MIGUEL BOYAYANA escrita do professor José de Souza Martins, 69 anos, é de surpreendente beleza, rara em textos sociológicos, a par de sua contundência analítica. A prosa, ou melhor, a conversa do sociólogo é densa, mas fluente, caudalosa, envolvente, pronta para fazer o interlocutor descortinar novas experiências, vislumbrar outros mundos, entregar-se ao inesperado das histórias, uma saindo de dentro da outra à maneira das narrativas que beberam na fonte das mil e uma noites. E tanto é assim que 3 horas de conversa com esse professor titular da Universidade de São Paulo (USP), articulista do Estado de S. Paulo, se reproduzida na íntegra, renderia exatamente cinco entrevistas do tamanho da que ocupa as páginas seguintes. E todas consistentes, transitando das questões teóricas que assolam contemporaneamente a sociologia a seus estudos sobre linchamentos; passando das análises do subúrbio às migrações da Região Sul a Rondônia nos anos 1970; indo da própria e diferenciada trajetória pessoal desse filho de operários, ele próprio um trabalhador muito precoce, tanto que aos 11 anos já estava nessa lida de adultos, aos debates sobre modernidade, cotidianidade e o lugar dos sonhos e dos resíduos de esperança na investigação sociológica. Sim, sociológica – o professor Martins não acredita que os sonhos sejam domínio exclusivo da psicanálise e da teoria freudiana. Em meio a tamanha riqueza de reflexões, os trechos a seguir resultam principalmente de uma escolha por um dos eixos da entrevista, aquele que diz respeito ao livro A sociabilidade do homem simples, há pouco lançado numa segunda edição pela editora Contexto. É um dos 27 livros publicados por Martins, considerado por ele mesmo central em sua obra sociológica. Logo depois a Editora 34 lançou A aparição do demônio na fábrica: origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário. Em tempo: Martins foi professor da Cátedra Simón Bolívar na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e professor visitante nas universidades da Flórida, nos Estados Unidos, e de Lisboa, em Portugal. É fotógrafo amador e faz parte do Conselho Superior da FAPESP. Uma versão mais completa desta entrevista estará disponível em breve no site de Pesquisa FAPESP. Gostaria de começar por um comentário de caráter estético: acho surpreendente a escrita de um sociólogo ter a beleza que seu texto exibe, por exemplo, em A sociabilidade do homem simples. Como é essa relação entre pesquisa sociológica e linguagem? Mas, além disso, tem um certo gosto, prazer mesmo, na lida com as palavras. A propósito, o livro é de 2000, com uma reedição agora em 2008. O senhor diz, na página 11, que ele se situa na ampla temática do reencontro possível do homem consigo mesmo, na diferença da nossa especificidade histórica e, além disso, que contém uma proposta metodológica, a de tomar o que é liminar, marginal e anômalo, como referência da compreensão sociológica. O propósito de 2000 se manteve em 2008? No mesmo modo das populações ribeirinhas do São Francisco, que nos anos 1970 estavam sendo deslocadas das margens do rio para dar lugar às barragens e tinham que mudar radicalmente toda sua vida. Uma sua descoberta, afirmada no livro, é quanto é revelador o discurso dessas sociedades liminares. E aí vêm as questões sobre a renovação do pensamento sociológico. E há um reconhecimento da sociologia brasileira e da ciência brasileira a esse respeito? Como o sociólogo, posto ao mesmo tempo num solo crítico e no terreno da alienação, pode, ao fazer a crítica, não estar alienado daquilo que está olhando? Como depois de toda uma infância e adolescência sacrificadas, cheias de reviravoltas, dramas familiares, trabalho precoce, e com vários anos sem estudar, se deu sua opção pela sociologia? Quando ocorreu sua entrada na USP? A partir daí, a sua carreira acadêmica vai se desenvolvendo com vigor. E em 1969 como ficou a sua situação? O senhor nunca teve vinculação com o partido comunista? Quer dizer, foi de seu bolso. Cada história de uma pesquisa sua parece puxar outra, simultânea… Eu gostaria de pegar aquela questão da modernidade e do moderno como está em A sociabilidade do homem simples. Veja-se esse trecho: “Se a modernidade é o provisório permanente, o transitório como modo de vida, a moda; a nossa questão é saber qual a forma que ela assume em sociedades como as sociedades latino-americanas e na sociedade brasileira em particular e, em muitos aspectos, tão diversa do restante da América Latina”. Que forma ela assume? Ao examinar a questão da modernidade, seu livro entra no terreno da imagem, assunto fundamental nos estudos de comunicação. Destaco esse trecho que se segue à observação das antenas parabólicas nas favelas: “É como se as pessoas morassem no interior da imagem, e comessem imagens. A imagem se tornou, no imaginário da modernidade, um nutriente tão ou mais fundamental do que o pão, a água e o livro. Ela justifica todos os sacrifícios, privações e também transgressões” (p. 36). Isso me parece estranhamente próximo do conceito de Muniz Sodré sobre o que ele chama bíos midiático, a vida midiatizada. Nesse mesmo capítulo sobre a modernidade há um diálogo seu com [Nestor García] Canclini (p. 20), e eu gostaria de saber se também não há ali, embora não explícita, uma resposta a Paul Baudrillard, nas referências à noção de simulacro. Em seu diálogo com Lefebvre, o que é mais enriquecedor para entender a sociedade brasileira? No capítulo após o do exame da modernidade e dos desafios de renovação do pensamento sociológico, encontramos o seguinte sobre a crise dos grandes sistemas explicativos (p. 52): “As grandes certezas terminaram. É que com elas entraram em crise as grandes estruturas da riqueza e do poder (e também os grandes esquemas teóricos). Daí decorrem os desafios deste nosso tempo. Os desafios da vida e os desafios da ciência, da renovação do pensamento sociológico”. Até pensando nos sociólogos em formação nesse momento, como traduzir na linguagem do senso comum esses desafios? Ao lidar com as questões da teoria em A sociabilidade, e pensando sobre a divergência de orientação de marxistas e fenomenologistas na sociologia, há uma referência à possibilidade de algum encontro, que cria um lugar de conhecimento. Como se costura essa possibilidade teórica em sua experiência? Mas como é essa esperança residual? Temos pistas para identificar esses atores? Mas mesmo nesse momento em que o cotidiano parece engolir tudo, há algumas pistas de quem porta a esperança? Então, o quê? E o que aconteceu para que a coalizão não se sustentasse? Sua investigação do sonho foi para ver como se apresentavam, numa outra instância, essas necessidades radicais? Se apropriar do sonho na sociologia é uma aposta ousada. Porque eles tinham que descobrir por fora da teoria freudiana o que os sonhadores estavam dizendo de si mesmos com os sonhos. E quanto ao trabalho de Florestan? Então o sonho ajuda a entender quem é o sujeito? O diurno e o noturno, o corpo e a alma… Somos arcaicos mesmo, em certa medida. A pesquisa também encontrou que os rostos na rua não são rostos revelados nos sonhos, não é? Eu queria destacar esse trecho em seu livro (p. 60), porque acho de uma beleza extraordinária: “O que nos aterroriza nos sonhos é a denúncia que nós mesmos nos fazemos de nossos temores e terrores, matérias-primas de nosso conformismo. A coragem da nossa noite põe diante de nossos olhos e da nossa consciência a coragem que nos falta durante o dia, em face do que nos conforma e nos obriga. A loucura da noite e do sonho denuncia a insanidade do dia e da vigília: a insanidade de um agir conduzido e demarcado por um querer alheio, não interrogado, nem questionado”. Além da beleza, alude à nossa alienação inevitável. Aproveito sua afirmação de que “a pesquisa empírica faz a diferença enorme entre o ensaísmo sociológico de fundo filosófico e a sociologia propriamente dita”, para lhe perguntar: o que é a sociologia, em sua visão? |