma lín-

gua ou sugador O, que percebi ser deslizado para dentro e para fora. Dos

seus lados, tem também duas lâminas ou mordedores PP que são um pou-

co semelhantes aos de uma formiga, mas não consegui notar se são denta-

dos; tinham formas muito semelhantes às lâminas de um par de tesouras

com ponta arredondada, e abriam e fechavam exatamente do mesmo mo-

do; com estes instrumentos essa pequena e ocupada criatura morde e per-

fura a pele, e suga o sangue de um animal, deixando a pele inflamada com

uma pequena mancha vermelha redonda. É muito difícil descobrir essas

partes, pois geralmente elas ficam encobertas entre as pernas anteriores. Há

muitas outras particularidades que, sendo mais óbvias, e não proporcio-

nando muita informação, eu deixarei de lado, indicando ao leitor a figura.

(Hooke, 1665, pp. 210-211)

O desenho da pulga é extremamente detalhado e bem feito, sob o pon-

to de vista artístico, dando a impressão de estarmos vendo um objeto tri-

dimensional. Esta figura foi impressa em uma folha maior, desdobrável

(com cerca de 50 cm), para permitir incluir mais detalhes. O desenho im-

presso é cerca de 200 vezes maior do que o tamanho natural da pulga.

Para obter uma boa imagem é necessário paralisar ou matar a pulga sem

deformá-la. Esta é uma dificuldade que Hooke abordou ao tratar sobre a

formiga:

Esta foi uma criatura mais problemática de desenhar do que qualquer uma

das outras, pois durante um bom tempo não consegui pensar em um modo

de fazer seu corpo ficar quieto em uma postura natural; mas enquanto es-

tava viva, se seus pés estivessem presos com cera ou cola, ela torceria e gi-

raria tanto o seu corpo que eu não conseguia de nenhum modo obter uma

9 Hooke utiliza o adjetivo francês “sable” para indicar a cor da pulga. A palavra significa

“areia”, mas evidentemente tem outro significado aqui. Esta palavra é usada, no inglês

arcaico e em heráldica, para representar o negro.

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

123

boa visão dela; e se eu a matava, seu corpo era tão pequeno, que geralmen-

te eu estragava sua forma, antes de poder examiná-la completamente. (Ho-

oke, 1665, p. 203)

É evidente por essa descrição que, em alguns casos, Hooke prendia as

patas dos insetos com cola ou cera, para observá-los. No entanto nesse

caso a estratégia não funcionou. Hooke resolveu o problema, no caso da

formiga, colocando-a dentro de rum até ficar tão embriagada que ficava

parada durante cerca de uma hora. Não sabemos como Hooke fez para

manter a pulga parada, para observá-la. Note-se que ele descreveu movimen-

tos que só estão presentes em uma pulga viva – algo muito difícil de obser-

var, por não ficar parada. Além disso, minúcias que Hooke observou e

descreveu que são difíceis de perceber mesmo no magnífico desenho da

Micrographia.

Outro ponto que chama a atenção ao observamos o desenho é que ele

mostra com grande nitidez e detalhamento cada uma das partes da pulga,

porém ao microscópio óptico jamais vemos todas as partes de um objeto

tridimensional focalizadas ao mesmo tempo. Além disso, quando traba-

lhamos com grande ampliação, o campo visual fica mais restrito, e não é

possível observar todas as partes de uma pulga ao mesmo tempo. Mesmo

com os melhores microscópios ópticos atuais e utilizando as melhores

máquinas fotográficas existentes, é impossível chegar próximo ao nível de

nitidez e detalhamento obtido por Hooke no seu desenho. Somente com

um microscópio eletrônico de varredura é possível obter imagens mais

nítidas e detalhadas do que a apresentada na Micrographia.

Em vez de descrever o processo de construção dessas ilustrações, o

prefácio da obra de Hooke apresenta uma visão simplista dessa tarefa:

[...] para o principal propósito de uma reforma da filosofia, [...] não se exige

tanto, seja de força da imaginação ou exatidão de método, nem profundi-

dade de contemplação, [...] quanto uma mão sincera e um olho fiel, para

examinar e registrar as próprias coisas como elas aparecem. (Hooke, 1665,

fol. a.4)

Mesmo no caso de objetos macroscópicos, não bastam “uma mão sin-

cera e um olho fiel” para representá-los fielmente. É necessário possuir

uma técnica artística refinada para construir uma boa figura daquilo que

observamos, e essa imagem não é uma simples reprodução e sim uma in-

terpretação e criação. Como Janice Neri comentou, “As ilustrações de

Hooke para a Micrographia são composições construídas de forma intrinca-

da, que foram o produto de vários anos de trabalho e muitas revisões do

124

material. Não são simplesmente transcrições diretas de observações, mas

traduções complexas dessas observações” (Neri, 2003, p. 126).

Embora não revele o modo como fez os desenhos, provavelmente Ho-

oke primeiramente fez um esboço do corpo todo do inseto, com baixa

resolução, para ter uma idéia clara sobre o conjunto; e produziu a imagem

de cada parte da pulga separadamente, juntando depois as diversas partes.

Depois de montado o quebra-cabeças, foi necessário produzir uma ima-

gem artística, completa, harmoniosa, apresentando uma aparência tridi-

mensional do inseto. Cada um desses passos é extremamente difícil e exige

um grande treino e cuidado por parte do observador.

As observações e desenhos da Micrographia eram extremamente valiosas,

mas havia algo mais. De um modo geral, além de descrever o ser vivo que

observava, Hooke procurava compreender aquele organismo. Note-se que ele

não se limitou a observar e a desenhar uma pulga: procurou analisar seus

órgãos e compreender alguns aspectos de sua fisiologia. Examinando cui-

dadosamente as patas, tentou entender por qual motivo as pulgas pulam

mais alto (proporcionalmente) do que qualquer outro animal; analisando a

cabeça da pulga, procurou compreender como ela pica a pele dos animais

(e das pessoas).

7 O PIOLHO DE HOOKE

Outro exemplo interessante é a descrição que Hooke apresentou de um

piolho (Hooke, 1665, pp. 211-213):

[...] é uma criatura de uma forma muito peculiar ; tem uma cabeça na forma

indicada no esquema 35, marcada com A, que parece quase cônica, mas é

um pouco achatada nos lados superior e inferior; na parte mais larga dela,

de cada um dos lados da cabeça (como se fosse no lugar em que outras cri-

aturas têm orelhas) estão colocados dois olhos negros brilhantes arregala-

dos BB, olhando para trás, e cercados à volta com vários pequenos cílios

ou cabelos que os envolvem, de modo que parece que essa criatura não

tem uma boa visão frontal. Não parece ter qualquer pálpebra, e talvez por

isso seus olhos foram colocados em tal posição que ele possa limpá-los

mais facilmente com as patas dianteiras; e talvez essa seja a razão pela qual

eles evitam e fogem tanto da luz, pois sendo feitos para viver nos recessos

sombrios e escuros do cabelo, e provavelmente por isso tendo seus olhos

uma grande abertura, a luz clara e aberta, especialmente a do Sol, deve ne-

cessariamente feri-los muito; para proteger esses olhos de receber qualquer

dano dos cabelos através dos quais passa, tem dois chifres que crescem à

sua frente, no lugar onde pensaríamos que deveriam estar os olhos.

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

125

Fig. 5. Desenho de um piolho agarrado a um fio de cabelo, da Micrographia. Fonte:

Hooke, 1665, prancha 35, entre páginas 212 e 213.

Cada um desses CC tem quatro juntas, com um tipo de franja, com peque-

nos pelos; e daí até a ponta de seu focinho D a cabeça parece muito arre-

dondada e achatada, terminando em um nariz muito agudo D, que parece

ter um pequeno buraco e ser a passagem por onde ele suga sangue. Quan-

do é colocado sobre suas costas, com a barriga para cima, como está no

126

esquema 35, parece em diversas posições ter algo como aberturas ou maxi-

lares, como representado na figura por EE, no entanto em outras posições

essas marcas escuras desaparecem. Tendo mantido vários deles em uma

caixa por dois ou três dias, de modo que durante todo esse tempo eles não

tinham nada para se alimentar, deixei que um deles subisse sobre minha

mão, e descobri que ele começou imediatamente a sugar, e não parecia en-

fiar seu focinho muito profundamente na pele, nem abrir qualquer tipo de

boca, mas eu pude perceber claramente uma pequena corrente de sangue,

que vinha diretamente de seu focinho e passava para seu ventre; e perto de

A parece haver um dispositivo, um pouco semelhante a uma bomba, par de

foles, ou coração, que por rápidas sístoles e diástoles parecia puxar o san-

gue do coração e forçá-lo para o corpo. Embora eu o olhasse durante bas-

tante tempo enquanto sugava, não pareceu enfiar na pele mais do que a

ponta D do seu focinho, nem causou qualquer dor apreciável, no entanto o

sangue parecia correr através de sua cabeça de modo muito livre e rápido.

Assim, parece que o sangue está disperso em todas as partes da pele, até na

cuticula, pois [...] o comprimento do seu nariz não era maior do que um tre-

zentos-avos de polegada. (Hooke, 1665, pp. 211-212)

Hooke descreve também os detalhes das patas, o modo de caminhar e

segurar os fios de cabelo, a estrutura do abdômen e os órgãos visíveis den-

tro dele, observando o movimento e digestão do sangue que estava sendo

sugado e transformado em um líquido branco dentro do piolho.

Além da notável descrição, muito detalhada, do corpo de pequenos a-

nimais, Hooke realizou alguns experimentos com eles, como este da picada

pelo piolho, observando os resultados de auto-experimentação, que reali-

zava com freqüência. Hooke, na Micrographia, não apresentou simples des-

crições. Seguindo as indicações de Francis Bacon, ele “submeteu a natureza

a tortura”, realizando experimentos e observações guiados por perguntas.

Assim obteve notáveis resultados (Chapman, 1996, p. 255).

8 VER E DESENHAR

No exemplo do piolho, podemos ver que o próprio Hooke tinha difi-

culdades de interpretar o que via, como indicou ao descrever as linhas que

pareciam indicar a separação entre dois maxilares. No prefácio da Microgra-

phia ele indicou algumas dessas dificuldades em ver como os objetos real-

mente são, ao microscópio:

[...] ao fazê-los [os desenhos] eu procurei (tanto quanto fui capaz) primeiro

descobrir a verdadeira aparência, e depois fazer uma clara representação

dela. Menciono isso principalmente porque muito mais dificuldade em

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

127

descobrir a verdadeira forma desse tipo de objetos do que dos visíveis a o-

lho nu, pois o mesmo objeto parece bastante diferente em uma posição em

relação à luz, do que realmente é, como pode ser descoberto em outra [po-

sição]. E portanto eu nunca comecei a fazer qualquer desenho antes de ter

descoberto sua verdadeira forma por muitos exames com diferentes ilumi-

nações, e em diversas posições nessas luzes. Pois em alguns objetos é ex-

tremamente difícil distinguir entre uma proeminência e uma depressão, en-

tre uma sombra e uma mancha negra, ou entre um reflexo e uma cor bran-

ca. Além disso, a transparência da maioria dos objetos torna isso ainda

mais difícil do que se fossem opacos. Os olhos de uma mosca, sob um tipo

de luz, parecem quase como uma grade, com uma abundância de pequenos

buracos perfurados através dela; sendo essa provavelmente a razão pela

qual o engenhoso doutor Power parece supô-los ser assim. Sob a luz do

Sol parecem como uma superfície recoberta por pregos dourados; em ou-

tra posição, como uma superfície recoberta por pirâmides; em outra, com

cones; e em outras posições, de diferentes formas; mas o que mostra a me-

lhor [aparência] é a luz concentrada sobre o objeto, pelos meios que eu

descrevi. (Hooke, 1665, fol. f.4)

Hooke apresentou aos seus leitores um conjunto de imagens muito ní-

tidas, mas sua experiência visual enquanto usava o microscópio era algo

completamente diferente. Sua visão ao observar os insetos era fragmenta-

da, confusa e cheia de incertezas. (Neri, 2003, p. 9)

As imagens apresentadas por Hooke na Micrographia apresentam uma

aparência clara e ordenada dos objetos representados, em vez de um arran-

jo de fragmentos incompreensíveis, que é o que realmente se inicial-

mente ao olhar para os mesmos através do microscópio (Neri, 2003, p.

109). Hooke construiu suas imagens a partir de numerosas observações

feitas de vários ângulos, usando diferentes condições de iluminação e com

lentes de diferentes poderes. No desenho do piolho, Hooke pode ter unido

em uma imagem as informações obtidas por dissecação com as obtidas

pelo estudo da aparência externa do pequeno animal (ibid., p. 127). Os

insetos estudados eram em muitos casos mortos e cortados, mas isso não

aparece nas imagens mostradas. Quase sempre, Hooke apresenta seus inse-

tos como criaturas vivas, inteiras. Mesmo nos casos em que o texto des-

creve a dissecação do inseto, as imagens não apresentam esses aspectos.

As figuras construídas por Hooke deram suporte à autenticidade de su-

as descrições e autoridade às suas conclusões; e o texto cuidadosamente

elaborado da obra, por sua vez, fez com que as imagens fossem interpreta-

das como representações fiéis da realidade (Neri, 2003, p. 4). Hooke tam-

bém utilizou esta obra para criar para si próprio uma imagem de pesquisa-

128

dor cuidadoso e confiável, uma autoridade no campo da microscopia (ibid.,

p. 91).

9 WREN E OS DESENHOS DA

MICROGRAPHIA

Os desenhos detalhados apresentados na Micrographia são um dos as-

pectos mais importantes dessa obra. Alguns autores colocam em dúvida

que Hooke tenha sido o autor dos mesmos e os atribuem a Christopher

Wren. Vejamos os argumentos a favor e contra essa atribuição.

Catherine Wilson considera que as ilustrações do livro de Hooke foram

“provavelmente feitas por Christopher Wren” (Wilson, 1997, p. 85), mas

não fornece nenhuma evidência para essa afirmação. Segundo Lisa Jardine,

Hooke e Wren teriam produzido as gravuras da Micrographia (Jardine, 2001,

p. 295). Ela justifica essa conclusão da seguinte forma:

Embora exista alguma dúvida sobre o envolvimento de Wren nas gravuras

finais, sabemos que ele produziu imagens muito ampliadas de uma pulga e

de um piolho para a diversão de Charles II, e que ele então passou o proje-

to a Hooke para ser completado como um projeto das dimensões de um li-

vro. Sugiro que a gravura de um cérebro dissecado para a Anatomia do cére-

bro de Willis (que Willis reconhece, no texto, ter sido feita por Wren) e a

gravura da pulga da Micrographia [...] são da mesma mão. (Jardine, 2001, no-

ta 11)

O argumento não é muito forte. As gravuras que foram impressas e que

podemos observar não foram feitas diretamente por Hooke ou por Wren,

foram feitas por gravadores profissionais a partir dos desenhos originais. A

semelhança de estilo de duas gravuras não indica que os desenhos em que

se basearam tinham também estilos semelhantes.

Vamos, no entanto, descrever com algum detalhe algumas informações

e indícios relativos a esta questão.

Christopher Wren (1632-1723) é atualmente mais conhecido pelo seu

trabalho de arquitetura, associado à reconstrução de Londres após o gran-

de incêndio ocorrido no século XVII. Esse enorme incêndio, iniciado no

dia 2 de setembro de 1666 e que durou uma semana, destruiu 7/8 da cida-

de, incluindo cerca de 13.200 casas e 87 igrejas (Jardine, 2001, p. 294).

Após o incêndio que destruiu grande parte de Londres, Wren foi o res-

ponsável pela reconstrução da Catedral de St. Paul e 51 igrejas, além de

dois teatros e diversos prédios públicos. Robert Hooke trabalhou com ele

nessa época, como agrimensor e engenheiro, com o salário anual de 50

libras (mais as gratificações recebidas por cada trabalho) ficando encarre-

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

129

gado de supervisionar as reconstruções privadas ou seja, residências e

estabelecimentos comerciais (Stimson, 1941, p. 361).

Embora esse trabalho realizado em Londres seja sua contribuição mais

lembrada, no início de sua carreira Wren se dedicou muito a estudos cientí-

ficos, especialmente astronomia e matemática, tornando-se professor de

astronomia no Gresham College, Londres, em 1657 (Stimson, 1941, pp. 361-

362). Antes de se dedicar mais intensamente à matemática e à astronomia,

Wren mostrou grande interesse pela fisiologia e anatomia, tendo sido assis-

tente dos médicos Sir Charles Scarborough e Thomas Willis (ibid., p. 364).

Conta-se que com menos de 20 anos de idade ele compôs um tratado so-

bre os movimentos dos músculos, utilizando modelos em papelão para

ilustrá-los, tendo presenteado Sir Charles Scarborough com essa obra que,

infelizmente, foi perdida no incêndio de Londres (Gibson, 1970, p. 333).

Foi um pioneiro na realização de injeção intravenosa de medicamentos, e

de transfusão sangüínea (ibid., p. 334). Em 1653 Wren fez os desenhos

anatômicos que ilustraram o livro de Thomas Willis sobre o cérebro, livro

Cerebri Anatome (Gibson, 1970, p. 336; Stimson, 1941, p. 365).

No início da década de 1660 Wren fez estudos microscópicos e elabo-

rou desenhos de um piolho, uma pulga e uma asa de mosca, que foram

presenteados ao Rei Charles II em 1661 (Neri, 2003, pp. 92-93). O rei

gostou tanto dos desenhos, que pediu à Royal Society que Wren lhe forne-

cesse outros. Durante vários meses, diversos membros da Royal Society

pressionaram Wren para que produzisse novos desenhos, sem sucesso,

pois estava envolvido com outros trabalhos. Em agosto de 1661 Wren

informou à Royal Society que não seria capaz de satisfazer o pedido do rei.

Então, a Royal Society solicitou a Hooke que se dedicasse a essa tarefa. Não

há dúvidas de que foi esta situação que estimulou mais fortemente os estu-

dos de insetos por este pesquisador. É possível que muitos desenhos que

Hooke publicou na Micrographia tenham sido entregues antes ao rei, dois

anos antes da publicação, em julho de 1663 (Neri, 2003, p. 94, nota 6).

No Prefácio da sua obra, Hooke mencionou o trabalho de Wren, da se-

guinte forma:

Aconselhado por este excelente homem [Wilkins] eu iniciei esta empreita-

da, mas entrei nela com muita relutância, pois eu devia seguir os passos de

uma pessoa tão eminente como o Dr. Wren, que primeiro tentou alguma

coisa desse tipo; cujos desenhos originais agora constituem ornamentos

daquela grande coleção de raridades no gabinete do Rei. Esta honra, que

suas primícias receberam, de serem admitidas ao lugar mais famoso do

mundo, não foi encorajadora, pois o perigo de seguir Dr. Wren me ame-

130

drontou; pois devo afirmar que, desde o tempo de Arquimedes, dificilmen-

te houve em um só homem tanta perfeição, com uma mão mecânica e uma

mente tão filosófica.

Mas finalmente, tendo sido assegurado tanto pelo Dr. Wilkins como pelo

próprio Dr. Wren de que ele havia desistido de sua intenção de prosseguir

nesse trabalho, e não encontrando que houvesse qualquer outra pessoa

planejando prossegui-lo, coloquei-me nessa tarefa, e fui encorajado a pros-

seguir nela pela honra com que a Royal Society me favoreceu, de aprovar es-

ses desenhos (que de tempos em tempos tive a oportunidade de descrever)

que apresentei a ela. E particularmente pelo incitamento de diversas das

pessoas nobres e excelentes dela, que foram especialmente meus amigos,

que me apressaram não apenas a desenvolvê-los mas também a publicá-los.

(Hooke, 1665, fol. g.2)

Vê-se que Hooke não esconde a existência dos desenhos de Wren; e

que o elogia muito. Seria implausível que ele ocultasse no Prefácio alguma

ajuda direta que tivesse recebido de Wren. Por outro lado, seria também

implausível que Wren tivesse desistido de satisfazer o desejo do rei Charles

II, e dedicasse um grande esforço para ajudar de modo anônimo o trabalho

de Hooke.

Deve-se também notar que todas as menções que são feitas por Tho-

mas Birch de apresentações de desenhos microscópicos se referem unica-

mente a Hooke, não havendo nenhuma indicação de que Wren tivesse

apresentado à sociedade qualquer desenho (Neri, 2003, p. 101).

Uma resenha anônima publicada na revista da Royal Society logo após a

publicação da Micrographia afirma explicitamente que Hooke foi o autor das

ilustrações:

Ao representar essas particularidades à visão dos leitores, o autor não ape-

nas deu prova de sua habilidade singular de desenhar todos os tipos de

corpos (tendo ele desenhado todos os esquemas desses 60 objetos micros-

cópicos com sua própria mão) e de seu extraordinário cuidado de fazer

com que fossem gravados de forma tão curiosa pelos mestres daquela arte;

mas ele também sugeriu nas diversas reflexões, feitas sobre esses objetos,

tais conjeturas que provavelmente excitarão e estimularão as cabeças filosó-

ficas a contemplações muito nobres. (Anônimo, 1665, p. 28).

É implausível que a resenha publicada pela própria Royal Society omitisse

a contribuição de Wren ao livro, se tal tivesse ocorrido.

Outro indício importante é que o Prefácio da Micrographia afirma que

“[...] em diversos deles [dos desenhos] os gravadores seguiram muito bem

minhas instruções e desenhos” (Hooke, 1665, fol. f.4) – o que sugere que o

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

131

próprio Hooke fez os desenhos originais a partir dos quais foram criadas

as gravuras do livro.

Por fim, devemos lembrar um ponto que foi apontado nas informa-

ções biográficas de Hooke: durante sua infância ele já mostrava grande

habilidade em desenhar, na sua adolescência foi aprendiz do retratista Peter

Lely (1618-1680), e manteve interesse por arte durante toda sua vida (Neri,

2003, p. 104). É também relevante que Lely era um pintor holandês, e a

arte holandesa desse período havia se especializado na representação deta-

lhada da aparência de objetos. Conforme mencionado pela própria Cathe-

rine Wilson, em sua obra Art of describing Svetlana Alpers sugere que houve

um paralelo entre o interesse dos pintores holandeses do século XVII de

abandonar o uso simbólico da pintura e reproduzir a aparência externa das

coisas, de modo exato muitas vezes com o auxílio de uma lente regis-

trando a textura de tecidos, pele, penas, insetos, etc. e o interesse da pri-

meira geração de microscopistas em estudar e reproduzir as aparências de

objetos e substâncias do dia-a-dia (Wilson, 1988, p. 100).

10 REPERCUSSÃO E INFLUÊNCIA

A Micrographia causou um forte impacto imediato, não apenas na Ingla-

terra mas também no continente. Em 1666 a revista Journal des Sçavans

publicou uma grande resenha da Micrographia (Anônimo, 1666). O artigo

elogia muito o livro de Hooke, e chama a atenção do leitor para algumas

observações de insetos, como a da pata da mosca (que explica como elas

conseguem se prender às superfícies aparentemente lisas), o piolho (cuja

imagem é reproduzida na revista), as patas da pulga e o órgão sugador de

uma mosca. Também menciona detalhadamente a folha de urtiga e o estu-

do de Hooke sobre o mofo.

O livro de Hooke repercutiu não apenas entre os pesquisadores, mas

também na sociedade culta em geral – às vezes, de forma negativa. Thomas

Shadwell escreveu uma peça teatral, “O virtuoso” (1676) onde ridiculariza-

va um tolo cientista amador, Nicholas Gimcrack, que tinha bastante seme-

lhança com Hooke, gastando uma fortuna com microscópios para exami-

nar pulgas, piolhos e enguias do vinagre (Chapman, 1996, p. 259). Robert

South, orador público em Oxford, ridicularizou a Royal Society na inaugura-

ção do Sheldonian Theatre, em 1669, dizendo que os membros da Royal Soci-

ety “não conseguia admirar nada além de pulgas, piolhos e a si próprios”

(Gibson, 1970, p. 338).

132

O trabalho de Hooke estimulou outros pesquisadores, como Antoni

van Leeuwenhoek e Jan Swammerdam, a fazerem estudos detalhados de

seres vivos utilizando o microscópio. Seu cuidado observacional e seu

exemplo de experimentação influenciaram muito estes e outros autores, e

os desenhos da Micrographia estabeleceram o padrão de qualidade a ser

seguido nas obras posteriores. É relevante também notar que as observa-

ções e ilustrações de Hooke não sofreram críticas ou revisões nas décadas

posteriores, e que suas gravuras foram copiadas durante cerca de dois sécu-

los (Weiss & Ziegler, 1928, p. 99).

A Micrographia era uma obra bastante cara. Houve edições de menor

custo, no século seguinte, mas não se trata exatamente de reedições do

livro escrito por Hooke. A Micrographia restaurata, publicada em 1745, é

atribuída normalmente a Hooke, como se fosse uma reprodução resumida

da Micrographia. Na verdade, esta obra contém as ilustrações de Hooke, mas

seu texto, que é bem diferente do contido na Micrographia, foi escrito por

Henry Baker

10

, embora seu nome não apareça na obra (Turner, 1974, p.

62). Os desenhos são exatamente os mesmos, tendo sido utilizadas as pla-

cas metálicas que tinham sido gravadas para Hooke, exceto sete, que não

estavam em boas condições, tendo sido necessário redesenhá-las (Turner,

1974, p. 63). Porém o texto é completamente diferente, não apenas em

estilo, mas também introduzindo informações mais recentes. A evidência

de que foi Baker quem escreveu o texto é fornecida em sua correspondên-

cia (Potter, 1932, pp. 320-321). A obra de Baker foi depois republicada,

também sem o nome do autor, e com outro título: Microscopic observations; or

Dr. Hooke’s wonderful discoveries by the microscope (Baker, 1780).

11 LEEUWENHOEK E HOOKE

Vamos analisar um pouco mais detalhadamente a influência de Hooke

sobre Leeuwenhoek, especialmente porque essa conexão não é bem co-

nhecida.

Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723) era um simples comerciante de

tecidos, quando Hooke começou seus estudos microscópicos. Alguns au-

tores sugerem, sem indicar nenhuma documentação histórica, que foi por

10 Henry Baker (1698-1774) deu contribuições a vários campos da ciência, especialmente à

microscopia (Turner, 1974, p. 53). Uma de suas obras mais populares foi “The microscope

made easy”, publicado em 1742, que teve várias edições e traduções para outros idiomas

(ibid., p. 61).

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

133

causa de seu trabalho por tecidos que ele começou a se interessar por len-

tes e pela microscopia. Howard Gest, por exemplo, afirma:

Leeuwenhoek (1632-1723), que teve pouco estudo formal, abriu uma loja

de tecidos em Delft, Holanda, com a idade de 22 anos. Realmente, sua car-

reira científica provavelmente se originou com seu uso de lentes de aumen-

to de baixo poder para inspecionar tecidos. (Gest, 2004, p. 270)

Brian Ford, por sua vez, afirma que Leeuwenhoek visitou Londres em

1666 e então se interessou pela Micrographia porque apareciam imagens

ampliadas de tecidos (Ford, 2001, p. 30). Os documentos existentes indi-

cam uma história muito diferente.

A fonte mais confiável sobre a origem dos estudos de Leeuwenhoek é

uma carta que ele próprio escreveu à Royal Society em 1685, dez anos depois

do falecimento do seu amigo, o pintor holandês Johannes Vermeer (1632-

1675). Nessa carta, além de falar sobre o artista, ele também forneceu in-

formações sobre sua conexão com o mesmo e sobre o início de sua carrei-

ra científica. A carta acabou não sendo enviada na época, sendo remetida

apenas em 1710 (depois do falecimento do próprio Leeuwenhoek) à Royal

Society, juntamente com vários outros documentos, por sua filha. Foi publi-

cada recentemente uma tradução dessa carta (Klitzman, 2006) que esclare-

ce alguns pontos bastante importantes sobre Leeuwenhoek.

Leeuwenhoek e Vermeer nasceram com um intervalo de apenas dois

dias e viveram na mesma cidade de Delft, em casas próximas, sendo ami-

gos desde tenra idade. Vermeer começou sua carreira artística pintando

cenas bíblicas tradicionais, porém em 1654 começou a procurar representar

aquilo que estava à sua volta, de um modo mais realista (Klitzman, 2006, p.

591).

Leeuwenhoek se dedicou ao comércio de tecidos, mas tinha muitos co-

nhecidos cultos, entre eles Regnier de Graaf (1641-1673), o anatomista que

havia descoberto os ovários humanos. De Graaf utilizara lentes de vidro

simples para seus estudos. Leeuwenhoek lhe pediu que trouxesse uma lente

de Leiden, e quando a recebeu examinou alguns cabelos e se maravilhou

com o que via. Mostrou a lente e os cabelos a Vermeer, que também se

entusiasmou. Portanto, não foi por causa de seu envolvimento com tecidos

que Leeuwenhoek começou a usar lentes.

Foi também De Graaf quem contou a Leeuwenhoek sobre a publicação

da Micrographia. No ano seguinte, quando De Graaf retornou à Inglaterra,

Leeuwenhoek lhe pediu que comprasse o livro de Hooke para ele. Quando

soube do preço (que era muito alto), achou uma exorbitância, mas confir-

134

mou seu interesse e, quando o recebeu, ficou maravilhado com as figuras e

seus detalhes microscópicos.

Após isso, Leeuwenhoek procurou fazer lentes que ampliassem mais,

produzindo então seus primeiros microscópios com uma única pequena

lente – ou seja, seguindo a descrição de Hooke dos seus microscópios

simples. Uma de suas primeiras descobertas ocorreu de modo inesperado:

ralou um pouco de noz moscada para tentar ver, no seu pó, se descobria

por qual motivo ela era picante; adicionou água e o observou ao microscó-

pio, vendo um enorme número de pequenos animais nadando. Imediata-

mente mostrou a descoberta a Vermeer, que lhe perguntou se as pequenas

criaturas viviam na água ou na noz moscada. Examinando então a água de

um canal, Leeuwenhoek reconheceu que ela também continha os pequenos

animais. Deu-se assim a descoberta daquilo que chamamos “protozoários”.

Vermeer o estimulou a divulgar suas descobertas para outras pessoas.

Leeuwenhoek contestou que era um vendedor de tecidos, que não sabia

escrever em latim ou grego, nem desenhar. Seu amigo o aconselhou a es-

crever em holandês, e a desenhar. “Ele me ajudou, treinando-me a dese-

nhar os objetos exatamente como eu os percebia, não aceitando minha

primeira ou segunda tentativa, mas praticando até que minhas imagens e

minha habilidade melhoraram. Eu incluí esses esboços com minha primei-

ra carta à Sociedade [Royal Society]” (Klitzman, 2006, p. 592). Foi De Graaf

quem estabeleceu o contato de Leeuwenhoek com a Royal Society (Weiss &

Ziegler, 1928, p. 100).

Harry Weiss e Grace Ziegler colocaram em dúvida a capacidade de Le-

euwenhoek de desenhar suas observações microscópicas: “Muitos de seus

artigos eram acompanhados por desenhos feitos, não por ele, mas certa-

mente sob sua supervisão” (Weiss & Ziegler, 1928, p. 100). Esta carta não

deixa dúvidas, no entanto, de que ele próprio aprendeu a desenhar, sob a

orientação de Vermeer.

Leeuwenhoek poliu suas próprias lentes e construiu cerca de 500 mi-

croscópios (Woodruff, 1939, p. 506). Em alguns casos, obteve ampliações

de 200 a 300 diâmetros. Os microscópios de Leeuwenhoek se basearam

nos descritos por Hooke. No entanto, ele nunca descreveu detalhes de sua

fabricação, e sabe-se que um conjunto de 26 instrumentos que ele legou à

Royal Society tinha lentes com duas superfícies convexas e não eram esféri-

cas, como se costuma mencionar – sendo portanto diferentes dos de Hoo-

ke (Locy, 1923, p. 102).

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

135

12 ANTES DE HOOKE

Aquilo que o Sidereus Nuncius de Galileo fez com o telescópio e a visão ce-

leste, a Micrographia de Hooke fez com o microscópio. Assim como Galileo

não inventou o telescópio, Hooke também não inventou o microscópio.

Mas o que ele descreveu ter visto no seu microscópio composto despertou

a Europa culta para o maravilhoso mundo interno. (Boorstin, 1986, p. 328)

Desde a Antigüidade já se conhecia a possibilidade de ampliar os obje-

tos vendo-os através de uma esfera de vidro cheia de água, conforme des-

crito por Sêneca no primeiro século da era cristã (Singer, 1914, p. 247).

“Letras, embora muito pequenas e obscuras, são vistas maiores e mais

claras através de uma bola de vidro cheia de água” (Seneca, 1971, I. 6, 5;

vol. 1, pp. 56-59). Lentes convergentes começaram a ser utilizadas na Idade

Média para corrigir problemas de visão, e sua construção foi se aperfeiço-

ando rapidamente. Ao final do século XVI era relativamente comum dis-

por de lentes de aumento, mas elas não eram utilizadas para a pesquisa

científica.

Os mais antigos autores conhecidos que utilizaram lentes para estudar

seres vivos foram Thomas Moffett

11

em 1589 (trabalho publicado postu-

mamente em 1634), Georges Hoefnagel em 1592 (Locy, 1923, p. 96) e o

botânico Fabio Colonna, da Academia dos Linces, em 1606 (Woodruff,

1939, pp. 487-488). Mas utilizaram pequenos aumentos, e não apresenta-

ram resultados relevantes que tivessem sido possibilitados pelas lentes.

Costuma-se atribuir a invenção do microscópio composto a Hans Jans-

sem (1534–1592) e seu filho Zacharias (aprox. 1580-1638), que teriam

construído os primeiros aparelhos aproximadamente em 1590 e presentea-

do com um deles o príncipe Maurício de Nassau (Ball, 1966, p. 51).

Esses instrumentos eram constituídos por tubos capazes de deslizar um

dentro do outro, com uma lente ocular plano-convexa e uma lente objetiva

biconvexa. Estima-se que os primeiros microscópios compostos tinham

um poder de ampliação de aproximadamente 9 vezes. No início da década

de 1620, o fabricante de lentes holandês Cornelius Drebbel fabricava e

vendia microscópios que provavelmente eram versões aperfeiçoadas dos

11 A obra de Moffett se baseou principalmente em uma coleção de desenhos de insetos que

havia pertencido ao naturalista suíço Conrad Gessner (Neri, 2003, p. 7).

136

intrumentos de Janssen (Ball, 1966, p. 52). Em 1622, usando um micros-

cópio de Drebbel, Nicolas Peiresc (1580-1637) descreveu observações de

moscas e pequenos animais aquáticos (ibid., p. 53).

Após estudar um microscópio de Drebbel, Galileo construiu outro se-

melhante, que em 1624 foi fornecido ao príncipe Federico Cesi (1585-

1630), fundador da Academia dos Linces. No ano seguinte, Cesi e Frances-

co Stelluti (1577-1652) utilizaram o aparelho para estudar abelhas, publi-

cando em 1625 um trabalho chamado Apiarium, com desenhos de Stelluti

(Ball, 1966, p. 53; Bardell, 1983, p. 36). O estudo foi reeditado em 1630, na

Melissographia. Na descrição de suas observações, comentaram a dificuldade

de focalizar ao mesmo tempo todos os detalhes dos insetos. Foi Giovanni

Faber, outro membro da Academia dos Linces, que cunhou o nome “mi-

croscópio” (Ball, 1966, p. 54).

Ao mesmo tempo, microscópios simples (com uma única lente), muito

mais baratos, eram utilizados como diversão, para examinar moscas ou

pulgas presas dentro de um tubo (Locy, 1923, p. 100). É muito curioso que

durante um longo tempo o microscópio composto não tenha despertado

grande interesse por parte dos naturalistas (Ball, 1966, p. 51). O microscó-

pio era considerado um novo brinquedo, e embora aquilo que era visto

através dele produzisse espanto, não levou a observações científicas origi-

nais e relevantes durante um longo tempo.

William Harvey fala em dois lugares, em sua obra sobre a circulação do

sangue (publicada em 1628) sobre o uso de lentes para observações (Locy,

1923, p. 97). Utilizando um microscópio simples, ele descreveu o batimen-

to do coração de vespas e moscas (Woodruff, 1939, p. 488).

Giovanni Battista Hodierna (1597-1660) publicou em 1644 o livro

L’occhio della mosca sobre os olhos de aproximadamente 30 espécies de inse-

tos. Esta parece ter sido a primeira obra dedicada unicamente ao estudo

microscópico de um ser vivo, usando também esse instrumento na disse-

cação de um inseto (Bardell, 1993, p. 570). É uma obra pequena, com ape-

nas 24 páginas.

Em 1651 aparece a primeira publicação em inglês com observações mi-

croscópicas. Trata-se de uma obra sobre anatomia escrita por Nathaniel

Highmore (1613-85). O capítulo 8 do livro, que trata sobre embriologia,

descreve observações microscópicas do desenvolvimento do embrião de

uma galinha (Bardell, 2005, p. 395).

O médico Pierre Borel (c. 1620-1671) apresentou em sua obra Observati-

onum microcospicarum centuria descrições muito curtas (cerca de um parágrafo)

Filosofia e História da Biologia, v. 6, n. 1, p. 105-142, 2011.

137

para cada pequeno animal que observou, e em alguns casos adicionou figu-

ras de pequeno tamanho, sem muitos detalhes (Borel, 1656). Embora seu

trabalho não tenha sido considerado muito importante, parece ter sido o

ponto de partida de muitas das observações de Hooke, que descreveu

antes daquele a ponta de uma agulha, a borda de uma navalha, a folha de

uma urtiga e outros dos objetos que foram estudados depois na Microgra-

phia (a respeito de Borel, ver o artigo de Chabbert, 1968). No mesmo ano,

Francesco Fontana (aprox. 1585-1656) publicou diversas observações so-

bre insetos (Woodruff, 1939, p. 488).

Em 1661 Marcello Malpighi (1628-1694) descreveu suas observações

microscópicas dos capilares no pulmão de rãs, completando o trabalho de

William Harvey sobre a circulação do sangue (Woodruff, 1939, p. 497; Ball,

1966, p. 57). Seu uso do microscópio era novo no sentido de utilizá-lo para

responder a perguntas científicas bem definidas e resolver um problema (a

circulação do sangue). No entanto, esse foi apenas um caso isolado. O

interesse principal parecia simplesmente o de descrever novidades vistas ao

microscópio. Não havia sistematização, nem continuidade entre os diver-

sos estudos realizados na época (Ball, 1966, p. 57).

Por fim, podemos citar o trabalho de Henry Power (1623-1668), que

publicou em 1664 seu livro Experimental philosophy, in three books: containing

new experiments microscopical, mercurial, magnetical. Utilizando um microscópio

com aumento de aproximadamente 20 vezes, Power fez descrições de

insetos, como esta de uma pulga:

Ela parece tão grande quanto um pequeno camarão ou lagostim, com uma

cabeça pequena, mas nela dois belos olhos redondos e proeminentes, com

a circunferência de uma lantejoula; no meio dos quais você pode ver (atra-

vés da córnea diáfana) uma mancha redonda negra, que é a pupila ou maçã

do olho, envolta por um círculo brilhante esverdeado, que é a íris (tão vi-

brante e gloriosa quanto o olho de um gato), muito admirável de contem-

plar. (Power, 1664, p. 1)

Existem pulgas que possuem visão, outras que são cegas, podendo não

ter olhos presentes. Os olhos das pulgas, ao contrário dos olhos da maioria

dos insetos, são simples, constituídos por um único ocelo (Russell, 1913, p.

24). No entanto, a estrutura desse olho simples é muito diferente da dos

vertebrados, ao contrário do que Power sugeriu.

Power trabalhou na mesma época que Hooke, apresentando também

comunicados à Royal Society. Por exemplo, no dia 24 de junho de 1663,

“Dr. Power apresentou diversas observações microscópicas realizadas por

138

ele próprio: e Dr. Wilkins, Dr. Wren e Mr. Hooke foram designados para

se reunir para realizar mais observações de natureza semelhante” (Birch,

1756, vol. 1, p. 266). No entanto, utilizou microscópios com pequeno po-

der de ampliação; não foi suficientemente cuidadoso em suas observações;

e não produziu ilustrações daquilo que observou.

13 COMENTÁRIOS FINAIS

Robert Hooke não inventou o microscópio nem foi o primeiro a utili-

zá-lo no estudo de seres vivos. Porém, pode-se dizer que ele se destacou de

seus antecessores pelo uso do microscópio simples com grande poder de

ampliação, pelo cuidado das descrições e desenhos, pela variedade de obje-

tos naturais estudados e, principalmente, pelo seu esforço em compreender

a função de cada parte dos pequenos seres vivos, fazendo não apenas ob-

servações mas também experimentos, de forma sistemática. Seu trabalho

foi tomado como modelo pelos outros microscopistas que, logo depois,

deram importantes contribuições para o estudo dos seres vivos.

Muitos fatores parecem ter contribuído para que Hooke atingisse esse

novo patamar na microscopia. Por um lado, sua habilidade e treino artísti-

co foram os pré-requisitos para a execução dos maravilhosos desenhos que

publicou. Por outro, a sua grande experiência prévia como experimentador

e construtor de aparelhos, bem como a convivência com outros importan-

tes pesquisadores da época, levou ao aperfeiçoamento dos microscópios

utilizados e ao uso adequado dos mesmos, assim como proporcionaram a

Hooke a atitude experimental adequada. Por fim, a apresentação e discus-

são de seus estudos microscópicos na Royal Society deve ter tido também

uma importante influência no aperfeiçoamento e correção de seu trabalho.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece o apoio recebido do Conselho Nacional de Desen-

volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) que possibilitou o desenvol-

vimento desta pesquisa.

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Data de submissão: 26/10/2010; Aprovado para publicação: 20/01/2011

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