Por que o homem é de acordo com o existencialismo sartreano um ser condenado a liberdade

O existencialismo é uma corrente teórico-filosófica de pensamento que ganhou notoriedade no século XX a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo filósofo alemão Martin Heidegger e pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre. Porém, as raízes dessa vertente filosófica encontram-se nos escritos do filósofo alemão Edmund Husserl e, mais profundamente, ainda no século XIX, no pensador dinamarquês Søren Kierkegaard e no controverso filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

A filosofia, segundo Nietzsche e Kierkegaard, deveria abandonar a pretensão de construir grandes sistemas teórico-racionais universalmente válidos, bem como abandonar a dedicação exclusiva para entender somente uma realidade lógica e metafísica. Os filósofos, no lugar da lógica e da metafísica, deveriam voltar-se para a própria vida humana como um fenômeno filosófico. Assim, podemos enunciar que:

  • Kierkegaard estabeleceu que, para que o filósofo compreenda a vida humana, ele deve pensar sobre sua própria vida;

  • Nietzsche afirmou que o sentido da filosofia é uma busca do sentido da vida cotidiana, biológica, fisiológica e sensorial;

Somente a partir desse olhar para a própria vida é que o ser humano consegue atingir uma vida plena e autêntica, pois é a partir daí que ele vai construindo sua própria existência.

Junto a esse apanhado teórico deixado pelos filósofos oitocentistas, está o método criado por Husserl, batizado de fenomenologia. A fenomenologia é um método filosófico que procura entender as essências das coisas por meio das impressões que os fenômenos provocam nas pessoas, ou seja, em vez de elaborar sistemas filosóficos que compreendam as essências dos objetos do mundo para se criar uma metafísica, o filósofo, chamado por Husserl de fenomenólogo, deveria utilizar a sua percepção sensorial, utilizar os seus sentidos, para compreender o mundo em que vive.

Jean-Paul Sartre criou, a partir de todo esse aparato filosófico e das influências do alemão Martin Heidegger, uma filosofia profundamente existencialista que priorizava a existência material e concreta a qualquer essência possível. Isso significa dizer que o ser humano não possui uma essência que o defina de imediato, mas ele é definido de acordo com o modo como vive. O ser humano constrói-se, individualmente, a cada dia e nunca estará pronto e definido, pois aquele processo de construção somente cessa com a morte. E é dessa maneira que todo ser humano também se torna responsável pelo modo como ele vive, pois

Essa situação o torna, paradoxalmente, um condenado à liberdade, pois tudo o que ele faz, em certo sentido, faz por escolha própria.

Para explicar a teoria existencialista, Sartre recorreu ao dualismo psicofísico como composição do ser humano: nós somos compostos de um corpo (matéria) e de uma consciência imaterial. Não é possível existir uma consciência sem um corpo (Sartre é um filósofo materialista), do mesmo modo que um corpo sem consciência não é um ser humano. O filósofo lança mão então de dois conceitos centrais:

  • Ser-em-si: é aquele que tem uma identidade definida, ou seja, são os objetos e as coisas. Faz parte também do ser humano, pois é o seu corpo;

  • Ser-para-si: tem consciência de si, vive para si, mas não tem uma identidade definida. É a consciência que nos compõe enquanto seres humanos.

Esses dois conceitos levam o ser humano a uma situação de angústia, pois, enquanto “ser-em-si”, ele quer ser idêntico a si mesmo, mas não consegue, pois a consciência não tem identidade pronta e definida. Também não há como ser somente consciência, consciência pura, pois toda consciência, para existir, necessita de um corpo.

Portanto, não há essência humana, e, se não há essência, também não há natureza humana. Somente há a condição humana. O ser humano sempre terá que construir sua existência. Ele não é algo, ele sempre estará na condição de algo. Por isso, sempre estará também condicionado a algo que o qualifica momentaneamente enquanto um ser que existe para aquilo.

Por Francisco Porfírio

Graduado em Filosofia

Por que o homem é de acordo com o existencialismo sartreano um ser condenado a liberdade
Célebre retrato de Sartre caminhando nas dunas de Nida, na Lituânia, em 1965. Na imagem, vemos o filósofo projetando a sua sombra nas areias, representando a ideia existencialista de que é o homem, através da projeção da sua vontade no mundo, que constrói a si mesmo e o seu próprio caminho. Foto: Antanas Sutkus

Um dos conceitos fundamentais da filosofia existencialista sartriana é o de liberdade, uma vez que, para o filósofo, o homem está condenado a ser livre e toda a sua existência decorre desta condição. Assim, frente a uma decisão, o homem percebe o seu total desamparo, já que não há nada que possa salvá-lo da tarefa de escolher; em suma, nada pode salvá-lo de si mesmo – diria Jean-Paul Sartre.

Desse modo, o ser humano, fundamentando-se na sua estrita liberdade, vê-se a todo instante compelido a se inventar, posto que são suas escolhas que constroem a sua essência. Diante desta condição, cabe somente a ele estabelecer, através de suas ações concretas, os critérios que servirão de norte para as suas decisões, explica Sartre.

[…] o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angústia ética. Há angústia ética quando me considero em minha relação original com os valores. Estes, com efeito, são exigências que reclamam um fundamento. Mas fundamento que não poderia ser de modo algum o ser, pois todo valor que fundamentasse a sua natureza ideal sobre seu próprio ser deixaria por isso de ser valor e realizaria a heteronomia de minha vontade. […] Daí que minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores.[1]

Frente a esta falta de fundamentos prontos, o homem angustia-se diante da responsabilidade de escolher, visto que a escolha é ao mesmo tempo afirmação do valor daquilo que se escolhe, trazendo consigo, assim, o peso da responsabilidade. Desse modo, ao escolher algo e, consequentemente, afirmar o seu valor, estamos ao mesmo tempo comunicando a todos o caráter benéfico daquela escolha, já que não há ninguém que possa escolher o mal para si. Desse ponto de vista, nos tornamos responsáveis não só por nós, mas por toda a humanidade.

Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.[2]

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Quando Jean-Paul Sartre diz que “nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos”, ele quer dizer, precisamente, que ao escolhermos algo, estamos optando por uma alternativa que, dentro das condições de existência nas quais estamos inseridos, seria a melhor opção e, por ser a melhor, todos também poderiam optar pela mesma. Assim, ao escolher algo, o homem cria um modelo de homem que outros podem seguir; daí a sua responsabilidade diante da humanidade.

O existencialismo de Sartre, ao contrário das filosofias contemplativas, caracteriza-se por ser uma doutrina de ação, colocando sempre o compromisso como fator indispensável para a existência humana, uma vez que, sem compromisso, não há projeto de ser e, sem projeto de ser, o homem torna-se incapaz de conferir qualquer sentido à existência. Se a intencionalidade é a característica fundamental da consciência, ser livre é engajar-se, comprometer-se e, enfim, responsabilizar-se.

Portanto, concluímos que não há nada que possa eximir o homem da sua condição de ser livre e, consequentemente, da sua condição de responsabilidade diante de seus atos. Barreiras psicológicas, históricas ou socioeconômicas não são capazes de ofuscar a liberdade a qual Sartre se refere, pois estas nada mais são do que as condições de existência que possibilitam escolher por A ou B; sem tais condições, a escolha seria impossível; mais do que isso: toda a existência seria impossível.

Toda condição é, por sua natureza, uma limitação; contudo, é também o que possibilita a existência de algo. Logo, para que a liberdade exista, é necessário que existam as condições que possibilitem a sua existência, isto é, que possibilitem o ato da escolher, mas que também, por outro lado e ao mesmo tempo, limitem as possibilidades dessa escolha.

O homem é livre porque não é si mesmo, mas a presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser.[3]

Diante dessa constante tarefa de fazer-se, do desamparo, da falta de fundamentos prontos e da responsabilidade que carrega diante de si e da humanidade, a liberdade traz ao sujeito a angústia existencial, a qual emerge no momento da decisão. Angustia-se, pois não é capaz de alterar as condições de existência que se lhe apresentam, tendo de escolher, por vezes, entre o ruim e o pior e tendo de arcar com as consequências dessa escolha; mais que isso, também não é capaz de não realizar essa escolha; e por fim, tem a incontornável tarefa de buscar, em sua subjetividade imanente, ou seja, na sua pura liberdade, os princípios que regerão sua escolha; isto é, terá de estar diante de seu próprio nada; eis o princípio da angústia.

E minha liberdade se angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser ‘postos em questão’, já que a possibilidade de inverter a escala de valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os valores é o reconhecimento de sua idealidade.[4]

A liberdade, porém, não possui uma realidade concreta; não possui uma essência, uma vez que ela própria é o fundamento de toda a essência humana na medida em que fundamenta o agir, possibilitando a projeção da vontade do homem na existência e, por fim, a construção do seu ser, tendo em vista que, segundo a máxima sartriana, a existência precede a essência; isto é, primeiramente o homem é lançado na existência e, só depois, por meio de suas ações, este homem pode representar-se como sendo alguma coisa, pois, a priori, não era nada.

Como vimos, não há determinismos que possam eximir o homem da sua condição ontológica de liberdade. Contudo, na tentativa de livrar-se da angústia trazida pela responsabilidade que a liberdade carrega consigo, o homem refugia-se na má-fé. Sartre admite que a má-fé pode ser compreendida como o ato de mentir para si mesmo, mas um mentir que não comporta a dualidade do enganador e do enganado, pois, aqui, aquele que é enganado é também consciente da verdade que deseja suprimir. Porém, a má-fé tem por sua natureza mesma a característica de negar-se como má-fé, sendo um processo de constante e frustrado esforço, uma vez que, para que se possa fugir de algo que se faz presente na própria consciência, é necessário que se pense constantemente nesse algo; isto é, o projeto da má-fé consiste em encarar certo aspecto do ser com a pretensão de dele fugir, num só movimento; obviamente, na consciência, tal objetivo é impossível de ser realizado e, por ser impossível, a má-fé nunca se encerra em seu objetivo.

Basicamente, podemos compreender a má-fé como a tentativa de transferir responsabilidades que concernem unicamente ao indivíduo; ou seja, ao atribuir exclusivamente a fatores sociais, metafísicos, históricos ou até inconscientes o fundamento e as responsabilidades de sua escolha, o indivíduo se encontra no estado de má-fé, pois tais fatores exercem influência na sua decisão ao determinarem as possibilidades de escolha; contudo, cabe somente a ele optar, por meio de sua liberdade, por qual possibilidade lhe é mais adequada. Aqui, não há como fugir; só há espaço para a subjetividade do sujeito, ou seja, para o seu próprio nada de ser, e qualquer tentativa de preencher este espaço vazio será aqui denominada de má-fé.

Referências

[1] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.

[2] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Voltar ao texto ↑.

[3] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.

[4] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.

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