The recognition of Italian citizenship as fact, value and process: the passport as a symbol of italianityResumoEste artigo é resultado de pesquisa etnográfica que temos desenvolvido entre/com ítalo-brasileiros em Santa Maria e cidades da Quarta Colônia de Imigração Italiana/RS, Brasil. Nosso objetivo é analisar as dinâmicas envolvidas no processo de reconhecimento legal da cidadania italiana, bem como o valor atribuído ao passaporte italiano. Observamos que o passaporte, para além de um documento (objeto), cristaliza valores afetivos e simbólicos que o tornam mais relevante que o tempo de espera pela cidadania e o custo econômico que esse processo demanda. Show
Palavras-Chave AbstractThis paper is the result of an ethnographic research that has been developed between/with Italian Brazilian in Santa Maria and in the towns of the Fourth Colony of Italian immigration (RS - Brazil). Our objective is to analyze the dynamics involved in the process of recognition of Italian citizenship, as well as the value attributed to the Italian passport. We observed that the passport, besides a document (object), crystallizes affective and symbolic values that make it more relevant than the waiting time for the citizenship and the economic cost that this process demands. Keywords IntroduçãoO presente artigo é fruto de pesquisa1 1 Foram dois projetos de pesquisa que orientaram a busca por respostas quanto aos processos de dupla cidadania. Um deles, denominado Dupla Cidadania: duplos pertencimentos? Um estudo sobre os ítalo-brasileiros no Rio Grande do Sul, foi coordenado por Maria Catarina Chitolina Zanini e financiado pelo CNPq, a quem agradecemos. Outro projeto foi derivado do primeiro e possibilitou a dissertação de mestrado de Jamile Dos Santos Pereira Costa, intitulada Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil. 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, 2017. A pesquisa teve caráter etnográfico e foi desenvolvida entre os anos de 2013 a 2017. Utilizamos como técnicas a observação participante junto aos descendentes com reconhecimento legal da cidadania italiana, em eventos como, as “Festas de Família” que celebram a cultura italiana na região de Santa Maria e da Quarta Colônia de imigração italiana no Rio Grande do Sul. Também fizemos uso da observação não participante junto à Associação Italiana de Santa Maria (AISM) e na Agencia Consular da Itália em Santa Maria. Fez-se uso também de entrevistas semi-estruturadas. Foram entrevistadas 15 pessoas, sendo 8 jovens na faixa etária entre 18 a 30 anos e 7 entrevistas com descendentes entre 35 a 70 anos, todos com processo legal de reconhecimento da cidadania italiana finalizado. Destacamos também, que a escolha dos entrevistados e as respectivas faixas etárias se deu por entendermos que as motivações para a busca do reconhecimento da cidadania mudam de acordo com as gerações e isso precisava ser considerado. que buscou observar as narrativas e percepções de descendentes de imigrantes italianos sobre o processo de reconhecimento legal de “ser ítalo-brasileiro” na região central do Rio Grande do Sul (RS). A pesquisa partiu de um estudo etnográfico entre/com descendentes de italianos na cidade de Santa Maria e também em localidades da Quarta Colônia de Imigração Italiana2 2 Representa o quarto núcleo de colonização italiana no Rio Grande do Sul. Foi o primeiro núcleo constituído fora da Serra Gaúcha. A Quarta Colônia agrega, atualmente, os municípios de Nova Palma, Faxinal do Soturno, Silveira Martins, Ivorá, Pinhal Grande, São João do Polêsine, Dona Francisca, Agudo e Restinga Seca, sendo de colonização mista (italianos, alemães e portugueses) esses últimos três municípios aqui destacados (Manfio, Benaduce, 2010, p. 1; Santos, Zanini, 2009, p. 22). , uma vez que muitos de nossos interlocutores são naturais dessas cidades ou descendem de imigrantes que lá residiram. Há toda uma produção memorialista local acerca do pertencimento ao mundo italiano de origem de seus antepassados e uma “italianidade” constantemente atualizada e reafirmada (Zanini, 2007ZANINI, Maria C. C. Um olhar antropológico sobre fatos e memórias da imigração italiana. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, p. 521-547, 2007.). Para Zanini (2006ZANINI, Maria C. C. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria - RS. Santa Maria: Editora da UFSM, 2006.), por italianidade, entendem-se os vínculos de pertencimento dos descendentes de imigrantes italianos locais com a “origem italiana” de seus antepassados. Trata-se de uma construção valorativa que se atualiza e refaz, mas que faz muito sentido para os descendentes que pesquisamos. Nosso interesse em desenvolver este estudo parte do entendimento de que o processo de reconhecimento da dupla cidadania e seus desdobramentos (como a obtenção do passaporte, por exemplo) são objetos de pesquisa importantes, pois representam mais que um direito político que esses cidadãos de fato possuem, uma vez que carregam valores simbólicos e afetivos que passam pelas histórias familiares dessas pessoas. Além disso, são questionamentos que vêm sendo analisados em outros contextos de imigração3 3 Estudos sobre dupla cidadania italiana foram desenvolvidos em Santa Catarina, por Adiles Savoldi (O caminho inverso: a trajetória de descendentes de imigrantes italianos em busca da dupla cidadania. 1998) e por Mariângela Porto Braga (Descendentes de imigrantes italianos em Belo Horizonte e o impacto da dupla cidadania na construção da identidade ítalo-brasileira, 1990 a 2008. 2009), em Belo Horizonte. Esses estudos serviram de base para compreendermos o processo e suas dinâmicas no cenário de nossa pesquisa. italiana no Brasil, mas que ainda eram pouco observados na região central do Rio Grande do Sul, na qual muitos descendentes de imigrantes italianos residem até hoje. Segundo dados informais coletados junto à Agência Consular da Itália em Santa Maria, só na região central do Estado haveria em torno de 4.000 cidadanias italianas reconhecidas (Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências
Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em: http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr. 2018. Esses ítalo-brasileiros são descendentes dos imigrantes italianos que chegaram ao Brasil entre os séculos XIX e XX e que, hoje, buscam o reconhecimento formal da sua cidadania, direito esse que é garantido pelo Estado italiano. A migração de italianos para a região central do Rio Grande do Sul começou em 1877. Tratava-se de uma migração familiar, de camponeses pobres e católicos do norte da Itália em sua maior parte. Vieram por meio de acordos entre o governo brasileiro imperial e a Itália. Aquela emigração italiana em massa deve ser compreendida como algo intrinsecamente vinculado ao desenvolvimento do capitalismo na Itália, no sentido econômico, social, político e cultural. Muitas das famílias que hoje solicitam o reconhecimento da dupla cidadania são descendentes das primeiras famílias que para cá vieram em finais do século XIX e início do XX. A nacionalidade italiana (Piccoli, 2013PICCOLI, Beatriz. Lei nº 91, de 05 de fevereiro de 1992. Dupla cidadania na Itália, 29.08.2013. Disponível em: <Disponível em: http://duplacidadanianaitalia.blogspot.com.br/2013/08/dupla-cidadania-na-italia-lei-05.html >. Acesso em:
09.05.2016. Outra questão que preocupa e causa desânimo aos descendentes que buscam por esse reconhecimento é o sistema de atendimento junto aos consulados, que é considerado muito demorado e burocratizado. Há, segundo os descendentes, “filas intermináveis” de espera pelo reconhecimento da cidadania. Especialmente nos consulados de São Paulo, Curitiba e Porto Alegre (que é onde são encaminhados os processos de reconhecimento provenientes do Rio Grande do Sul), a fila de espera pelo reconhecimento tem chegado a até 15 anos. Essa demora acontece principalmente
pela falta de funcionários para suprir uma demanda tão grande de processos, além da crise financeira das instituições que acaba impedindo a contratação de novos digitadores, como constatou o cônsul-geral da Itália em Porto Alegre, Nicola Occhipinti, em entrevista ao jornal Zero Hora, em 19 de outubro de 2016, reeditada pela revista Insieme - A revista italiana daqui, em 21 de outubro de 2016 (Peron, 2016PERON, Desiderio. Reconhecimento da
cidadania italiana na Itália “está no limbo”, diz o cônsul Nicola Occhipinti. Insieme - A revista italiana daqui, 21.10.2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistainsieme.com/single-post/2016/10/21/Reconhecimento-da-cidadania-italiana-na-Itália-“está-no-limbo”-diz-o-cônsul-Nicola-Occhipinti >. Acesso em:
13.01.2017. Com um decreto da Presidência da República de 29 de janeiro de 2016, foi homologada a “Convenção de Haia”, na qual o Brasil firmou compromisso em eliminar exigências sobre a legalização de documentos públicos estrangeiros. Tal convenção consiste em reunir em uma única apostila todas as informações que forem necessárias para que um
documento em outra nação seja validado. Essa medida foi bem recebida pela comunidade italiana no Brasil, pois se entende que isso torna o processo de reconhecimento da dupla cidadania menos oneroso e burocrático (Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em:
http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr. 2018. O fenômeno da dupla cidadania tem ganhado força nas últimas décadas devido a sua importância dentro de contextos transnacionais, uma vez que traz muitas vantagens aos que a conquistam. Traz, também, melhor mobilidade entre os países da União Europeia, por meio do Acordo Schengen de livre circulação aos cidadãos dos países membros, do qual a Itália faz parte. Há, igualmente, uma série de acordos entre Brasil e Itália, que possibilitam a esses descendentes estudar, trabalhar e fazer intercâmbios, sem maiores dificuldades nas fronteiras. Esses são alguns fatores que impulsionam a busca pelo reconhecimento da cidadania italiana, mas existem motivações diversas e que variam com o tempo e o espaço. O passaporte é denominado carinhosamente pelos descendentes de italianos como “o vermelhinho” e sua posse é um atributo muito importante, como nossas pesquisas têm apontado. Esse documento cristaliza o processo, tornando-se um símbolo visível do percurso migratório de seus antepassados também. Ele, igualmente, materializa a história familiar e, em algumas situações de montagem de processos de reconhecimento de cidadania, faz com que a família extensa, descendente do mesmo emigrado, possa, de fato, conhecer e se reconhecer enquanto família consanguínea e reviver a família como um valor muito caro aos italianos e seus descendentes. Dupla cidadania, duplos pertencimentos? Quais e como?É importante fazermos alguns apontamentos quanto ao processo de reconhecimento da cidadania italiana para compreendermos a importância do passaporte para aqueles que o requerem. A cidadania nacional se apresenta de duas (Braga, 2009BRAGA, Mariangela P. Descendentes de imigrantes italianos em Belo Horizonte e o impacto da dupla cidadania na construção da identidade ítalo-brasileira 1990 a 2008 (Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais). Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2009.) formas quanto à questão de pertencimento: uma vinculada às ordens sociais e jurídicas atribuídas a um indivíduo de acordo com o seu pertencimento de solo, jus soli, e outra relacionada a um pertencimento afetivo (ou não) a outra nacionalidade, em razão das relações de sangue, jus sanguinis. Cidadania, nesse sentido, como vínculo jurídico-político de um indivíduo com um Estado. Havendo mais de um pertencimento, haverá mais de uma cidadania e mais de um passaporte. Isso possibilita o que Anderson (2005ANDERSON, Benedict. Problemas dos nacionalismos contemporâneos. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 16-26, jul/dez 2005.) denomina de “nacionalismo portátil”, em que os indivíduos podem optar, quando for possível, fazer uso da cidadania que, naquele momento, mais lhe favorecer. É o caso do uso do passaporte italiano pelos ítalo-brasileiros. Estes ressaltam que, com o “vermelhinho”, são muito melhor tratados em aeroportos e serviços em geral. Diante dessa compreensão, entendemos a dupla cidadania ítalo-brasileira como um direito atribuído a alguns indivíduos de
possuírem sua nacionalidade de solo, ligada ao lugar onde nasceram e, também, sua cidadania de sangue, vinculada a sua ascendência, mantendo vínculos simultâneos com dois Estados nacionais distintos8 8 “Em consequência da Emenda Constitucional de revisão nº3, de 09/06/94, não são mais passíveis de perder a nacionalidade brasileira aqueles cidadãos que adquirirem outra nacionalidade em consequência de imposição de naturalização pela norma estrangeira
ao brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis”. Fonte: http://cgroma.itamaraty.gov.br/pt-br/nacionalidade.xml. . Os descendentes que passaram pelo processo de reconhecimento de sua origem italiana por meio de comprovação documental são classificados pelo Estado italiano como cidadãos italianos residentes no exterior (all’estero) (Costa, 2017COSTA,
Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em: http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr.
2018. Alguns autores (Reis, 2004REIS, Rossana R. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais.
RBCS, v. 19, n. 55, jun. 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n55/a09v1955.pdf >. Acesso em: 12.10.2015. O passaporte italiano acaba servindo como uma porta para novas oportunidades em terras estrangeiras. São nessas experiências no exterior que algumas situações não agradáveis acabam acontecendo, como se observa em muitos relatos de ítalo-brasileiros na Itália. Muitos partem com sonhos e expectativas que acabam não sendo correspondidas, ao se depararem com uma Itália muito diferente daquela que lhes foi apresentada nos relatos de seus antepassados. O mundo italiano do qual supunham fazer parte fazia sentido no Brasil, mas não na Itália, onde os ítalo-brasileiros enfrentam problemas cotidianos como o domínio da língua, o acesso aos serviços públicos e ao emprego. E, ali, nessas situações, são classificados como “brasileiros”. Nesse trânsito de lugares, sentem-se transnacionais, pertencentes a dois mundos, o brasileiro e o italiano (real e imaginado). A transnacionalidade (Ong, 1999ONG, Aihwa. Flexible citizenship. The cultural logics of transnationality. Duke University Press, 1999.) é uma categoria de grande importância no cenário das migrações por criar uma nova ideia de pertencimento entre aqueles que se encontram na vida cotidiana dos processos migratórios (Costa, Zanini, 2016COSTA, Jamile; ZANINI, Maria Catarina C. A saga pela cidadania italiana: Pertencimento e memória entre ítalo-brasileiros na região central do Rio Grande do Sul. In: ARENDT, Isabel C.; WITT, Marcos A.; SANTOS, Rodrigo L. (orgs.). Migrações: Religiões e espiritualidades. São Leopoldo: Oikos, 2016., p. 1085-1086). As relações desencadeadas pelo transnacionalismo promovem uma teia de relações que aproxima o país de origem desse migrante ao país em que está residindo, mantendo-se uma ligação com ambos os pertencimentos por meio de uma organização social e/ou econômica (Schiller, Basch, Blanc, 1995SCHILLER, Nina G.; BASCH, Linda; BLANC, Cristina S. From Immigrant to Transmigrant: Theorizing Transnational Migration. Anthropological Quarterly, v. 68, n. 1, p. 48-63, jan. 1995.). Isso possibilita que algumas relações se intensifiquem nesse contexto transnacional (Vertovec, 2009VERTOVEC, Steven. Transnationalism. London/New York: Routlegde, 2009.). Há, ainda, com o uso das novas tecnologias de comunicação, todo um universo de pertencimentos que se cruza no tempo e no espaço dos processos migratórios (Zanini, 2012ZANINI, Maria C. C. Mídias, italianidades e pertencimentos étnicos no sul do Brasil (Brasil). In: COGO, Denise; ELHAJJI, Mohammed; HUERTAS, Amparo (orgs.). Diásporas, migrações, tecnologias da comunicação. Barcelona (Espanha): Editora Bellaterra, 2012, p. 283-298.). Apesar das facilidades que a dupla cidadania possibilita a esses descendentes, ela não representa um nível de igualdade entre ítalo-brasileiros e italianos de solo. Os ítalo-brasileiros, por meio dos relatos que obtivemos, são tratados como “extracomunitários” e migrantes comuns,
como estrangeiros de fato. Esses choques se tornam ainda mais expressivos quando se trata de mulheres ítalo-brasileiras, levando em consideração a imagem pejorativa que a mulher brasileira carrega no exterior (Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em:
http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr. 2018.
Mesmo não tendo acontecido diretamente com todos os nossos interlocutores, muitos tinham algum relato para contar sobre ítalo-brasileiros que sofreram preconceito ou passaram por algum constrangimento na Itália.
Alguns autores já argumentavam sobre a imagem criada da dupla cidadania como um amparo (TedescoTEDESCO, João Carlos.
Casamentos mistos: novas sociabilidades e quadros coletivos. Aspectos da imigração de brasileiras na Itália. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 115-133, mai. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2014000100007/26803 >. Acesso em: 06.04.2017. Ouvimos muitos relatos de ítalo-brasileiras que foram estudar ou trabalhar na Itália contando que os italianos se surpreendiam com a constatação de que elas, de fato, estudavam e trabalhavam, de que não haviam ido para a Itália “arranjar marido” ou se divertir e de que não estavam disponíveis para relações afetivas e sexuais como o estereótipo apresenta as mulheres brasileiras. Nesse sentido, os sinais adscritivos elaborados nos processos de contato étnico são sempre uma negociação que se refaz continuadamente em jogos interativos e políticos, por vezes, mais amplos. Conhecer e se reconhecer nesses jogos interativos foi um processo muito rico para alguns ítalo-brasileiros:
Observamos que, mesmo que os laços com a Itália dos ancestrais se faça presente por meio dos sobrenomes e de seus traços mais particulares, esses ítalo-brasileiros quando chegam à Itália e percebem que não são reconhecidos pelos italianos de solo como “um dos seus” (Zanini, Assis, Beneduzi, 2015ZANINI, Maria C. C.; ASSIS, Glaucia; BENEDUZI, Luis Fernando. Cidadãos de direito, estrangeiros de fato: narrativas de ítalo-brasileiros (as) na Itália. História Oral, v. 18, n. 1, p. 117-145, jan./jun. 2015.) notam surgir sua “brasilidade” (Savoldi, 1998SAVOLDI, Adiles O caminho inverso: a trajetória de descendentes de imigrantes italianos em busca da dupla cidadania (Dissertação Mestrado em Antropologia Social). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1998., p. 121). Na pesquisa, identificamos, também, que a percepção sobre ser um cidadão “italiano” muda conforme as configurações do tempo e do espaço. Traçando um recorte geracional, no qual entrevistamos descendentes jovens (entre 18 e 30 anos) e adultos-idosos (entre 35 e 70 anos), foi possível constatar que a cidadania italiana carrega outros valores e sentimentos de acordo com cada faixa etária. Os descendentes mais idosos, por exemplo, possuem maior apego às origens e uma idealização sobre a Itália de seus ancestrais, com um melhor conhecimento da história, dos costumes, das tradições familiares que vieram com os primeiros imigrantes.
O que percebemos é que, para a grande maioria, não há um interesse em ser, de fato, um italiano perante os que nasceram na Itália, mas sim, de afirmar sua diversidade perante os outros grupos em solo brasileiro. Denominar-se italiano faz mais sentido no Brasil, muitas vezes, do que na Itália, como no caso de uma de nossas entrevistadas que conta não se sentir italiana, principalmente por não saber falar o idioma, e reconhece as vantagens de ter passaporte italiano. Ela utiliza o passaporte, mas não se identifica como italiana.
O que foi possível observar com a pesquisa é que, em muitos casos, não há uma preocupação por parte desses descendentes em conhecer a língua ou determinados costumes da Itália, mas sim, em reafirmar as suas origens construídas em solo brasileiro por meio dos laços de
sangue dos seus ancestrais que aqui constituíram família, histórias, trabalho e uma cultura própria. Além disso, a cidadania italiana acaba por representar status perante os demais grupos em solo brasileiro e, até mesmo, perante outros descendentes de italianos que não dispõem de condições de ingressar com o processo. Enfim, o passaporte é um sinal de distinção muito valioso no Brasil, mas não necessariamente na Itália. O reconhecimento carrega diversos significados para esses
descendentes, mas o que analisamos é que a valorização étnica não está na finalidade da cidadania. Ela representa uma consequência de um direito que é garantido ao grupo, mas que se mobiliza a partir de uma compreensão da “ítalo-brasilianidade” (Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria,
2017. Disponível em: Disponível em: http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr. 2018. Os valores e significados do passaporte “vermelho”Mas, então, que força e valor esse passaporte carrega para continuar sendo objeto de sonho para tantos ítalo-brasileiros? O que justifica tanto tempo de espera nas filas dos consulados ou, ainda, o investimento de um alto valor econômico para fazer o processo fora do país em menor tempo, sendo que, para os italianos, esses descendentes são apenas estrangeiros ou extracomunitários como os demais? O passaporte, além de condensar subjetividades e afetividade, torna-se, também, um símbolo de distinção no mercado simbólico local. Muitos descendentes fazem questão de salientar que possuem a dupla cidadania e que viajam com o passaporte italiano, não precisando, assim, enfrentar longas filas para obtenção de visto nos consulados, como no caso de viagens para os Estados Unidos, por exemplo. Ou que, estando na Europa, podem se deslocar para trabalhar em outros países sendo tratados como “italianos”. Ouvimos de um entrevistado que, como em alguns países não sabiam reconhecer o sotaque da língua italiana falada pelos brasileiros, os ítalo-brasileiros eram tratados como “italianos da Itália” e que ser brasileiro não era algo tornado público. Assim, o passaporte e a documentação italiana proporcionam vantagens nas negociações trabalhistas. Observamos que, para alguns, a conquista do passaporte é o ponto máximo de uma saga em busca da cidadania italiana. Mas, a sua representação enquanto objeto carrega valores tanto econômicos como simbólicos, adquirindo uma “vida social” (Appadurai, 2009APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2009., p. 15), tal qual as pessoas. O passaporte italiano significa para esses ítalo-brasileiros muito além do documento ou objeto que de fato ele é, simboliza a revitalização de suas origens, o que agrega a ele valor sentimental. Ele possui mana (Mauss, 1974MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. II, São Paulo: EPU, 1974.), um valor que lhe é atribuído por meio do que podemos chamar, também, da família como patrimônio (Zanini, 2006ZANINI, Maria C. C. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria - RS. Santa Maria: Editora da UFSM, 2006.). O passaporte objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Muitos descendentes costumam tirar fotografias e postar nas redes sociais quando conseguem o passaporte, apontando e atestando que o processo de reconhecimento obteve sucesso. Os objetos carregam as histórias e memórias culturalmente constituídas de cada grupo, o que acaba os transformando em símbolos dotados de significados (Kopytoff, 2009KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas. Niterói: EDUFF, 2009, p. 89-121., p. 94). Para o reconhecimento da cidadania e a obtenção do passaporte italiano há, hoje, o que se chama um “mercado da cidadania” (Santagati, 2013SANTAGATI, Mariagrazia. Jovens brasileiros, descendentes de italianos: relações transnacionais e significados da dupla cidadania. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 20, n. 2, p. 6-22, 2013., p. 14-15) que se desenvolveu em torno dessa grande busca pelo reconhecimento da cidadania italiana. Nós
observamos que esse mercado da cidadania agrega ao passaporte um status de mercadoria (Appadurai, 2009APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2009., p. 15), com uma vida social definida por meio das circulações estabelecidas diante das relações entre coisa e pessoa. Com isso, compreendemos que o valor agregado ao passaporte não passa apenas pelo alto custo das despesas
de processo, mas também pelas diferentes ações executadas pelos indivíduos para conquistar esse documento. Ele também se torna a cristalização de uma saga familiar como patrimônio simbólico, por meio do processo que as famílias têm que montar e de toda a pesquisa que envolve traçar as genealogias, quando os indivíduos redescobrem suas histórias familiares e a si mesmos, muitas vezes. Há muitas subjetividades que são trabalhadas nesses processos de reconhecimento de cidadania
(Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em: http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso em: abr.
2018. Isso vale tanto para quem abre o processo no Brasil como para os que se aventuram até a Itália e desembolsam valores ainda maiores. Nessa escolha, prevalece a questão do tempo e do custo-benefício. O Rio Grande do Sul é um dos lugares do Brasil em que o processo demora mais tempo, levando, em média, 10 anos para ser concluído. Na Itália, é possível estar com o passaporte em mãos em até 90 dias. Essa agilidade tem motivado muitos jovens que anseiam por melhores condições de vida e estudo fora do Brasil a desembolsarem esse alto valor para conseguirem o documento de forma mais rápida. Um de nossos interlocutores, que chamamos de Rafael (37 anos), fez seu processo de reconhecimento na Itália com o auxílio de uma advogada gaúcha que já residia lá há alguns anos. Ele nos destacou que há muitas empresas e pessoas trabalhando com processos de reconhecimento da dupla cidadania na Itália. Elas preparam todas as documentações e a residência para a pessoa que chega solicitando auxílio.
A questão da moradia fixa é uma exigência para abertura do processo na Itália. No entanto, o que se constata é que as pessoas permanecem nessa
residência apenas o tempo necessário para a visita do responsável (o vigile) por fiscalizar se a pessoa realmente está estabelecida de maneira fixa em território italiano. Ao final desse processo, muitos desses ítalo-brasileiros retornam ao Brasil. A facilitação de residências fictícias é uma fraude praticada por um grande número de agências de assessoria na Itália, mas poucos casos são detidos pelas autoridades. Uma segunda visita dos vigili pode ser solicitada para confirmar se a
pessoa segue residindo no local indicado, porém, raras vezes acontece. Há dinheiro e fatores maiores em jogo (Costa, 2017COSTA, Jamile. Dupla cidadania: ítalo-brasilianidade como valorização e afirmação étnica no sul do Brasil (Dissertação Mestrado em Ciências Sociais). Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 2017. Disponível em: Disponível em: http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/images/dissertacoes/2015/Jamile%20Dissertao%20verso%20final.pdf . Acesso
em: abr. 2018. Enquanto objeto, o passaporte possui valor e representa as motivações pessoais, a importância particular que cada descendente agrega a ele, por meio da história social que ele representa, refletindo as histórias e memórias familiares que se materializam no presente, na figura desse documento. Nas histórias que ouvimos, o passaporte carrega em si as movimentações individuais desses descendentes na busca pelo reconhecimento, suas expressões culturais e conhecimentos de grupo. Trata-se de movimentos tão valiosos na compreensão do pertencimento grupal que o valor econômico e as dificuldades impostas pela “saga pelo reconhecimento” se tornam irrelevantes diante do valor simbólico agregado ao passaporte. Considerações FinaisEm nossos estudos, identificamos que o reconhecimento da cidadania italiana representa para esses ítalo-brasileiros muito mais do que um direito jurídico-político a ser reconhecido. Há subjetividades envolvidas, há muita busca que extrapola questões práticas e objetivas e adentram no universo dos pertencimentos e suas identificações. O reconhecimento representa a legitimação legal de uma “italianidade” que já está presente no grupo por meio das memórias, hábitos e costumes trazidos pelos seus ancestrais nos séculos passados. Trata-se de uma materialização de valores simbólicos e afetivos também. O passaporte cristaliza a história vivida nas sagas familiares. É como se ela fosse “real”, de fato. É uma comprovação, por isso, prevalece a ideia de reconhecimento. Ou seja, o Estado italiano os “reconhece” como iguais; mas a sociedade civil italiana, não. Constatamos, também, que, além da comprovação dessa diversidade para o mundo, essa “italianidade” representa uma diversidade cultural em solo brasileiro. Trata-se de uma forma de demarcar sua diversidade étnica perante os outros grupos e, ainda, de obter status com relação a outros descendentes de italianos que não possuam a dupla cidadania, uma vez que observamos nas narrativas que, em muitos casos, não há o desejo de ser um nacional italiano perante os italianos de solo. O reconhecimento da cidadania italiana ganhou força nos últimos anos, com as crises políticas e econômicas enfrentadas pelo Brasil. Os descendentes buscam melhores condições de vida e trabalho fora do país. Nesse sentido, o passaporte italiano facilita esses fluxos e mobilidades. No entanto, o que se percebe nos relatos de quem vai para a Itália por algum período é que, embora esse passaporte garanta algumas vantagens de deslocamento, o olhar dos italianos de solo para esses ítalo-brasileiros é o mesmo que eles têm para qualquer outro migrante brasileiro que não possua o documento. Contudo, para os descendentes, o passaporte carrega significados e representações muito fortes. As representações envolvidas na figura do passaporte acabam por fazer com que seu valor simbólico seja mais importante que os custos econômicos que ele implica para as famílias. É essa importância que mobiliza esses ítalo-brasileiros a desembolsarem valores econômicos elevados, por vezes, para obter o documento, seja no Brasil ou na Itália. Compreendemos que o reconhecimento da cidadania italiana carrega consigo diversos e múltiplos significados para os descendentes que ingressam com o processo, independentemente da faixa etária. A cidadania representa o direito que é garantido em função da “ítalo-brasilianidade” desse grupo. O uso que dela se faz e do passaporte, seu símbolo maior para muitos, é derivado dos projetos de vida desses descendentes e de como potencializam ou não tal cidadania. Referências
Datas de Publicação
Histórico
Quais fatores impulsionam a movimentação de brasileiros descendentes de italianos para Itália?Em plena pandemia de Covid-19, a busca por qualidade de vida, estabilidade financeira e oportunidades profissionais e educativas pode ter sido um fator decisivo para impulsionar o número de brasileiros que entraram com um requerimento para uma segunda cidadania.
Qual foi o motivo da imigração da Itália?Os italianos, como todos os demais imigrantes, deixaram seu país basicamente por motivos econômicos e socioculturais.
Quais foram as principais influências que trouxeram os imigrantes italianos para o Brasil?Alguns exemplos de indústrias que receberam a influência de trabalho dos italianos: metalurgia, vinícolas (citado anteriormente, na região Sul), setor de alimentos, tecelagem e de fiação. Portanto, pode-se afirmar com certeza que os italianos contribuíram para o desenvolvimento do Brasil.
Quem estimulou os imigrantes italianos?Com esse cenário ruim, a emigração era estimulada pelo governo italiano e era, para as famílias, uma forma de sobrevivência. Os Estados Unidos chegou a receber milhares de imigrantes, mas colocou barreiras para impedir a entrada de estrangeiros no país.
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