Como criamos uma história sobre as pessoas ou grupos que não conhecemos o suficiente

A Companhia das Letras lançou recentemente a versão impressa da palestra O Perigo de Uma História Única, de Chimamanda Ngozi Adichie. Traduzido por Julia Romeu, a adaptação traz os pouco mais de 18 minutos da primeira participação da escritora no evento Technology, Entertainment and Design, em 2009. Nele, Chimamanda traça ideias sobre o termo cunhado por ela — e que dá nome a palestra — em referência à formação de estereótipos de pessoas, lugares e/ou realidades sob a perspectiva da construção cultural e da distorção de identidades.

Chimamanda Ngozi Adichie, que nasceu em Enugu, Nigéria, é uma autora premiada, cujas escritas abordam questões étnicas, de gênero e de pertencimento. Seus trabalhos estão diretamente conectados a seu país de origem, abrangendo diferentes vivências e resultando em conceitos acerca de sua nação. É com esse gancho do gosto pela escrita que Chimamanda inicia seu discurso. Ela conta sobre ter se tornado uma leitora e escritora muito nova e sobre como o fato de ter apenas uma única fonte de influência, uma única forma de contar histórias, refletia profundamente nas histórias que ela criava.

Assim como as obras a que tinha acesso, todos os personagens de Chimamanda eram brancos e de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e falavam muito sobre o tempo, do quão bom era que o dia estava ensolarado. Algo muito distante da realidade da escritora já que na Nigéria não tinha neve, eles comiam mangas em vez de maçãs e nunca falavam sobre o tempo porque não era necessário. Isso demonstra, nas palavras de Chimamanda, o quão vulneráveis somos face a uma história. Isso só mudou com a descoberta dos escritores africanos que serviram de auxílio para deixar de lado o que, até então, era apenas uma visão singular sobre o que são, bem… livros.

“Porque tudo o que eu havia lido eram livros em que os personagens eram estrangeiros, fui convencida de que livros naturalmente tinham de ter estrangeiros e ser sobre coisas com as quais eu não poderia me identificar. Mas tudo mudou quando eu descobri livros africanos (…) Tive uma virada na minha percepção sobre literatura. Percebi que pessoas como eu, meninas com pele de cor de chocolate, cujo cabelo crespo não dava pra fazer rabo-de-cavalo, também poderiam existir na literatura”. 

Como criamos uma história sobre as pessoas ou grupos que não conhecemos o suficiente

Além dessa relação com a literatura, em O Perigo de Uma História Única, Chimamanda também relembra outros casos. Quando tinha 8 anos, por exemplo, a escritora ficou surpresa ao descobrir que a família do garoto que trabalhava em sua casa havia produzido artesanalmente um cesto de ráfia seca. Até então, ela só havia ouvido sobre a “pobreza” daquela família, portanto a ideia de que algum parente do garoto pudesse realmente produzir algo lhe parecia impossível. Já aos 19 anos, quando deixou seu país para cursar universidade nos Estados Unidos, a escritora passou por um episódio similar numa posição inversa. Sua colega de quarto se chocou ao saber que inglês também era a língua oficial na Nigéria e ficou bem desapontada quando pediu para ouvir o que chamava de “música tribal” e escutou Mariah Carey tocar na fita cassete que Chimamanda havia levado. A colega de quarto havia sentido pena da escritora antes mesmo de conhecê-la de fato. Assim como Chimamanda tinha uma única história sobre a família que trabalhava em sua casa, sua colega de quarto tinha uma história única sobre a África, e, consequentemente, sobre a escritora.

“Nessa história única não havia a possibilidade de africanos serem iguais a ela de forma alguma. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que a pena. Nenhuma possibilidade de conexão como humanos. (…) Então, depois de ter passado alguns anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender a reação da minha colega de quarto para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e tudo o que eu soubesse sobre África viesse das imagens populares publicadas, eu também pensaria que a África era um lugar de paisagens bonitas, animais bonitos e pessoas incompreensíveis, disputando guerras insensatas, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por si mesmas. Esperando para serem salvas pelo estrangeiro branco e gentil. (…) Eu acho que essa história única vem da literatura ocidental. (…) Então comecei a perceber que minha colega de quarto deve ter visto e ouvido, durante toda sua vida, diferentes versões da história única”. 

Também na faculdade, um professor disse a Chimamanda que um romance escrito por ela não era “autenticamente africano” já que os personagens daquela obra se assemelhavam muito a ele — um homem educado de classe média. Bastou para esse professor que as personagens dirigissem carros e não estivessem famintas para não serem consideradas africanas o suficiente. Numa outra situação Chimamanda se põe novamente como emissora desse olhar superficial. Nos Estados Unidos, onde estava, havia constantes debates sobre imigração (como acontece até hoje) e “como frequentemente acontece na América, imigração é sinônimo de mexicanos”. Chimamanda entrou em contato com inúmeras histórias sobre como os mexicanos enchiam o sistema de saúde, passavam escondidos pelas fronteiras e as prisões em decorrência dessas tentativas.

“Eu me lembro de passear no meu primeiro dia em Guadalajara, de ter visto as pessoas indo trabalhar, delas enrolando tortillas no mercado, fumando, sorrindo. Lembro que meu primeiro sentimento foi surpresa. E então eu fui inundada pela vergonha. Eu percebi que estava tão imersa na cobertura da mídia sobre os mexicanos, que uma coisa se formou na minha cabeça: o imigrante abjeto. Eu tinha caído na histórica única sobre os mexicanos e eu não poderia ter ficado mais envergonhada de mim mesma”. 

Ou seja, existem hoje diversas “únicas históricas” sendo contadas constantemente em diferentes lugares, por diferentes pessoas. Como ser humano, qualquer um está sujeito a isso — a ser ouvinte ou emissor dessas histórias —, não estando livre de formular padrões sobre o outro. E para Chimamanda a questão não é nem que os estereótipos estejam errados, mas sim que eles são incompletos, portanto, além de tornar a experiência rasa, eles negligenciam todas as outras narrativas que formam um lugar ou uma pessoa. Assim como ocorre com a imigração mexicana nos Estados Unidos, quando se trata de um povo basta que ele seja mostrado repetidas vezes sob um mesmo aspecto e isso é o que ele será enquanto narrativa.

No entanto, nessa estrutura há um fator determinante: o poder. É ele quem vai determinar como as narrativas são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas. Para fazer um paralelo com a realidade brasileira, basta pensar nos casos de violência relacionados a pessoas marginalizadas e a cobertura midiática em cima deles. Há uma naturalização e banalização dependendo do recorte de cor (etnia), classe e gênero. Esse sistema de poder, sustentado principalmente pelos meios de comunicação, define parte do controle aplicado às populações. Afinal, esses veículos não são simples formas de transporte de informações, mas também guardam significados culturais e impactam na formação de ideias e comportamentos de seus receptores. Muitas vezes o meio é a mensagem.

“A consequência da história única é a seguinte: rouba-se a dignidade das pessoas. Dificulta o reconhecimento da nossa humanidade compartilhada. Enfatiza o quão diferentes somos em detrimento de quão iguais somos.”

Por isso, a mensagem de O Perigo de Uma História Única serve de alerta para a necessidade de apuração em relação ao que se é contado sobre terceiros; é também um pedido para que as histórias sejam transmitidas por quem está inserida nelas, para assim validá-las. Narrativas podem destruir a dignidade de um povo, desumanizando-o, mas também podem restaurar essa dignidade perdida. Como solução, a escritora propõe o comprometimento com os dois lados, promovendo “um equilíbrio de histórias”. É preciso entender de vez a urgência da investigação, da quebra da parcialidade do que se conta, do que se transmite a outras pessoas e pôr isso em prática. Histórias têm poder.

Como criamos uma história sobre as pessoas ou grupos que não conhecemos o suficiente

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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