Como o esporte foi utilizado pelo regime militar no Brasil

O fiasco do Brasil na Copa do Mundo de 2014 foi seguido pela queda da presidenta Dilma, com apoio de manifestantes vestindo a camiseta da seleção brasileira. O sucesso do futebol na Copa de 1970 foi seguido pela "lua de mel" do governo militar com o povo em geral, que não sabia das prisões e torturas por causa da forte censura do regime.

As relações entre o futebol e a ditadura militar tanto no Brasil quanto na Argentina, Chile e Uruguai estão bem registradas no documentário “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor”, produzido pelo jornalista e historiador Lúcio de Castro. Filme está disponível no YouTube.

Cartolagem e ditadura

O marechal-presidente Arthur da Costa e Silva comunicou a João Havelange, então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF), que planejava apostar no futebol. Era final de 1968 e o ditador queria festejar o Tri mundial no seu governo. Costa e Silva, porém, morreu. Veio a junta militar e, após, o general mais afeiçoado ao esporte: Garrastazu Médici. Em 1971, surgiu o Brasileirão. A parceria ajudou Havelange a chegar à presidência da Fifa em 1974.

Depois da conquista de 1970, o autoritarismo e a cartolagem esmeraram-se nos festejos dos 150 anos do Grito do Ipiranga. Em 1972, trouxeram 20 seleções para disputarem a Taça Independência. A finalíssima juntou duas ditaduras: o Brasil de Médici e o Portugal de Marcelo Caetano. Brasília também estimulou a CBD a inflar o campeonato nacional. De 20 clubes, saltou para 40 e cresceu até 1979 quando bateu seu recorde: 94 equipes. Seguia-se o preceito “Onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”.

Ditadura demite João Saldanha

A seleção que traria o Tri, com nomes como Pelé, Tostão e Jairzinho, era conhecida como as “Feras do Saldanha”. O técnico João Saldanha obtivera 100% de aproveitamento nas eliminatórias. Mas foi demitido a seis dias do embarque da seleção para o México.Atribuiu-se a demissão à não convocação de Dario, o Dadá Maravilha. O centroavante seria do gosto de Médici.

Mas os atritos iam muito além. Saldanha era filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na clandestinidade. “Sua escolha, um pouco foi para acalmar as críticas à seleção após o fiasco de 1966. A aceitação foi um pouco de pragmatismo do Partidão, tipo ‘melhor a gente no cargo que alguém pior’”, explica o jornalista esportivo Juca Kfouri.

Após o assassinato de Carlos Marighella em 1969, Saldanha teria distribuído um dossiê a autoridades internacionais citando milhares de presos políticos e centenas de mortos e torturados pela ditadura. Com a seleção já classificada, foi substituído por Zagallo, que voltaria ao Brasil trazendo a taça Jules Rimet.

Pra frente Brasil, salve a seleção

Como o esporte foi utilizado pelo regime militar no Brasil

Com sua propaganda, o regime insuflou o ufanismo / Foto: Reprodução Internet

Médici aproveitou a euforia pela vitória do selecionado – fora a primeira copa transmitida ao vivo pela TV brasileira – para massificar campanhas publicitárias. Milhões de brasileiros se emocionavam com a seleção e cantavam “De repente é aquela corrente pra frente/ Parece que todo o Brasil deu a mão! (…) Pra frente Brasil! Salve a seleção!”.

Essa marchinha foi a vencedora de um concurso organizado pelas empresas patrocinadoras das transmissões e pela rede Globo. Caiu como uma luva para o culto ao ufanismo e a proposta de integração nacional.

Pelé, o rei do futebol

Ao retornar do México, Pelé ganhou passaporte diplomático para ser garoto-propaganda do governo na inauguração da praça Brasil, na cidade mexicana de Guadalajara. Em carta de agradecimento, afirmou “imensa satisfação” com a missão.

Em entrevista ao jornal uruguaio La Opinión, em 1972, Pelé afirmaria: “Não há ditadura no Brasil”. Anos depois, alegou que não foi à Copa de 1974 por descobrir que havia tortura no Brasil. “Ele era bom no futebol e ruim na política. Ao longo da história, esteve ao lado da maioria dos presidentes, foi inclusive ministro dos Esportes de FHC”, recorda Kfouri.

Os movimentos de Havelange

Em 2012, a Fifa divulgou documentos da justiça suíça confirmando que o ex-presidente da entidade, João Havelange, e seu genro, o ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, receberam subornos milionários, somando R$ 45,5 milhões.

“Esse foi movimentador de ditaduras, mentiu a vida inteira”, acusa o jornalista. Presidiu a CBD de 1958 a 1975. Dias antes da publicação do Ato Institucional (AI-5), fechou um acordo com o então presidente Costa e Silva ele para investimento do Estado no futebol nacional. Veio a criação da Loteria Esportiva e exibições da seleção para o exterior, bancadas pela CBD, alçando-o ao cargo de presidente da Fifa, de 1974 a 1998.

Também foi membro do Comitê Olímpico Internacional (COI) de 1963 até 2011, quando renunciou ao mandato. Em 2013, renunciou também à presidência de honra da Fifa. As renúncias foram para escapar de punições pela condenação por corrupção.

Futebol e política hoje

Futebol e política se misturam. Nos últimos anos, observa-se desde protestos verde-amarelos contra a “corrupção” até o fenômeno das torcidas antifascistas.

Kfouri considera uma “suprema ironia você usar camisa da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para protestar contra corrupção porque é uma entidade cujos três últimos presidentes foram afastados por corrupção.”

Ao mesmo tempo, recorda ele, “a primeira faixa pela anistia aberta publicamente foi num jogo do Corinthians e Santos, em 1989 no Morumbi. Tivemos a Democracia Corinthiana, com jogadores como Sócrates e Wladimir, totalmente imbricada com as diretas. Tem de tudo”.

Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 12) do Brasil de Fato RS. Confira a edição completa. 

Edição: Ayrton Centeno


Neste texto, entenda quais são as origens e as disputas em torno da ideia de "futebol arte" no Brasil no período do regime militar

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Como o esporte foi utilizado pelo regime militar no Brasil
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Introdução


























RESENHA
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ARTES


Como o esporte foi utilizado pelo regime militar no Brasil

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Como o esporte foi utilizado pelo regime militar no Brasil

Há 50 anos, golpe militar também chegou ao poder no esporte mudou seus rumos

Em 1º de abril de 1964, Corinthians e São Paulo se enfrentariam em partida válida pelo Torneio Rio-São Paulo daquele ano. Na mesma noite, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional, declarava vaga a presidência da República, confirmando o sucesso do golpe militar que destituiu João Goulart e instaurou a ditadura que governaria o Brasil pelo próximos 21 anos. O clássico paulista, então, mudou de data. O país e o esporte mudaram de rumo.

Daquele dia em diante, assim como aconteceu nas demais áreas de influência da sociedade, os militares centralizaram o poder no esporte. Fosse de maneira direta, ou com pessoas de confiança. No comando, o regime transformou os formatos de competições nacionais disputadas no Brasil, usou a seleção brasileira como objeto de propaganda e, em muitos casos, fez da gestão esportiva um espelho do que ocorria no país, com dirigentes se perpetuando no poder de confederações.

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"Uma das grandes marcas da ideologia dos militares era transformar o Brasil em potência esportiva. Futebol era uma potência, mas era também um estímulo para os outros esportes. Existia a tentativa de implementar uma cultura esportiva, disseminar entre a população que o esporte era uma coisa boa. Também aconteceram os Jogos Escolares e Universitários brasileiros. A ideia era que fossem celeiros de atletas para o Brasil", disse Marcus Taborda, professor da Faculdade de Educação  da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

"Os governos militares entendiam que existia uma perspectiva de potencial de formar atletas, mas que não fora levado às grandes consequências. A ciência de que hoje é chamado de treinamento esportivo não existia. Um exemplo é depois dos Jogos de Munique-1972. Alguns periódicos oficiais chamavam a atenção com títulos como: 'Munique, culpados e inocentes'. A mídia dizia que alguém era culpado pelo péssimo resultado (duas pratas e dois bronzes), e os militares queriam descobrir quem eram os culpados por isso", continuou.

Gazeta Press

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Campeonato Brasileiro de 1971 nasceu com a mão do regime militar

As confederações nas mãos dos militares

Foi durante a ditadura militar, por exemplo, que nasceu o Campeonato Brasileiro, em 1971, como símbolo da "integração nacional", que teria sido promovida pelo regime. Em 75, João Havelange, então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), foi afastado do cargo e deu lugar ao almirante Heleno Nunes, intensificando a militarização do esporte. Com o poder cada vez mais centralizado, os clubes foram perdendo poder de decisão.

No futebol, durante esse período, nasceu o jargão "Onde a Arena (partido de sustentação do regime) vai mal, um time no nacional", em referência aos critérios políticos para a inclusão de equipes de federações menores no Brasileiro - a competição de 1979, por exemplo, teve 94 times. Na época, as federações mineiras e cearense tinham militares no comando, respectivamente, com o coronel José Guilherme e o general Aldenor Maia.

"Mobilizava uma paixão, uma sensibilidade especifica (a paixão pelo futebol). O Brasil não é um país esportivo. Era moeda de troca de apoio político. À medida que os Campeonatos Brasileiros iam inchando, tinham centenas de times participando. Era uma forma de angariar um capital político como apoio. É um resquício de tempos autoritários. É uma promiscuidade da política com o esporte, isso mudou muito, mas muitas das decisões são tomadas ainda assim. O grande elemento do amálgama nacional é o futebol, até mais do que o samba. Principalmente nos anos 1970 é muito forte essa relação", explicou Taborda.

A modalidade, contudo, não foi a única a ficar sob controle militar. Em outros modalidade, a lógica de manter um dirigente de confiança foi a mesma. Ainda que isso significasse manter a mesma pessoa no comando da entidade por quase quarenta anos. Foi esse o caso da Confederação Brasileira de Basquete (CBB), que tem até o hoje o almirante Paulo Martins Meira como líder de longeividade na presidência (de 1938 a 1975).

"Alguns cargos-chave do esporte brasileiro estavam na mão dos militares. Aquela época, o esporte estava junto ao Ministro da Cultura. Os ministros Jarbas Passarinho e Ney Braga lançaram o Primeiro Plano Nacional de Desportos (1975) e o Segundo Plano (1980). Era uma ação bastante agressiva, pontual, dos militares no setor esportivo", afirmou Taborda. 

No Conselho Nacional de Desportos, esteve o brigadeiro Jerônimo Bastos, que já havia substituído o general Eloy Menezes. Já o Comitê Olímpico Brasileiro foi presidido pelo major Sílvio de Magalhães Padilha, militar que assumiu a entidade máxima do esporte nacional um ano antes do golpe, em 1963, e de lá só saiu em 1990, após 27 - e por motivos de saúde.

Gazeta Press

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Sylvio de Magalhães Padilha, que confere medalha a Rosa Branca, foi presidente do COB durante 27 anos

Na época, a legislação brasileira proibia que qualquer presidente de confederação tivesse mais de dois mandatos. A argumentação utilizada pelo major, contudo, era que o COB era o organismo do Comitê Olímpico Internacional (COI), portanto, estaria submetido a sua legislação, logo, sem limitações.

Atletas na mira do regime

Sócrates, Casagrande e Wladimir tem lugar reservado no imaginário dos torcedores do Corinthians. Na galeria de ídolos do clube paulista, o trio também esteve guardado nos arquivos do Departamento de Ordem e Política Social (Dops). E estiveram longe de serem os únicos. Assim como acontecia em outros setores da sociedade, atletas eram vigiados de perto pelo regime e tinham suas ações monitoradas pela inteligência, atenta a qualquer ação considerada subversiva.

Na equipe, os jogadores fichados pela ditadura foram líderes do movimento que ficou conhecido como ‘Democracia Corintiana'. Mas a preocupação maior do regime eram com o que os atletas faziam fora de seu ramo de atuação. Wladimir, por exemplo, era presidente do Sindicato de Atletas Profissionais de São Paulo e desagradou por ter assinado documento saudando "o povo nicaraguense pelas eleições livres e democráticas realizadas" no país da América Central.

O mesmo abaixo-assinado contou com o nome de Casagrande, que teve mais ocorrências registradas pelo regime que o próprio Sócrates, figura de destaque no movimento pelas Diretas Já, na década de 80. O atacante, além de também ter apoiado comício que pedia eleições diretas para presidente e as eleições em Nicarágua, teve ainda monitorada a visita a um acampamento de desempregados, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Reprodução

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Dops de Santos despacha sobre transação de Afonsinho

Com cabelos longos e barba cheia, com visual típico de um subversivo aos olhos da ditadura, Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, foi outro que sofreu marcação implacável do regime. Em 1972, quando o jogador trocou o Vasco da Gama pelo Santos, os oficias receberam a notícia em primeira mão, em despacho de Joseh Aurelio Cardoso, delegado de polícia titular do Dops santista. A perseguição a ele, contudo, foi ainda mais direta.

"Quando eu fui para o Santos, fizemos uma excursão. Na volta, um jornalista de Santos teve uma atitude muito digna e me contou que foi procurado. Pediram informações sobre o que fazia e coisas assim", contou Afonsinho, em entrevista à série "Memórias do Chumbo: o futebol nos tempos do Condor", dos canais ESPN. O ex-jogador contou também sua experiência dentro dos clubes, que viviam sob o mesmo cerco de outras instituições pelo país.

Os clubes sob cerco

Nesses casos, o regime não fez distinção. Nos arquivos da polícia política, disponibilizados pelo projeto ‘Brasil Nunca Mais', existem registros de documentos internos de grandes clubes, como o Fluminense, ou de menores expressão, como o Atlético Goianiense. Para indicação a determinado cargo diretivo ou para prestar esclarecimentos sobre a presença de funcionários vistos como subversivos, as equipes deviam abrir o jogo com os militares.

O clube goiano, atualmente na segunda divisão do Campeonato Brasileiro, precisou explicar sua ligação com Paulo Rassi, acusado pelo regime de tentar reorganizar a União Estadual de Estudantes (UEE), a época na clandestinidade. "Como acadêmico de medicina presta serviços médicos ao Atlético (...). Como homem, é ligado ao campo diretivo, não tendo praticado até a presente data nenhum ato que o venha desabonar, inclusive sem qualquer atitude política ou ideológica", enviou o clube, em despacho assinado pelo presidente Geraldo de Oliveira Bueno Jr., em novembro de 1970.

No Fluminense, o problema foi uma homenagem do clube a José Miguel Camolez, que se transformou Benemérito no Conselho tricolor. O engenheiro civil e capitão-tenente foi um dos responsáveis por denunciar, em depoimento, um dos métodos de tortura utilizados pelo regime contra opositores: a geladeira.

Reprodução/BNM

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Documentos de Fluminense e Atlético-GO que caíram na mão do regime. Clubes tiveram que se explicar

"(Foi) conduzido para uma pequena sala de aproximadamente dois metros por dois metros, sem janelas, com paredes espessas, revestidas com fórmica e com um pequeno visor de vidro escuro em uma das paredes; (...) a partir desse instante, somente podia ouvir vozes que surgiam de alto falantes instalados no teto, e que passou a ser xingado por uma sucessão de palavras de baixo calão, gritadas por várias vozes diferentes, simultâneas; que, imediatamente, passou a protestar também em altos brados contra o tratamento inadmissível de que estava sendo vítima e que todos se calaram e as vozes foram substituídas por ruídos eletrônicos tão fortes e tão intensos que não escutou mais a própria voz; (...) que havia instantes que os ruídos eletrônicos eram interrompidos e as paredes do cubículo eram batidas com muita intensidade durante muito tempo por algo semelhante a martelo ou tamanco e que em outras ocasiões o sistema de ar era desligado e permanecia assim por muito tempo, tornando a atmosfera penosa, passando então a respirar lentamente (...)", descreve trecho do depoimento de Camolez.

Afonsinho revela que os militares tinham poder, inclusive, de intervenção dentro dos clubes. "No Vasco e no Flamengo, eu tive militares. Alguns ligados ao esporte até... Houve alterações muito concretas. Inclusive, os contratos sofreram intervenções. Era uma ligação bem direta", acusou. Nos documentos tornados públicos pelo regime, não há provas do que diz o ex-jogador; já a presença militar dentro dos clubes não foi exclusividade daqueles que integraram seu currículo.

No Rio de Janeiro, o brigadeiro Paulo Salgueiro foi superintendente do América; o coronel Francisco Guimarães Coreixas foi vice-presidente do Flamengo. No Vasco, o capitão Claudio Coutinho, que integrou a delegação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, também foi supervisor - levou a equipe para concentrar na Fortaleza do São João, sede do Exército Brasileiro na Urca.