A cultura popular e o patrimonio e imaterial em jogo

Cultura material e cultura imaterial são diferentes modalidades culturais que preveem a existência de elementos culturais fisicamente construídos e elementos culturais que não possuem uma criação física e material, respectivamente.

Falando em patrimônio cultural, por exemplo, temos manifestações culturais que compõem um conjunto patrimonial material, como construções e obras de arte, e um conjunto patrimonial cultural imaterial, como festas, festivais, danças, músicas e estilos musicais, culinária etc.

Confira no nosso podcast: Cultura material e imaterial

Definição de cultura

Música e artesanato compreendem a cultura imaterial e a cultura material. O instrumento musical artesanal consegue unir os dois elementos em um só.

O termo “cultura” é vasto, possuindo vários significados. Segundo o Dicionário Aurélio online|1|, cultura significa:

1. Ato, arte, modo de cultivar;

2. Lavoura;

3. Conjunto das operações necessárias para que a terra produza;

4. Vegetal cultivado;

5. Meio de conservar, aumentar e utilizar certos produtos naturais;

6. Aplicação do espírito a (determinado estudo ou trabalho intelectual);

7. Instrução, saber, estudo;

8. Apuro, perfeição, cuidado.

Cultura significa cultivo, cuidado, criação, conservação e manutenção, além de conhecimento. Todos esses significados da palavra convergem numa ideia que a sociedade mantém de sua cultura: a formação intelectual, estética, artística, paisagística, arquitetônica, religiosa, espiritual, científica, filosófica, gastronômica, linguística e musical de um povo.

O povo é capaz de criar, e a sua criação é somada a um amontoado de criações anteriores. A soma de todas as criações desse povo constitui a sua cultura. O aspecto de cultivo presente na cultura de um povo é justamente o ato de mantê-la viva para que não se perca.

A sociologia lida diretamente com o estudo da cultura na tentativa de estabelecer laços elementares que formam determinadas sociedades. A antropologia, enquanto ciência social, é aquela que busca compreender as estruturas das formações humanas analisando, entre outros aspectos, a cultura das sociedades.

A cultura também nos auxilia diretamente, sendo que “é por meio da cultura que buscamos soluções para nossos problemas cotidianos, interpretamos a realidade e produzimos novas formas de interação social”|2|. Podemos afirmar que é por meio da cultura que cultivamos o idioma, as crenças, as religiões, os hábitos, a moral e até mesmo a ciência. Para conhecer mais sobre esse conceito, leia o texto: Cultura.

Diferença entre cultura material e cultura imaterial

A diferença entre esses dois modos de fazer-se cultura é simples e encontra-se nos próprios termos em questão: cultura material compreende os fazeres culturais que são vistos, são tocados e existem numa realidade material física. Cultura imaterial compreende tudo aquilo que faz parte de uma formação cultural, mas não existe fisicamente ou não existe enquanto uma realidade material presente o tempo todo, sendo “consumido” rapidamente.

Para entendermos melhor o sentido e a diferença dos dois termos, listamos alguns exemplos de cultura material e cultura imaterial:

As obras de artes plásticas, em geral, compreendem elementos culturais materiais. Pinturas, esculturas, artesanatos, arquitetura, paisagismo, fotografia, intervenções humanas na paisagem natural, literatura, entre outras formas ou fazeres culturais que existem fisicamente, podem ser considerados elementos culturais materiais.

Tudo aquilo que faz parte da vasta gama cultural de uma sociedade, mas não existe concretamente, pode ser considerado cultura imaterial. O idioma, as gírias e variações linguísticas, a religião, as festas populares, as festas religiosas, a dança, a música, as lendas e crenças populares, e a culinária são manifestações culturais que identificam determinadas sociedades e não existem materialmente.

Veja também: Origem da festa junina - como foi o início dessa festividade no Brasil?

Patrimônio cultural material e imaterial

A cultura de um povo deve ser preservada para que a identidade dele seja mantida. Nesse sentido, a cultura é uma forma de coesão social, ou seja, ela é capaz de unir as pessoas de uma sociedade em torno de um bem comum que é, justamente, a identificação dos membros daquela sociedade com a sua cultura.

O conjunto desses elementos culturais mantidos tradicionalmente pelas sociedades é chamado de patrimônio cultural. Assim como a cultura, o patrimônio cultural pode ser classificado como material ou imaterial.

Para que a cultura brasileira como um todo e de todas as regiões, etnias, povos e estados seja mantida, existe no Brasil uma entidade pública chamada Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O Iphan é responsável por identificar elementos culturais tanto materiais quanto imateriais e cuidar para que eles sejam mantidos intactos, além de promover a restauração do patrimônio cultural material.

Fazendo um trabalho parecido com o do Iphan, porém a nível mundial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) também busca identificar, incentivar e preservar elementos culturais materiais ou imateriais no mundo. Tanto a Unesco quanto o Iphan realizam intensos estudos sobre os elementos que pretendem incluir nas suas listas de patrimônio que deve ser preservado, e essa inclusão é chamada de “tombamento”. Para aprofundar-se mais nesse tema, acesse: Patrimônio histórico cultural.

Cultura material e imaterial no Brasil

No Brasil temos vários elementos culturais materiais e imateriais tombados pelo Iphan ou pela Unesco. No Pará ocorre, todos os anos, uma tradição religiosa de vertente católica chamada Círio de Nazaré, na qual há a travessia da imagem de Nossa Senhora do Nazaré, por uma procissão, pela cidade de Belém. O Círio de Nazaré é tombado pelo Iphan como patrimônio histórico cultural imaterial do Brasil.

A cultura popular e o patrimonio e imaterial em jogo
O Círio de Nazaré é uma festa religiosa tombada como patrimônio cultural imaterial do Brasil. [1]

Na cidade de Pirenópolis, interior do estado de Goiás, ocorre uma tradicional festa católica chamada Festa do Divino Espírito Santo. Como manda a tradição da festa que dura uma semana, nos três últimos dias, há a encenação de uma batalha de cavaleiros, sendo eles representantes dos mouros (muçulmanos) e cristãos nas Cruzadas. A encenação é chamada de Cavalhadas, uma tradição tombada como patrimônio histórico cultural imaterial do Brasil pelo Iphan.

O Iphan também tombou o frevo (tradicional festa carnavalesca pernambucana) e o acarajé (prato típico baiano criado com base nas raízes da culinária africana por negros escravizados no Brasil) como elementos culturais imateriais do Brasil. Além desses, centenas de outros tombamentos foram registrados pelo instituto.

A cultura popular e o patrimonio e imaterial em jogo
Os mascarados são figuras que animam as Cavalhadas de Pirenópolis.

Como elementos culturais materiais tombados pela Unesco, temos 13 tombamentos de cidades ou partes de cidades brasileiras escolhidas por sua representação artística, arquitetônica e paisagística. São eles:

  • Conjunto da Pampulha – MG;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Brasília – DF;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico da Cidade de Goiás (antiga capital do Estado de Goiás) – GO;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Diamantina – MG;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Ouro Preto – MG;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Olinda – PE;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de São Luís – MA;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Salvador – BA;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico Congonhas – MG;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de São Cristóvão – SE;

  • Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de São Miguel das Missões – RS;

  • Conjunto paisagístico do Rio de Janeiro – RJ;

  • Sítios arqueológicos da Serra da Capivara – PI.

Crédito da imagem

[1] Papy Leite/Commons

Notas

|1| AURÉLIO. Dicionário do Aurélio Online 2018. Disponível em: . Acesso em: 03 de Abril de 2019.

|2| SILVA, A. et al. Sociologia em movimento, vol. único – 2 ed. São Paulo: Moderna, 2017. p. 60.

Por Francisco Porfírio
Professor de Sociologia

ARTIGOS

ORIGINAIS

Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

JOGO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: MUSEUS

DE BRINQUEDOS NO BRASIL

GAMES AS CULTURAL HERITAGE: TOYS MUSEUMS IN BRAZIL

JUEGO COMO PATRIMONIO CULTURAL: MUSEOS DE JUGUETES EN BRASIL

Elizara Carolina Marin*, Mariani Guedes Santiago*

Licence

Creative Commom

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo situar os museus de brinquedos no Brasil

e, especicamente, compreender a história da constituição, acervo e relação educativa

do Museu do Brinquedo Popular, localizado no Instituto Federal do Rio Grande do

Norte - Cidade Alta, Natal/RN. Por meio de análise documental, de entrevistas e

observações, identicamos ser um museu de brinquedos constituído por artefatos

elaborados pelos próprios jogadores. Destaca-se a importância da pesquisa na Educação

Física, identicando, registrando e reunindo no espaço museal parte do patrimônio

lúdico desenvolvido pelas comunidades. Muito do processo e signicados destes

brinquedos esmaece quando são transportados para o museu, mas, ali, ganham a

possibilidade educativa de congregar a diversidade que estava dispersa, construir novas

relações sociais, evocar a memória, provocar o desejo de brincar e reconhecer o jogo

como patrimônio cultural material e imaterial.

Abstract: This study looks into toys museums in Brazil to understand the history of

establishment, the collections and the educational relationship of the Museu do Brinquedo

Popular, located at the Instituto Federal do Rio Grande do Norte, in Cidade Alta, Natal,

RN. Using documentary analysis, interviews and observations, the study found that it is

a toy museum of artifacts made by the very people who played with them. Its constitution

highlights the importance of research in Physical Education, identifying, recording and

gathering part of the playful heritage developed by the communities in the space of the

museum. Much of the process and meanings of these toys fade when they are transferred

to the museum but they gain the educational possibility of gathering the diversity that was

dispersed, building new social relations, evoking memory, provoking the desire to play,

and recognizing game as material and immaterial heritage.

Resumen: Esta investigación tiene el objetivo de situar los museos de juguetes en Brasil

y, especícamente, comprender la historia de la constitución, el acervo y la relación

educativa del Museo del Juguete Popular, que se encuentra en el Instituto Federal de

Rio Grande do Norte/Cidade Alta/Natal-RN. Realizada a través de análisis documental,

de entrevistas y observaciones, identicamos ser un museo de juguetes constituido

por artefactos elaborados por los propios jugadores. Se destaca la importancia de la

investigación en la Educación Física, identicando, registrando y reuniendo en el espacio

del museo parte del patrimonio lúdico desarrollado por las comunidades. Mucho del

proceso y signicados de estos juguetes se desvanecen al ser transportados para el

museo, pero, allí, ganan la posibilidad educativa de congregar la diversidad que estaba

dispersa, de construir nuevas relaciones sociales, evocar la memoria, provocar el deseo

de jugar y reconocer el juego como patrimonio cultural material e inmaterial.

Palavras chave:

Jogos e brinquedos.

Características

culturais.

Museu.

Educação Física.

*Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM). Santa Maria, RS, Brasil.

E-mail: ;

Recebido em: 21-10-2018

Aprovado em: 29-04-2019

Publicado em: 26-08-2019

DOI:

https://doi.org/10.22456/1982-8918.87591

Keywords:

Games and toys.

Cultural

characteristics.

Museum.

Physical Education.

Palabras clave:

Juegos y juguetes.

Características

culturales.

Museo.

Educación Física.

Elizara Carolina Marin, Mariani Guedes Santiago

02

Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

1 JOGO COMO PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL

No contexto mundial observa-se um movimento recente de pensar o jogo e/ou o

brinquedo, entre outras manifestações culturais gestadas pelo povo, como patrimônio material

e imaterial da humanidade e como artefato museológico.

A noção de patrimônio advém etimologicamente da concepção de “herança paterna”.

Nas línguas românicas, explicam Funari e Carvalho (2005, p.34), o termo patrimônio deriva

do latim patrimonium e faz alusão à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados” ou

“aos monumentos herdados das gerações anteriores”. Nas últimas décadas do século XX a

compreensão de patrimônio se alargou. Partindo da definição de sítios arqueológicos, obras

de arte, monumentos, conjuntos arquitetônicos e objetos de um determinado segmento social

– em geral, representantes do poder econômico e político, como destaca Arantes (2004) –, o

entendimento de patrimônio passa a incorporar as representações, práticas e expressões que

caracterizam a cultura de cada povo, transmitida através de festas, rituais, danças, ritmos e

modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades.

Essa expansão resultou, como assinalam Pelegrini e Funari (2013), majoritariamente,

de pressões externas à Europa, que pressionam a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) a pensar no patrimônio imaterial. Foram países

da América Latina, a exemplo da Bolívia, Peru e México, que, entre os anos de 1970 e 1980,

protagonizaram mudanças no cenário, solicitando a defesa do patrimônio cultural tradicional

das comunidades via convenções nacionais e sistematização de Cartas e Declaração.

Também, no Brasil, as sucessivas pressões resultantes da expansão de movimentos sociais

abriram caminho para a revisão de diferentes temas, dentre eles, o patrimônio, o que resultou

na ampliação da legislação, ao serem incluídos bens tangíveis e intangíveis na constituição de

1988. Com isso, fundou-se, em 2000, o Programa Nacional para a Salvaguarda do Patrimônio

Cultural Imaterial, por meio do Decreto Federal n. 3551, elaborado pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (Iphan), situado no Ministério da Cultura.

Desse modo, teve início um processo de proteção de patrimônio imaterial, orientado por

uma percepção antropológica de cultura, e que antecedeu a aprovação da Convenção para a

Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, ocorrida em 2003, pela UNESCO (PELEGRINI; FUNARI,

2013). Em entrevista concedida a Labate e Goldstein (2009), Antônio Arantes elucida que, na

prática, diferenciaram-se os instrumentos de proteção a serem utilizados para a salvaguarda

do patrimônio imaterial. O termo tombamento, que determina a manutenção ou conservação

física de um bem patrimonial, é utilizado em relação ao patrimônio material. De outro modo,

o termo salvaguarda é utilizado para casos de patrimônio de natureza imaterial, que é vivo e

dinâmico.

No âmbito museológico, aponta Padiglione (2010; 2013), esta acepção introduz a relação

entre museu e vida, e abre para a possibilidade de expor as atividades das pessoas comuns e

suas vidas cotidianas, como, em nosso caso, os jogos e/ou brinquedos. O que vai para além,

portanto, da acepção histórica de museus, centrada na cultura material e hegemônica, que

conserva, expõe, comunica, para fins de preservação e conhecimento, conjuntos e coleções

de valor histórico, artístico, científico e técnico.

É importante ressaltar que o reconhecimento dos jogos, de seus materiais e instrumentos

como patrimônio cultural no continente americano e no mundo é recente. Porém, ainda mais

Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

03

recente é o reconhecimento de jogos como patrimônio cultural imaterial, datado do século

XXI. Em meio aos jogos já reconhecidos, presentes na lista da UNESCO, podemos destacar

o Chovkan (jogo equestre) da República do Azerbaijão, inscrito em 2013; o rito e jogos de tiro

de corda realizados por cultivadores de arroz em países da Ásia (Camboja, Filipinas, Vietnam

e República da Coreia), inscrito em 2015; a roda de capoeira, do Brasil, inscrita pela UNESCO

em 2014 (MARIN, 2017).

Historicamente, os jogos e/ou brinquedos estiveram presentes nos museus como

peças arqueológicas, etnográficas, artísticas, tal como no Museu da Acrópole, em Atenas, na

Grécia (que expõe p.ex. bolas, dados e animais em miniatura), no Museu Nacional Romano,

em Roma, na Itália (p.ex. pequenos bonecos em cobre). Uma tendência estendida inclusive ao

Brasil, como descreve Guedes (2002; 2003; 2004)), por meio de sua ação e pesquisa no Museu

Histórico Nacional1 (MHN), no Rio de Janeiro, o qual apresentava como um dos primeiros

objetos coletados (em 1922) um tabuleiro de xadrez do século XIX, um barco (em miniatura)

em marfim, movido a corda, peças pertencentes ao Imperador D. Pedro I. O início efetivo

de um acervo de brinquedos neste museu ocorre em 1986 e se intensifica a partir de 1997,

constituindo uma seção de brinquedos. Como relata Guedes (2003, p. 139), o Museu Histórico

Nacional “estava essencialmente voltado para recolher e preservar os objetos e testemunhos

da história, dos grandes feitos da nação, das personalidades do país”. No horizonte deste

projeto político e social não havia espaço para o brinquedo e o brincar em sua singularidade,

menos ainda em sua diversidade.

Afinal, de que jogos e/ou brinquedos estamos falando? Especificamente do tradicional,

caracterizado por Cascudo (1972) como “brinquedo popular”, ou seja, como sendo

[…] sinônimo de jogos, rondas, divertimentos tradicionais infantis, cantados,

declamados, ritmados ou não, de movimento, etc. Brinquedo é ainda o objeto

material para brincar, carro, arco, boneca, soldado. Também dirá a própria ação de

brincar. Brinquedo de dona de casa, de cobra-cega, de galinha-gorda, de chicote

queimado (CASCUDO, 1972, p.170).

Diferenciar entre brinquedo, brincadeiras, jogos e até mesmo folguedo cria dificuldades,

ou ainda inviabiliza compreendê-los. Isso porque, na cultura popular, um folguedo como o Bumba

meu boi, que mistura teatro, dança, música e circo, é denominado brincadeira pelos participantes.

Daí porque os participantes dessas brincadeiras se autodenominam “brincantes”, aqueles que

brincam e fazem brincar. Termo também muito utilizado pelo multiartista Antônio Nóbrega, como

destacam Coelho e Falcão (1995, p.62), para designar o bufão, palhaço, arlequim, brincador,

esse tipo popular que povoa de alegria as ruas e praças do Brasil, que encenam papéis lúdicos,

“cujo espetáculo em que participa é o Brinquedo”. A articulação entre jogo, brinquedo e brincante

também vem sendo adotada na psicologia da arte (MOREIRA, 2015), no lazer (SAURA, 2014),

na Educação (SOUZA, 2001) na Educação Física (MARIN; RIBAS, 2013; SAURA, 2014;

SANTIAGO, 2017) e como proposição pedagógica (GOMES-DA-SILVA, 2016).

Partindo desses pressupostos buscamos identificar os museus de jogos e/ou brinquedos

catalogados e cadastrados no Guia dos Museus Brasileiros/GMB (INSTITUTO BRASILEIRO

DE MUSEUS, 2011)2, trabalho desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e

1 Fundado em 1922, o Museu Histórico Nacional tornou-se o mais importante museu de história do país, por reunir um acervo com cerca de

258 mil itens, entre objetos, documentos e livros, e por ser uma instituição de produção e difusão de conhecimento.

2 O Guia dos Museus Brasileiros apresenta 3.118 museus, incluindo 23 museus virtuais, mapeados pelo Ibram em território nacional até o

ano de 2011. Organizado por região do país, traz dados sobre o ano de criação, situação atual, endereço, horário de funcionamento, tipologia

de acervo, acessibilidade, infraestrutura e natureza administrativa.

Elizara Carolina Marin, Mariani Guedes Santiago

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Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

compreender a especificidade do Museu do Brinquedo Popular, localizado no Rio Grande do

Norte, referente à história de sua constituição, ao acervo, sua disposição espacial e proposição

educativa. A escolha deste museu se deu por ser bastante representativo em relação ao tema

abordado, além de apresentar muitas semelhanças com os demais, relativas a funcionamento

e dificuldades. Mas, especialmente, por este museu ter sido resultado de larga pesquisa de

campo, coordenada por pesquisadores da área da Educação Física e lazer.

Realizamos análise documental, via pressupostos de Cellard (2012), levando em

conta as seguintes fontes: Guia dos Museus Brasileiros; Projeto do Museu registrado no IFRN

(OLIVEIRA, 2016b3); Ata da Reunião com os Coordenadores dos Museus de Jogos, realizada

no dia 23 de outubro de 2015, como parte da Programação do III Encontro Pan-americano de

Jogos e Esportes Autóctones e Tradicionais - Palmas/TO (ENCONTRO PAN-AMERICANO

DE JOGOS E ESPORTES AUTÓCTONES E TRADICIONAIS, 2015). Também fez parte das

opções metodológicas pesquisa de campo realizada por meio de entrevista (com o coordenador

do Museu) e observações, ancoradas em Minayo (2009), realizadas nos períodos de 20 a 24

de junho de 2016, 12 de agosto de 2016 e 26 de fevereiro de 2018.

2 MUSEU DE BRINQUEDOS NO TERRITÓRIO BRASILEIRO

O âmbito da constituição/formalização de museus específicos de jogos e/ou brinquedos

tem início na Europa, por volta dos anos 1980, a exemplo de SpeelgoedMuseum, na Bélgica,

em 1982 e Musée Suisse du Jeu, na Suíça, em 1987. no Brasil, esse movimento ocorre,

majoritariamente, a partir dos anos de 1990.

Com base no mapeamento realizado pelo Ibram, identificamos oito museus específicos

de brinquedos e/ou jogos no território nacional, o que não significa a totalidade, ilustrados na

Figura 1.

Figura 1- Mapa dos Museus de Brinquedos no Brasil

Fonte: Arquivo da autoria

3 OLIVEIRA, Marcus Vinícius Farias. Museu do Brinquedo Popular. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande

do Norte. Pró Reitoria de Extensão Projeto de Extensão - Fluxo contínuo. Edital de uxo contínuo Nº 01/2016 PROEX/IFRN. 2016b. Trabalho

não publicado.

Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

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Identificamos que a iniciativa de constituição destes museus foi individual ou de um

pequeno grupo. Seis deles estão ligados a instituições de ensino superior, derivados da

iniciativa de pesquisadores que objetivaram a formação de professores via experiência lúdica,

tal como assinalam Camilo (2010) e Rogério (2013), embora a visitação (os usos) demonstre

transbordar os fins acadêmicos.

Conforme o mapeamento dos museus (Figura 1), passamos à apresentação de cada

um. Iniciamos com a Região Sul, onde estão localizados dois museus. Um deles, o Museu do

Brinquedo da Ilha de Santa Catarina, localizado na Universidade Federal de Santa Catarina/

UFSC, de natureza pública, federal, fundado em 1999. Abriga acervo do tipo histórico, contando

com 144 peças catalogadas. O outro, o Museu da Infância, localizado na Universidade do

Extremo Sul Catarinense/Unesc, foi criado em 2005, e apresenta um acervo que perpassa

áreas da Antropologia e Etnografia, Artes Visuais, Imagem e Som. Como forma de ampliar as

possibilidades de conhecer este museu, em 2006 foi lançado o Museu Virtual da Infância, com

um banco de dados no qual estão cadastrados mais de 700 itens relativos à infância.

Na Região Sudeste encontram-se três museus, dois em São Paulo ligados a instituições

de ensino superior, e um em Minas Gerais, sendo respectivamente o Museu da Educação

e do Brinquedo (MEB), localizado na Universidade de São Paulo/USP, de natureza pública

estadual, foi criado em 1985 (atualmente desativado). Conta com 555 peças (bonecas,

carrinhos, acessórios para cozinha, jogos, casinhas de bonecas, brinquedos musicais e

eletrônicos), 128 brinquedos artesanais, 98 livros infantis e didáticos, 200 registros fotográficos

das primeiras pré-escolas paulistas e três mil jogos do Brasil e de outros países. E o Museu do

Brinquedo da FAFIL, localizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Carlos Queiroz”

(Santa Cruz do Rio Pardo), criado em 2008 (atualmente desativado), de natureza privada,

apresenta acervo do tipo Artes Visuais. Por fim, em Minas Gerais há o Museu dos Brinquedos,

de natureza privada – fundação, ligado ao Instituto Cultural Luiza Meyer de Azevedo, criado

em 2003, com acervo de aproximadamente 5 mil peças, sendo a tipologia do acervo História,

Imagem e Som.

Na Região Centro-Oeste, em Cuiabá/Mato Grosso, foi inaugurado, em 1999, o Museu

das Bonecas e dos Brinquedos. De natureza privada, originou-se da ação entusiasmada de

colecionadora que assume o trabalho de constituir e recuperar o acervo, de organizar o espaço

e mediar as visitações. Compõem o acervo em torno de 6 mil itens composto por bonecas(os)

com seus assessórios e mobiliário de diferentes culturas e países.

E, na Região Nordeste, encontra-se o Museu da Infância e do Brinquedo, antes ligado

à Universidade Federal do Ceará/Fortaleza, criado em 2012, atualmente denominado Museu

do Brinquedo de Fortaleza, conta com um acervo de aproximadamente 2.500 brinquedos; e

o Museu do Brinquedo Popular, ligado ao Instituto Federal do Rio Grande do Norte - Campus

Cidade Alta, Natal/RN, de natureza público-federal, criado em 2009, o qual passamos a

destacar a seguir.

3 MUSEU DO BRINQUEDO POPULAR – IFRN

A extensa pesquisa de campo realizada no período de 2006 a 2008 pelo Núcleo de

Estudos Culturais da Ludicidade Infantil (NECLI-IFRN), que objetivou conhecer “o mundo que

compõe a ampla produção sócio-histórica e cultural da ludicidade infantil norte-rio-grandense”

Elizara Carolina Marin, Mariani Guedes Santiago

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Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

(OLIVEIRA et al., 2010, p.15), resultou no livro Brinquedos e brincadeiras populares: identidade

e memória (2010), e no acervo de mais de 300 brinquedos, os quais constituem um contributo

para o inventário e preservação de todo um patrimônio cultural criado, produzido e reproduzido

por crianças e adultos norte-rio-grandenses.

Esta quantidade e variedade de brinquedos, associada à experiência dos pesquisadores

com Educação Física e educação infantil, resultou, inicialmente, em exposições destes

brinquedos pela cidade – no Campus Central do Instituto Federal do Rio Grande do Norte

(IFRN) e na Pinacoteca da cidade – e posterior acervo do Museu do Brinquedo Popular,

instalado no novo prédio do IFRN, no bairro Cidade Alta. Segundo Oliveira (2016a, p.125), é

um prédio com valor histórico para a cidade, restaurado com a finalidade de “funcionar como

centro cultural e de formação profissional, com cursos voltados para a cultura”.

Entre os objetivos da criação do Museu destaca-se, nas palavras de Oliveira (2016b)4,

preservar e difundir a cultura lúdica da criança potiguar, “construída na argamassa de múltiplas

culturas, entre as quais pode-se mencionar a influência africana, indígena e portuguesa entre

outras [...]”.

A constituição do Museu se concretizou pelo esforço e dedicação de um pequeno

grupo de pessoas, não sem conflitos devido a interesses diversos referentes a estrutura física,

orçamentária e recursos humanos. Do mesmo modo, sua continuidade também contou com

a colaboração do grupo, na medida em que diferentes funções são assumidas para a sua

manutenção, a exemplo de restauração do acervo, agenda das visitas, formação dos guias,

entre outras.

Comungam dificuldades expressas pelos demais museus de brinquedos do país,

conforme Ata (ENCONTRO PAN-AMERICANO DE JOGOS E ESPORTES AUTÓCTONES E

TRADICIONAIS, 2015), quer seja no âmbito da manutenção, qualificação e divulgação dos

museus por falta de: verbas; compreensão social acerca da importância da prática museal;

políticas públicas municipais, estaduais e federais; entendimento do museu como espaço

educativo e investigativo; articulações com o Ibram; qualificação dos profissionais que atuam

no museu; constituição de espaço físico para reserva técnica; planejamento com relação a

fomento, a vínculos com as mídias e métodos avaliativos das ações realizadas.

O Museu do Brinquedo Popular abre suas portas diariamente com a mediação e

parceria acadêmica dos estudantes de diferentes cursos do IFRN - Cidade Alta, em especial,

do curso Técnico Subsequente em Guia de Turismo, que atuam na secretaria e nas visitas

guiadas de grupos escolares da cidade e região. Os estudantes assumem função especial

no museu tanto na organização do acervo quanto na ação educativa comprometida com a

compreensão e valorização do brinquedo. A capacitação para assumirem tal função deriva das

reuniões de estudos com o gestor do museu.

Além de projeção local, angariou projeção estadual e nacional. Muito provavelmente,

por congregar uma coleção que toca a todas as idades, segmentos sociais e gêneros. Benjamin

(1984, p.64), na síntese elaborada sobre uma exposição de brinquedos antigos em 1928, já

ressaltava o intenso interesse das crianças e dos adultos – incluso como objeto de pesquisa –

que levava a pequena sala de exposição a jamais ficar vazia. A resposta, para o autor, é que

4 OLIVEIRA, Marcus Vinícius Farias. Museu do Brinquedo Popular. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande

do Norte. Pró Reitoria de Extensão Projeto de Extensão - Fluxo contínuo. Edital de fluxo contínuo Nº 01/2016 PROEX/IFRN. 2016b. Trabalho

não publicado.

Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

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“brincar significa sempre libertação”. Bárbara Spadaccini, curadora da coleção de brinquedos

do Museu de Artes decorativas de Paris, em entrevista para Guedes (2003, p.141), também

assinala a seção de brinquedos como a mais atraente no museu, por propiciar “empatia

imediata; é o elo entre gerações”. Os brinquedos têm a magia de transportar de um tempo para

outro, evocar lembranças da infância, ou de rituais e imagens ancestrais que nos constituem.

Afinal, os jogos e/ou brinquedos foram e são fundamentais nas experiências das gerações

passadas e atuais, devido “às habilidades que estimularam, às emoções que produziram, aos

encontros que geraram, aos sonhos que alimentaram e aos sorrisos que provocaram [...]”,

sintetiza Amado (2010, p.13).

O acervo do Museu do Brinquedo Popular é, portanto, majoritariamente produto da

criatividade e imaginação de moradores de 48 municípios norte-rio-grandenses, espalhados

entre a zona urbana e rural. Significa dizer que é constituído com artefatos feitos pelas mãos

dos brincantes/jogadores, artefatos do próprio brincar.

Sobre o piso vermelho do Museu, em alturas acessíveis ao toque, nas paredes e no

teto, distribuem-se os brinquedos nos três ambientes conectados por amplas passagens, como

demonstra a Figura 2.

Figura 2- Planta do Museu do Brinquedo Popular –IFRN

Fonte: Arquivo da autoria

Os brinquedos estão organizados no espaço segundo a lógica apresentada na pesquisa

de campo que originou o Museu, ou seja, por diferentes seções ou temáticas: brinquedos

de locomoção, rodas e transporte; brinquedos indígenas; brinquedos sonoros ou musicais;

brinquedos e cenários de caça; bonecos e cenários de brincadeiras de cozinha com seus

utensílios; representações de animais e cenário de vaquejada; brincadeiras em terra, areia e

água.

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Reciprocamente, o espaço foi determinante nas escolhas dos brinquedos e sua

localização. As grandes janelas do prédio histórico colaboram para a entrada da luz do sol e do

vento dando brilho e movimento às peças, tais como os cata-ventos e as pipas.

Na entrada do Museu, seção 1, detalhes preenchem o olhar de imediato. Do lado direito,

um trilho de trem chama a atenção pelo seu tamanho e conduz a cenários de ação, onde a

brincadeira não receia o perigo (Figura 3). Neste mesmo espaço, também estão dispostos

brinquedos de locomoção: roda e trava, patinete de ferro, pernas de pau, carrinhos de rolimã

de tamanhos diversos, carro de cocão (assemelha-se ao carrinho de rolimã, porém em maiores

proporções, construído com cocão, nome popular de uma espécie de palmeira), carrinhos de

empurrar ou puxar de diversas cores e modelos. No canto da sala, uma estante aberta

com brinquedos artesanais, sempre com o mote de movimento. O olhar dirige-se para cima e

encontra pipas e miniparaquedas no teto, sobrevoando a sala. Piso, parede e teto expõem o

brincar livre, a exploração de movimentos em lugares diversos e brinquedos construídos com

diferentes materiais – madeira, papel, ferro, pneu…

Figura 3 – Entrada do Museu do Brinquedo Popular - IFRN.

Fonte: Arquivo da autoria

Na seção 2, há dois ambientes interconectados por passagens que permitem uma

visão geral do que se descortina no museu, que não se basta, pois o olhar e o desejo, impelem

aos detalhes. Na primeira parte, uma estante hexagonal, logo na entrada, a única fechada

e de vidro, sinaliza que também de elementos da natureza e sazonais a casca, a folha, a

semente, penas de aves – são construídos brinquedos (piões, petecas, ronrom...) que, por sua

delicadeza e fragilidade, muitas vezes não resistem, no dizer de Amado (2010, p.10) “aos tratos

e ao tempo”, portanto, segue o autor, são “impróprios para a acumulação, insusceptíveis de

virarem propriedade”, pois a riqueza e o valor estão, em especial, no seu uso. A entrada desta

seção assinala a forte presença indígena no Rio Grande do Norte, mais especificamente da

Etnia Potiguar.

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Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

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Ainda no primeiro ambiente da seção 2, é possível notar a presença de um cenário

denominado Parque Vaquejada, com uma variedade de cavalos de madeira de talo de

carnaúba. À esquerda, brinquedos de transporte, carrinhos e caminhões, de madeira e de lata,

de tamanhos variados, estacionados na extensão em frente à parede e dispostos também em

prateleiras. No canto esquerdo, ao lado, fica a sala do jogo das sombras e, em frente a esta,

há brinquedos de caça, espingardas e armadilhas para pequenos animais e aves. Um parque

de diversões em lata ocupa o centro do espaço, com duas rodas-gigantes, um carrossel e uma

barca (Figura 4).

Figura 4 – Miniatura parque de diversões, carrinhos, ambiente jogo das sombras, pinturas.

Fonte: Arquivo da autoria

No percurso de existência do museu foram também agregadas peças de doação, tais

como quadros produzidos pelo autor português João Amado, que retratam o brincar lusitano.

Brinquedos de madeira fixados em telas, com traços que representam o movimento do brincar.

Obras brincantes, como ilustra a imagem anterior (à direita, acima dos caminhões), que

permitem refletir sobre a herança e influência lusitana no Brasil, identificadas também pelos

pesquisadores no universo lúdico.

Ao lado direito desse ambiente estão dispostas duas estantes (abertas) com brinquedos

diversos, como corrupios, bolas, petecas, bilboquês, rói-rói, mané teimoso, bonecas de palha,

alguns animais e brinquedos sonoros. E duas mesas, uma com o jogo da onça – o tabuleiro

feito em tecido, e as peças constituídas por castanhas e uma concha – e, a outra, com uma

minissinuca.

Alguns televisores respondem à proposta interativa do Museu, visibilizando cenas

de brincadeiras. No percurso dos espaços, também imagens com crianças brincando, no

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Movimento, Porto Alegre, v. 25, e25052, 2019.

formato de grandes painéis, permitindo a sensação de movimento dos jogos e brinquedos.

Desse modo, mescla o brinquedo que está exposto com a imagem fotográfica de crianças

brincando (Figura 5), permitindo ao visitante visualizar a brincadeira em ação, despertando a

imaginação, a memória e o desejo da experiência.

Figura 5 – Caixa de areia e painel fotográfico

Fonte: Arquivo da autoria

No segundo ambiente da seção 2, ao fundo (Figura 5), abre-se o cenário dos brinquedos

e brincadeiras com a terra e a areia, que se desenrolam nos quintais, ruas, terrenos baldios,

praias, entre outros, das comunidades potiguares (como o jogo do peixe) e do mundo (como a

bolita/bola de gude, carrinhos, carreta de boi e o curral de ossos).

Também na diversidade deste ambiente encontra-se a casinha de bonecas com

acessórios construídos de pano, osso, sabugo de milho e móveis de madeira em miniatura, e

que, com as portas abertas, é, em si, brincante e convidativa.

Chama atenção um biombo com um boneco de mamulengo, assinalando que o

teatro, as danças, as cirandas e as parlendas fazem parte do universo lúdico. Também se

destacam o cata-vento construído de lata em formato de avião, que, com o vento, move os

passageiros; os brinquedos e brincadeiras em água doce e salgada, como os barcos feitos

com madeira, isopor, chinelo de borracha, sacola plástica etc., bem como o esqui-bunda,

objeto plano que permite deslizar nas dunas existentes nas praias do Rio Grande do Norte

(Figura 6).

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Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

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Figura 6 – Mamulengo, cata-vento, barcos e dunas

Fonte: Arquivo da autoria

O museu utiliza mobília discreta – mesas, cubos, caixas e estantes –, o que permite

destaque aos brinquedos, dispostos em alturas que possibilitam o alcance dos olhos (em sua

maioria também das mãos) de crianças e adultos de todos os tamanhos. Utiliza linguagens

diversas – brinquedos, cenários, fotografias, obras de arte, mídias – a fim de produzir

experiências também diversas, que vão da alegria e emoção de encontrar o conhecido à

surpresa do desconhecido e imprevisto.

Percorrer o Museu do Brinquedo Popular sugere percorrer os passos dos

pesquisadores e entrar no cenário dos brincantes pesquisados. Um museu que evidencia

menos as informações institucionais e mais a produção dos diferentes grupos sociais do

Rio Grande do Norte. Pode-se dizer, mais próximo do museu etnográfico e interpretativo, e

distante dos museus tradicionais. Como explica Padiglione (2013, p. 2), o museu interpretativo

“[…] não se baseia apenas na ideia estática de coleção. Valoriza uma noção processual de

coleção, baseada numa interpretação etnográfica. A linguagem visual é mais valorizada do

que a linguagem textual e isto dá mais liberdade para quem aprecia a exposição”. E assim

sendo, mais aproxima o visitante do que distancia.

Um museu com acervo específico de jogo e/ou brinquedo em sua diversidade étnica

– construído pelos jogadores/brincantes e derivado de pesquisa –, ao evidenciá-los, abre-se

como espaço educativo de mudança de sentido e de interesse, como declaração pública da

importância do jogo e/ou brinquedo na vida, e como via para considerá-los como patrimônio

material e imaterial.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, nesse inventário do Museu do Brinquedo Popular, recheado de

testemunhos, é possível encontrar, ao mesmo tempo, o caráter local, regional, nacional

e universal, atravessando séculos, povos e culturas. Ademais, como assinala Cascudo

(1983, p.32), para toda formação mítica e tradicional, “não é possível fixar a fórmula inicial”,

nem mesmo a fixar em um território específico, pois são “de movimento, de ambulação”,

nas matas, rios, sertões, caatingas, pampas, serras, chapadões, praias, roças, quintais,

cidades, em viagens ininterruptas, imprevistas e irreversíveis. E nessa ambulação, os jogos

revestem-se com outras cores, formatos, materiais, regras, cantigas e danças; revestem-se

de materialidade e imaterialidade. O jogo e/ou brinquedo como patrimônio diz da relação

afetiva que os jogadores/brincantes estabelecem com o território, com o espaço, com o

outro.

O Museu apresenta a diversidade da experiência lúdica de todas as idades e de

diferentes origens, e assinala a importância da pesquisa a fim de identificar, registrar e

reunir, no espaço museal, parte do universo lúdico desenvolvido anonimamente, oralmente,

difusamente pelas comunidades. A pesquisa e os pesquisadores facultaram ao público

conhecer os jogos e/ou brinquedos; valorizaram e deram vozes aos sujeitos; potencializaram o

pertencimento ao local; romperam as limitações das políticas municipais, estaduais, federais;

e se entrelaçaram com a formação dos discentes do IFRN e da Educação Básica. Uniram a

vontade de um grupo e deram existência a uma ação pública no âmbito do patrimônio lúdico.

Certamente, muito do processo e da alma dos jogos e/ou brinquedos esmaecem sua

singularidade ao serem transportados para o museu, mas ali – dependendo da proposta, do

espaço, do mobiliário, do pesquisador, do museólogo, entre outros – ganham a possibilidade

de congregar a diversidade que estava dispersa, construir novas relações, encantar,

emocionar, ensinar, evocar a memória, provocar o desejo de brincar e, substancialmente,

reconhecer o jogo e o brinquedo como patrimônio material e imaterial.

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Jogo como patrimônio cultural: museus de brinquedos no Brasil

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Apoio:

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in

part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -

Finance Code 001