Por quê aceitamos o autoritarismo

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Por quê aceitamos o autoritarismo

Cena da propaganda do BB retirada do ar (Foto: Reprodução, via BBC News Brasil)

Por um lado, o mundo confronta um ressurgimento do autoritarismo. O Financial Times publicou um artigo intitulado “A Ascenção de líderes autoritários e populistas” em janeiro de 2019, citando exemplos como Trump, Putin, Chávez, Erdogan e Bolsonaro. O artigo define autoritarismo como ausência de democracia. Num governo autoritário, as decisões são tomadas por poucas pessoas que têm a confiança da liderança, membros da família são colocados em posições de poder e pessoas que não concordam com a opinião do líder são substituídas rapidamente. Como se podia ver, isso afeta também a liderança das empresas brasileiras. Se lembram do caso de Delano Valentim, diretor de comunicação e marketing do Banco do Brasil, que deixou o cargo após Bolsonaro ordenar a retirada de uma campanha com negros e negras por mostrar “diversidade demais”? Outra característica é que esses líderes operam com base em opiniões, e não em dados objetivos. O que conta é a opinião do líder, sem base cientifica e sem discussão crítica. É o ressurgimento de comando e controle!

Por outro lado, vemos cada vez mais CEOs declarando que comando e controle não funcionam mais. Especialmente num mundo VUCA (sigla em inglês para volátil, incerto, complexo e ambíguo), estruturas muito rígidas não conseguem mais se adequar às mudanças da sociedade e do mercado. Por isso, em vez de ordenar de cima, a nova geração de CEOs tenta orientar e motivar os colaboradores com propósito e valores. Decisões são tomadas mais democraticamente, com uso de Big Data (muitos dados) e depois de bastante discussão crítica na empresa.

Com isso, por um lado os CEOs confrontam um sistema autoritário no governo, e por outro, criam um sistema anti-autoritário na empresa, baseado em valores. E aí o bicho pega. As empresas se posicionam com valores e isso gera conflitos.

O lema com o qual o Google atraiu muitos talentos era “não faça mau” (Don´t Be Evil). Por causa desse posicionamento, mais de 3 mil colaboradores assinaram uma carta protestando contra um trabalho que a empresa fez em inteligência artificial para o Pentágono (órgão da defesa e do exército americano), começando com as palavras “Acreditamos que Google não deveria estar no negócio da guerra”. Em 2018, o Google decidiu não participar de um leilão de US$ 10 bilhões sobre um contrato de computação em nuvem para o Pentágono.

Antigamente, as empresas eram organizações neutras que não se posicionavam publicamente. Isso mudou e, consequentemente, causou uma politização das empresas. Hoje em dia, os CEOs estão confrontando o dilema de definir com quem brigar: com o governo ou com os funcionários.

Alguns optam por brigar com o governo. CEOs de empresas como Intel, Under Armour e Merck deixaram o Conselho de Manufatura de Trump por ele não condenar supremacistas brancos depois dos atentados de Charlottesville. Brian Krzanich, CEO da Intel, defendeu sua saída dizendo: “Renuncei porque quero avançar, enquanto muitos em Washington estão preocupados em atacar qualquer pessoa que não concorda com eles.” Há pouca dúvida que este posicionamento vai impactar os resultados econômicos da empresa.

Parece que o Google ultimamente tenta minimizar a briga com o governo. A empresa retirou silenciosamente o lema “Não faça mau” do código de conduta em 2018. Em agosto de 2019, lançaram uma nova política que proíbe criticar celebridades e políticos. Além disso, chamam a atenção sobre discussões políticas intensas que podem prejudicar a jornada de trabalho. Aqui também há pouca dúvida de que essas novas políticas vão impactar a motivação e retenção de talentos.

Aposto que vamos ver mais dessas tensões no futuro. Estou curioso para ver como a liderança empresarial vai se posicionar. Você já sabe como confrontar este dilema?

*Heiko Hosomi Spitzeck é Diretor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral

Introdu��o

O autoritarismo � um dos principais temas do pensamento pol�tico brasileiro (PPB). H� uma dimens�o interpretativa culturalista e liberal que busca compreender o nosso “atraso” tendo como foco a aus�ncia de uma ordem moderna, racional-legal e autenticamente democr�tica (Werneck Vianna, 1999). Essa vertente, formada por Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman, baseia-se em uma perspectiva dualista, pois apresenta uma distin��o estrita entre Estado e sociedade (Chaloub & Lima, 2018, p.26). Existe a premissa da autonomia do Estado em rela��o � sociedade e o compartilhamento da tese da singularidade pol�tica brasileira, marcada, entre outros aspectos, pela falta de divis�o estrita entre p�blico e privado, de seculariza��o e de racionaliza��o (Tavolaro, 2014). Esses autores guardam em comum a tese de que a singularidade brasileira � definida pela configura��o de seu sistema pol�tico (Werneck Vianna, 2004, p.169). N�o existe o questionamento da ideia de que a vida pol�tica brasileira � resultado de uma forma singular de organiza��o pol�tica, marcada pelo dom�nio autocr�tico e privatista sobre o Estado, e que define uma realidade essencialmente diferente das democracias que existiriam nos pa�ses centrais. O autoritarismo nacional seria explicado pela persist�ncia de formas tradicionais de sociabilidade pol�tica que fazem com que as institui��es do “pa�s legal” sejam rejeitadas pelas institui��es do “pa�s real” (Lynch, 2019, p.26).

Essa vertente do PPB j� foi alvo de algumas cr�ticas, como a da aus�ncia das bases sociais e da din�mica social da pol�tica (Botelho, 2019, p.17) na an�lise, e a consequente dissocia��o entre Estado e sociedade (p.20) Ao contr�rio da interpreta��o formulada pela sociologia pol�tica, essas leituras do PPB produziram, como vimos, imagens do Brasil que apresentam o autoritarismo como fen�meno exclusivo do Estado.

O PPB possui um estilo de reda��o pr�prio que o leva a enfocar a realidade nacional como atrasada em rela��o � modernidade central que ter�amos de alcan�ar atrav�s da supera��o das estruturas tradicionais herdadas da coloniza��o (Lynch, 2016). Nesse sentido, “nada do que se produzisse intelectualmente na periferia teria valor ‘universal’ ou ‘original’; na melhor das hip�teses, ela teria validade restrita aos limites da periferia” (Lynch, 2019, p.16).

O nacionalismo metodol�gico � uma caracter�stica central dessa vertente do PPB que percebe o fen�meno autocr�tico no Brasil como algo singular do pa�s e a democracia como t�los de desenvolvimento, cuja vig�ncia depende da supera��o de nosso atraso pol�tico. Esse atraso seria reproduzido pela for�a de heran�as institucionais (como patrimonialismo e neopatrimonialismo) e culturais (como personalismo e populismo) pr�prias do pa�s.

O nacionalismo metodol�gico tamb�m est� presente na an�lise pol�tica comparada sobre regimes pol�ticos, que trata o Estado nacional como unidade anal�tica exclusiva, desconsiderando outros n�veis sist�micos da modernidade pol�tica (Ahlers & Stichweh, 2019). Na teoria social, a cr�tica ao nacionalismo metodol�gico n�o exige desconsiderar o Estado nacional como categoria anal�tica e hist�rica e constitui um dos avan�os importantes das �ltimas d�cadas (Beck, 2005; Luhmann, 1997; Quijano & Wallerstein, 1992; Habermas, 2001). No entanto, como observa Chernilo (2011), a hist�ria das ci�ncias sociais n�o � inteiramente presa �s premissas do nacionalismo metodol�gico. Muito antes dos esfor�os das �ltimas d�cadas, no per�odo dos “pais fundadores” da teoria social e pol�tica, j� existia a preocupa��o de explicar as caracter�sticas sociais e pol�ticas dos Estados-nacionais a partir de desenvolvimentos estruturais e culturais que extrapolam suas fronteiras e trajet�rias pr�prias (Chernilo, 2011, p. 109).

De todo modo, ainda h� um contato insuficiente entre teoria social e teoria pol�tica, especialmente na teoria democr�tica. Na teoria social sist�mica, Anna Ahlers e Rudolf Stichweh (2019) sugerem, recentemente, um caminho promissor de di�logo entre teoria social e teoria pol�tica, cujo foco � empreender an�lises sobre a rela��o entre democracia e autocracia para al�m do Estado nacional. Em um esfor�o te�rico inicial, que dialoga com a an�lise pol�tica comparada, especialmente com a discuss�o das prefer�ncias valorativas t�picas de regimes autocr�ticos e democr�ticos, os autores prop�em um quadro anal�tico multin�vel, no qual os n�veis subnacionais e a pol�tica da sociedade global figuram ao lado do Estado nacional enquanto unidades anal�ticas. Nesse quadro, a diferen�a entre democracia e autocracia n�o � correlacionada unicamente aos pa�ses, mas tratada como uma “bipolaridade pol�tica” moderna, que pode ser encontrada nos distintos n�veis (subnacional, nacional, global), em que o sistema pol�tico se diferencia internamente. Embora a classifica��o dos pa�ses como democr�ticos ou autocr�ticos seja v�lida e importante, ela deve ser complementada pela observa��o das descontinuidades de cada n�vel e nas rela��es entre eles.

Explicar o avan�o e a resili�ncia de fen�menos e regimes autocr�ticos com base em singularidades nacionais percebidas como alheias � modernidade pol�tica � algo descartado neste modelo. Para Ahlers e Stichweh (2019), as autocracias contempor�neas n�o se explicam por qualquer tipo de resist�ncia pr�-moderna ou tradicional � modernidade pol�tica, mas sim pelo car�ter especificamente moderno dessas autocracias. A modernidade pol�tica n�o pode ser reduzida � democracia. Formas autocr�ticas de poder se apropriam dos princ�pios do sistema pol�tico moderno, especialmente a norma da inclus�o.

Essa proposta de uma an�lise sist�mica multin�vel da pol�tica moderna parece adequada para orientar uma cr�tica da tradi��o do PPB identificada com a premissa de uma singularidade pol�tica brasileira como explica��o para os fen�menos autorit�rios observados no pa�s. Com ela, podemos n�o apenas desconstruir a premissa da singularidade nacional enquanto premissa explicativa, mas tamb�m oferecer explica��es alternativas para a rela��o entre democracia e autoritarismo no Brasil.

Para desenvolver o argumento, dividimos o artigo em duas se��es. Na primeira, fazemos uma apresenta��o seletiva e uma cr�tica da tradi��o do PPB centrada na ideia de que o Brasil � caracterizado por uma singularidade autorit�ria que reproduz o car�ter tradicional de nossa forma��o sociopol�tica. Conceitos como patrimonialismo e neopatrimonialismo ocupam lugar de destaque nessa tradi��o, atualizada recentemente em an�lises que buscam compreender os riscos � democracia no Brasil com base na premissa da singularidade pol�tica brasileira (cf. Schwarcz, 2019). Na segunda se��o, apresentamos uma alternativa a essa tradi��o, mobilizando a teoria social sist�mica multin�vel de matriz luhmanniana em seus desenvolvimentos recentes. Nesta alternativa, articulamos a an�lise sociol�gica da constitui��o do sistema funcional da pol�tica com sua diferencia��o interna em distintos n�veis, nos quais e entre os quais a oscila��o entre democracia e autocracia � percebida como uma “bipolaridade” da modernidade pol�tica contempor�nea, que serve de refer�ncia te�rica mais ampla para explicar os casos nacionais. Para construir esta alternativa, � necess�rio um contato produtivo entre teoria social e teoria pol�tica.

O autoritarismo brasileiro no PPB

Nesta se��o, apresentamos de maneira resumida os argumentos de Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman, pois s�o os intelectuais que mais se destacaram na tentativa de explicar as ra�zes do “autoritarismo brasileiro”. Precisamente, os autores procuram responder ao seguinte questionamento: por que constitu�mos uma ordem essencialmente diferente das democracias ocidentais? A resposta para tal hiato civilizacional seria dada pela heran�a ib�rica, respons�vel por perpetuar uma cultura privatista, autorit�ria, desigual e excludente. Ter�amos constitu�do, portanto, uma sociedade baseada no princ�pio da singularidade (Tavolaro, 2014).

As interpreta��es dos autores est�o baseadas em tr�s elementos que s�o decisivos para compreendermos o alcance e os limites presentes nelas. As leituras s�o estruturadas com base no nacionalismo metodol�gico, na idealiza��o da modernidade pol�tica e na tese da singularidade pol�tica brasileira. Dessa forma, procuramos contribuir para romper com as narrativas que interpretam o Brasil como essencialmente inferior e atrasado (Lynch, 2019, p.15), presentes nos autores aqui analisados.

A singularidade pol�tica brasileira em Tavares Bastos

Tavares Bastos deu in�cio �s leituras institucionalistas que explicam o autoritarismo brasileiro como resultante da heran�a ib�rica, ou seja, da transplanta��o do Estado portugu�s para o Brasil. Ter�amos recebido uma cultura privatista, autorit�ria, que seria decisiva para compreender o “atraso” brasileiro frente aos Estados Unidos, que eram, para o autor, o grande modelo a ser alcan�ado pelo Brasil, pois a modernidade pol�tica existiria plenamente no pa�s do Norte do continente. A heran�a recebida de Portugal teria feito com que constitu�ssemos, portanto, uma singular forma de autoritarismo. Essa heran�a seria corroborada no Brasil pelo sistema centralizador, respons�vel por nossos v�cios pol�ticos e administrativos. Por seu car�ter fortemente concentrado, ele moveria mecanicamente a na��o, promovendo, assim, o estado social de in�rcia, o ceticismo e a profunda corrup��o (Tavares Bastos, 1976).

Era, portanto, necess�rio retirar a tradi��o ib�rica de dentro do Estado, sobretudo modificando sua forma, removendo o Conselho de Estado, o Senado Vital�cio e o Poder Moderador. Outro grande problema atacado por Tavares Bastos (1976) se refere ao Judici�rio, que, no Brasil, teria sua a��o anulada pela configura��o centralizada e desp�tica que nos conformaria. Esse quadro extremamente adverso ocasionou, como grande consequ�ncia, a aus�ncia de autonomia, considerada pelo publicista alagoano como o v�cio org�nico dos brasileiros. De acordo com Tavares Bastos (1976), a falta de autonomia gerou um quadro de corrup��o moral, respons�vel pela nulidade de nosso sistema representativo, resultando no dom�nio inconteste do absolutismo.

Apesar da identifica��o de um v�cio de origem respons�vel pelo “atraso”, a realidade brasileira era perfeitamente mut�vel para Tavares Bastos, pois havia no pensamento do publicista alagoano uma proposta de a��o p�blica reformadora, com o objetivo de instituir o liberalismo federalista (Le�o R�go, 2002, p.17). Em virtude disso, Tavares Bastos prop�e a��es em torno da moderniza��o econ�mica e da descentraliza��o administrativa para a constitui��o de uma monarquia federativa e democr�tica (Moraes Filho, 2001. Em rela��o � moderniza��o, Tavares Bastos prop�e algumas medidas consideradas como centrais para realizar tal prop�sito. A primeira delas � a imigra��o europeia. Tavares Bastos (1975) argumenta que esse processo seria fundamental para a mudan�a de h�bitos dos brasileiros, retirando de nossa realidade o quadro de imoralidade ent�o dominante. O grande motor do desenvolvimento seria n�o a sociedade industrial, mas a agr�cola. Em virtude disso, o autor afirma que o imigrante seria dono da pequena propriedade, o que ocasionaria a modifica��o da face pol�tica no Brasil.

Outras a��es fundamentais se refeririam � liberdade da navega��o de cabotagem, acabando com o monop�lio do governo, e a livre navega��o no Rio Amazonas. Essas medidas teriam a fun��o de redimir as popula��es pobres ribeirinhas e proporcionar a comunica��o do pa�s com os Estados Unidos e as pot�ncias europeias (Tavares Bastos, 1975).

Havia no publicista Tavares Bastos uma clara jun��o entre as dimens�es anal�tica e normativa, com a proposi��o de um programa pol�tico global de rearticula��o institucional. Como veremos a seguir, a interpreta��o de Faoro possui diferen�as em termos anal�ticos e normativos, assim como a leitura realizada por Simon Schwartzman sobre o autoritarismo brasileiro.

O diagn�stico de Tavares Bastos � estruturado pelo nacionalismo metodol�gico, pois o autoritarismo seria um dilema especificamente brasileiro. O publicista alagoano tamb�m idealiza a modernidade pol�tica que existiria nos Estados Unidos, pois ela representaria a democracia, o esp�rito p�blico, a separa��o entre p�blico e privado, a racionaliza��o e a seculariza��o. Para o autor, portanto, o autoritarismo seria um dilema pr�-moderno e inexistente em pa�ses modernos e centrais.

A singularidade pol�tica brasileira em Raymundo Faoro

Se Tavares Bastos defende que o grande obst�culo para a institui��o da modernidade pol�tica seria o Estado absolutista, Raymundo Faoro, por sua vez, defende que o elemento explicativo para o autoritarismo brasileiro seria, especificamente, o estamento burocr�tico, que se havia reproduzido secularmente durante seis s�culos atrav�s de um controle privatista sobre o Estado. Para Faoro, assim como para o seu antecessor do s�culo XIX, o autoritarismo estaria circunscrito � dimens�o institucional. Faoro volta � hist�ria portuguesa como forma de defender, assim como fizera Tavares Bastos, que o autoritarismo brasileiro seria resultante de um end�mico v�cio de origem, iniciado pelo Estado portugu�s no s�culo XIV. De forma teoricamente mais fundamentada que seu antecessor, Faoro defende que essa volta ao passado ib�rico teria como objetivo demonstrar que o conceito de patrimonialismo seria chave para a compreens�o da hist�ria brasileira (Faoro, 1993). A partir da hist�ria portuguesa, seria poss�vel compreender as ra�zes do autoritarismo brasileiro, pois, no s�culo XV, surge em Portugal uma camada social amorfa que ser�, a partir de ent�o, o grande fator explicativo de todos os nossos males, o estamento burocr�tico.

Ap�s fazer a reconstitui��o da forma��o do Estado portugu�s, Faoro constitui a dissocia��o fundamental que selaria o destino brasileiro. De acordo com o autor, a sociedade capitalista foi gerada da decadente sociedade feudal. Houve uma evolu��o da economia natural para uma pautada pelas manufaturas, respons�vel pelo movimento de acumula��o de capital (Faoro, 2008). O feudalismo, portanto, seria uma fase necess�ria para a constitui��o do capitalismo.

Portugal, por sua vez, n�o conheceu em sua hist�ria o feudalismo. Por n�o passar pela etapa feudal, necess�ria para a constitui��o da modernidade representada pelo capitalismo industrial, Portugal (e tamb�m o Brasil) constituiu-se como um desvio, respons�vel por fazer com que o elemento tradicional tivesse um car�ter absolutizado naquele pa�s. O singular processo de forma��o de Portugal gerou uma forma pr�pria de capitalismo, caracterizada por Faoro como politicamente orientado, ou pr�-capitalismo, que tem a presen�a e o dom�nio inconteste do estamento sobre ele. Esta seria a �nica forma de capitalismo que conhecemos para al�m das teorias e dos livros (Faoro, 1993). O estamento burocr�tico foi respons�vel, apesar das mudan�as ocorridas na realidade, por deixar o pa�s sob o dom�nio absoluto do elemento tradicional.

O Estado patrimonial, estruturado estamentalmente, diversamente das sociedades organizadas contratualmente pelas classes sociais, possui um dom�nio de cima para baixo, governando, dirigindo, orientando, “determinando, n�o apenas formalmente, o curso da economia e as express�es da sociedade, sociedade tolhida, impedida, amorda�ada” (Faoro, 2008, p. 62). Essa situa��o de completa submiss�o da sociedade frente ao Estado se dava em virtude da organiza��o deste acima das classes, fechada sobre si mesma, n�o deixando espa�os para qualquer tipo de express�o pol�tica al�m do pr�prio estamento.

Com o processo de coloniza��o, recebemos o capitalismo politicamente orientado e o estamento burocr�tico, cujo dom�nio impedia a constitui��o do leg�timo capitalismo industrial. Com a transmigra��o da corte imperial para o pa�s em 1808, houve a a��o direta em solo americano do rei absoluto que “realiza, preside, tutela a na��o em emerg�ncia, podando, repelindo e absorvendo o impulso liberal, associado � fazenda e �s unidades locais de poder” (Faoro, 2008, p.285). Com a volta de Dom Jo�o VI a Portugal, retornam com ele cerca de tr�s mil graduados servidores da monarquia, representantes da nobreza funcion�ria do Imp�rio. O regresso foi respons�vel por debilitar o estamento burocr�tico, visto que seus principais representantes regressaram a Portugal com Dom Jo�o (Faoro, 2008).

Com o processo de independ�ncia, o Brasil herdou o sistema pol�tico de Portugal, rearticulando o estamento burocr�tico e a tradi��o estamental patrimonialista que caracterizou a hist�ria portuguesa e brasileira. Tal organiza��o fora respons�vel por manter uma realidade apartada da democracia, al�m de o liberalismo, fruto da ideologia, estar fora da soberania popular (Faoro, 2008). Assim como Tavares Bastos, Faoro defende que o Estado pautou seu dom�nio atrav�s de institui��es como o Senado vital�cio, os partidos, o Conselho de Estado e a pol�tica centralizada (Faoro, 2008, p. 378).

� dentro desse quadro que se pode compreender, tamb�m, por que n�o conseguimos superar o dom�nio autorit�rio do estamento burocr�tico, que controla o pa�s a partir de uma l�gica pr�pria. Isso faz com que a democracia, entre n�s, tenha sempre um car�ter superficial, na medida em que, para haver uma democracia efetiva, seria necess�ria a constitui��o de uma plena economia de mercado, ponto tamb�m defendido por Tavares Bastos. A economia racional teria como caracter�sticas a igualdade jur�dica e a defesa contra o arb�trio.

Ao contr�rio de Tavares Bastos, n�o existe um programa pol�tico de rearticula��o institucional com o objetivo de superar o dom�nio autorit�rio sobre a na��o incapaz (Ribeiro, 2010; Ribeiro e Mesquita, 2019). Consequentemente, n�o havia, em Faoro, a defesa da monarquia e do federalismo como a presente no publicista alagoano, tampouco a defesa da economia agr�cola como caminho para modernizar o Brasil. Um ponto de similitude entre os autores � a caracteriza��o da na��o como incapaz de enfrentar o dom�nio do Estado absolutista e do estamento burocr�tico, respectivamente. Ao mesmo tempo, Faoro tamb�m constr�i sua interpreta��o do autoritarismo brasileiro atrav�s da contraposi��o com a idealiza��o da modernidade pol�tica, visto que, nos pa�ses centrais, haveria um efetivo sistema de representa��o, uma separa��o estrita entre p�blico e privado, seculariza��o e racionaliza��o. A interpreta��o faoriana, portanto, reproduz os elementos presentes na leitura de Tavares Bastos, quais sejam: nacionalismo metodol�gico, idealiza��o da modernidade pol�tica e a tese da singularidade pol�tica brasileira.

A singularidade pol�tica brasileira em Simon Schwartzman

Assim como Tavares Bastos e Faoro, Simon Schwartzman tamb�m possui como objetivo central apresentar as bases do autoritarismo brasileiro. Para tanto, Schwartzman segue os autores supracitados, defendendo que o autoritarismo brasileiro � resultante da heran�a sociocultural deixada pela coloniza��o ib�rica. De forma distinta dos autores supracitados, Schwartzman procura apresentar uma teoriza��o sobre o “moderno” autoritarismo brasileiro, pois defende que o Brasil nunca foi tradicional (Brito, 2015, p.147). Este ponto � um elemento importante de inflex�o em rela��o aos seus antecessores, que apresentaram uma narrativa atrav�s da qual o Brasil seria um pa�s absolutamente tradicional.

Schwartzman (1988) afirma que Bases do autoritarismo brasileiro confirmaria a tese de que o entendimento da realidade brasileira seria resultante das contradi��es entre S�o Paulo, centro econ�mico e mais organizado da sociedade civil, e o centro do poder pol�tico, fixado no eixo Rio de Janeiro-Bras�lia (Schawartzman, 1988, p.9).

Dentro dessa rela��o dicot�mica existente no pa�s, haveria a constitui��o de uma sociedade civil incapaz de conseguir, no �mbito pol�tico, contrapor-se de forma efetiva ao peso excessivo do poder central. Isso porque o Brasil se teria caracterizado, atrav�s dos s�culos, pelo dom�nio de uma burocracia estatal pesada, todo-poderosa e ineficiente frente a uma sociedade acovardada (Schwartzman, 1988).

Assim como Faoro, Schwartzmam constr�i sua interpreta��o a partir da diferen�a entre feudalismo e patrimonialismo. Atrav�s dela, o soci�logo afirma que os Estados modernos nascidos � margem da revolu��o burguesa surgida do feudalismo seriam caracterizados como neopatrimoniais. Ao contr�rio da ordem moderna racional-legal, ter�amos uma modernidade negativa, marcada pelo dom�nio do neopatrimonialismo.

De forma diferente de seus antecessores, Schwartzman (1988) constitui sua interpreta��o a partir da an�lise dividida em dois n�veis: o estrutural e o pol�tico. A abordagem estrutural seria caracterizada pela exist�ncia de uma rela��o essencial entre o desenvolvimento hist�rico surgido da Europa feudal, respons�vel por conduzir �s sociedades capitalistas modernas, ocidentais e desenvolvidas, e outra que ligaria as sociedades patrimonialistas tradicionais �s sociedades subdesenvolvidas contempor�neas (Schwartzman, 1988).

O n�vel pol�tico seria caracterizado pelo regime de coopta��o. A jun��o entre os planos estrutural e pol�tico legaria para as rela��es pol�ticas no Brasil o “patrimonialismo pol�tico”. Para tanto, Schwartzman postula uma perspectiva pautada em clivagens regionais. A an�lise regional daria conta das descontinuidades espaciais, tornando vis�veis os fen�menos hist�ricos que ficariam escondidos sob a capa da sociedade n�o indiferenciada, globalizada. As regi�es foram divididas em Nordeste e Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e S�o Paulo.

Nordeste, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro tiveram como caracter�stica principal o dom�nio do elemento tradicional sobre o moderno. S�o Paulo, por sua vez, seria caracterizada pelo dom�nio do elemento moderno. Dessa forma, S�o Paulo funciona, no argumento do soci�logo, como meio capaz de corrigir o autoritarismo brasileiro, pois as rela��es se constituiriam de maneira contratual e monet�ria, al�m de possuir formas embrion�rias de representa��o pol�tica.

Contudo, a partir da derrota de S�o Paulo e do seu sistema de representa��o, houve a hegemonia do sistema de coopta��o e a condu��o da moderniza��o brasileira atrav�s de uma base neopatrimonial do dom�nio pol�tico. Em virtude desse dom�nio, seria necess�ria uma ruptura com a tradi��o ib�rica coadunada no seio do Estado, por meio de uma cruzada antiburocr�tica para que este pudesse montar uma estrutura �gil, efetivamente moderna e capaz de fazer a transi��o de uma realidade subdesenvolvida e atrasada para uma situa��o pautada pelo desenvolvimento e pela justi�a (Schwartzman, 1988). Esse seria o caminho para o Brasil instituir uma aut�ntica modernidade pol�tica, que, por sua vez, existiria nos pa�ses centrais e democr�ticos.

Apesar da constru��o de uma narrativa “moderna” para o autoritarismo brasileiro, a interpreta��o de Schwartzman1 segue as leituras de seus antecessores, porque tamb�m � pautada pelo nacionalismo metodol�gico, pela idealiza��o da modernidade pol�tica e pela tese da singularidade pol�tica brasileira. Existe uma perspectiva teleol�gica da democracia, visto que o autoritarismo � interpretado como um fen�meno essencialmente distinto das democracias ocidentais.

A partir da exposi��o dos argumentos de Tavares Bastos, Faoro e Schwartzman, apresentaremos uma leitura alternativa do autoritarismo, que rompe com o nacionalismo metodol�gico, a idealiza��o da modernidade pol�tica e a tese da singularidade pol�tica brasileira. Nesse sentido, cabe notar como, apesar de suas diferen�as e nuances, os argumentos dos tr�s autores analisados acima pressup�em a ideia de “diferencia��o das esferas sociais” como crit�rio para identificar avan�o e atraso societ�rio e pol�tico como caracter�sticas de “sociedades nacionais”. A aus�ncia ou incompletude do processo de diferencia��o entre as esferas p�blica e privada � o quadro de refer�ncia da ideia de que a coopta��o pol�tica e outros obst�culos � ordem racional-legal e � democracia representativa constituem tra�os singulares do atraso pol�tico brasileiro. Como notou Tavolaro (2014), o diagn�stico do “d�ficit de diferencia��o das esferas sociais” assume duas importantes varia��es, igualmente presentes em diferentes linhagens do pensamento social e pol�tico brasileiro (Tavolaro, 2014). A primeira � a concep��o de que temos um “d�ficit de seculariza��o”, ou seja, de que concep��es m�gico-religiosas continuam a se fazer presentes em amplos segmentos da popula��o brasileira, impedindo uma efetiva separa��o entre a religi�o e as demais esferas da sociedade, como a pol�tica. A segunda varia��o � a concep��o de que, entre n�s, haveria uma forma singular de n�o separar as esferas p�blica e privada.

A recep��o da teoria da diferencia��o funcional de Niklas Luhmann tamb�m tem encontrado dificuldades para superar essa dicotomia caricatural entre uma modernidade pol�tica idealizada nos pa�ses centrais, marcada pela completude da diferencia��o entre as esferas e pela plena constitucionaliza��o e democratiza��o do poder, e uma periferia de regi�es e pa�ses definidos pela aus�ncia ou pela incompletude dessas caracter�sticas (Dutra, 2016). O pr�prio Luhmann nunca logrou se distanciar suficientemente da associa��o entre modernidade pol�tica, democracia e diferencia��o funcional nos pa�ses do Atl�ntico Norte. Sua concep��o de diferencia��o funcional se descolou, no final de sua vida e obra, apenas parcialmente de um discurso hegem�nico e euroc�ntrico sobre a modernidade em geral e a pol�tica em particular. Sua teoria da modernidade social e pol�tica ainda precisa ser corrigida em seu vi�s euroc�ntrico.

Para superar a tese da singularidade pol�tica brasileira autorit�ria, precisamos de um di�logo entre teoria social e teoria pol�tica capaz de superar a concep��o euroc�ntrica da diferencia��o entre as esferas sociais (Dutra, 2020) e a associa��o reducionista entre modernidade pol�tica e as democracias liberais do Atl�ntico Norte. Precisamos de uma teoria da diferencia��o da sociedade que seja capaz de considerar fen�menos autorit�rios observ�veis no Brasil como parte da variedade das formas estruturais e institucionais da modernidade pol�tica, sem que suas contradi��es e incompletudes sejam atribu�das a trajet�rias nacionais singulares. Na pr�xima se��o, buscaremos delinear os tra�os gerais de uma teoria da diferencia��o da esfera pol�tica capaz de atender a esses requisitos, buscando construir uma sociologia pol�tica do autoritarismo que supere o nacionalismo metodol�gico, a idealiza��o da modernidade pol�tica nos pa�ses centrais e a tese da singularidade pol�tica brasileira e, com isso, ofere�a a possibilidade de compreender os problemas de autoritarismo no Brasil como parte da modernidade pol�tica e suas variantes.

Teoria pol�tica para al�m do nacionalismo metodol�gico

H� uma teleologia impl�cita do desenvolvimento pol�tico (Ahlers & Stichweh, 2019) que classifica os pa�ses de acordo com sua trajet�ria de regimes mais autocr�ticos para regimes mais democr�ticos. Desse modo, problemas de autoritarismo podem ser atribu�dos e identificados com pa�ses espec�ficos, considerados atrasados em termos de desenvolvimento pol�tico, deixando de ser observados como problemas modernos. A possibilidade de formas especificamente modernas da autocracia � desconsiderada.

A teleologia pol�tica reproduzida na idealiza��o dos pa�ses centrais e na atribui��o de uma singularidade pr�-moderna ou uma modernidade negativa a pa�ses perif�ricos como o Brasil est� vinculada de modo umbilical ao nacionalismo metodol�gico, pois a ideia de um ponto de chegada, que atua como crit�rio de compara��o para definir est�gios relativos de “atraso” e “modernidade”, tem no imagin�rio sociol�gico das “sociedades nacionais” uma refer�ncia obrigat�ria. Precisamos de uma abordagem que recuse a completude da diferencia��o funcional e a associa��o reducionista entre modernidade pol�tica e democracia como tra�os de pa�ses espec�ficos (nacionalismo metodol�gico), idealizados como refer�ncia comparativa em uma vis�o teleol�gica da evolu��o sociocultural.

Luhmann n�o se afasta completamente da associa��o entre modernidade pol�tica e as experi�ncias sociopol�ticas da Europa e da Am�rica do Norte, tratando democracia e diferencia��o funcional da pol�tica como quase sin�nimos. Essa associa��o

conduz Luhmann a n�o fazer nenhuma considera��o substancial sobre regimes pol�ticos diferentes da democracia liberal representativa, que serve de modelo para observar o sistema pol�tico da sociedade global. Este estreitamento da diversidade de regimes pol�ticos a n�vel mundial cobra o pre�o da ignor�ncia sobre como realmente funciona a pol�tica nas diferentes regi�es do globo (Saavedra, 2020, p. 109)

Desse modo, para Luhmann, a configura��o pol�tica propriamente moderna decorre de evolu��o da democracia liberal representativa para a constitui��o dos Estados de bem-estar social que definem a paisagem pol�tica dos pa�ses do Atl�ntico Norte no p�s-Segunda Guerra Mundial. Na demarca��o dos eventos hist�ricos que concretizam o desenvolvimento pol�tico moderno, o constitucionalismo liberal, que normaliza e formaliza a rivalidade em torno das posi��es de comando pol�tico atrav�s de disjun��o bin�ria entre governo e oposi��o (Luhmann, 1990, pp. 47-48), � tratado como caminho sem alternativa para o desenvolvimento dos Estados de bem-estar social, com sua din�mica de amplifica��o rec�proca de inclus�o pol�tica e social por meio dos direitos fundamentais de cidadania (Luhmann, 1981b, p. 27; Neves, 2006, p. 256) . O problema dessa concep��o � que ela tende a reduzir a fun��o de mediar a promover inclus�o pol�tica e social ao leque restrito dos modelos de Estado de bem-estar social do Atl�ntico Norte, desconsiderando n�o apenas formas pol�ticas e estatais alternativas, como solu��es informais funcionalmente equivalentes (como redes sociais dos mais diferentes tipos) que costumam florescer em regi�es em que o Estado n�o consegue cumprir esta fun��o (Cadenas & Mascare�o, 2020, p. 90).

Para observar o funcionamento de regimes pol�ticos em sua diversidade global, � preciso desenvolver a teoria dos sistemas al�m do que Luhmann p�de realizar. O estreitamento da vis�o evolutiva de Luhmann sobre as variedades da modernidade pol�tica �, em parte, herdeiro de certa “teleologia do desenvolvimento” encontrada no esfor�o sist�mico parsoniano, que concebe a diferencia��o funcional dedutivamente e teleologicamente como a especializa��o de fun��es societais pr�-estabelecidas (as famosas quatro fun��es do esquema AGIL) (Parsons, 1971). No entanto, em sua �ltima fase de produ��o, Luhmann deixou elementos que permitem superar claramente a vis�o dedutiva e teleol�gica da diferencia��o funcional, desenvolvidos, por exemplo, por v�rios autores brasileiros, mais recentemente, especialmente nas cr�ticas � no��o de “modernidade perif�rica” (Bachur, 2013; Dutra, 2020).

Desde o come�o dos anos 1990, fica claro que Luhmann n�o parte de um modelo de diferencia��o funcional no qual os sistemas funcionais coevoluem de forma harmoniosa, como se a autonomiza��o da economia, da pol�tica, do direito, do ensino, da ci�ncia etc. “fosse capaz de preencher fun��es de sustenta��o rec�proca” (Luhmann, 1995, p. 24). Ele parte, na verdade, da premissa oposta: “a elevada especializa��o e autonomiza��o dos sistemas funcionais ir� conduzir a preju�zos rec�procos” (Luhmann, 1995, p. 25). A possibilidade de desdobrar esta vis�o antiteleol�gica da diferencia��o funcional demonstra que a sociologia de Luhmann continua sendo uma op��o interessante para romper simult�nea e explicitamente com a vis�o teleol�gica da evolu��o sociocultural e com o nacionalismo metodol�gico (Cadenas & Mascare�o, 2020; Dutra, 2020)2. Como recomenda Chernilo (2011), o obst�culo epistemol�gico mais importante do nacionalismo metodol�gico � o que ele chama de “argumento explicativo”: “a ascens�o e as caracter�sticas principais do Estado-na��o s�o usadas para explicar a ascens�o e as caracter�sticas principais da pr�pria modernidade. A modernidade seria a soma de trajet�rias nacionais” (Chernilo, 2011, p. 104). Neste artigo, consideramos que a ideia de um autoritarismo singularmente brasileiro, como apresentamos na primeira se��o, decorre de um “argumento explicativo” desta natureza, que coloca a trajet�ria nacional como vari�vel independente para explicar o “atraso” pol�tico de pa�ses autorit�rios em compara��o idealizada com as trajet�rias de democratiza��o dos pa�ses “avan�ados”.

O sistema funcional da pol�tica e suas diferencia��es internas

A diferencia��o do sistema pol�tico est� baseada na constitui��o de um meio de comunica��o simbolicamente generalizado, o poder, e de pap�is sociais complementares definidos pelo acesso e uso do poder: os pap�is de governante e governado (Schneider, 2010, p. 216). Em sociedades estamentais, governados e governantes n�o percebiam a rela��o entre eles como uma hierarquia de poder, mas sim como uma hierarquia ontol�gica natural entre seres superiores e seres inferiores. A ordem pol�tica, assim como a ordem religiosa, era uma deriva��o da ordem estamental mais ampla. Com a forma��o de um meio de comunica��o simbolicamente generalizado e espec�fico, a pol�tica passa a contar com um recurso propriamente pol�tico para constituir assimetrias de mando baseadas na capacidade de san��o negativa. A amea�a do uso da viol�ncia f�sica � a principal forma de san��o negativa que assegura a probabilidade de aceita��o das a��es pol�ticas de quem est� em posi��o superior de poder. Dessa forma, o monop�lio estatal do emprego da viol�ncia f�sica � um pr�-requisito para a diferencia��o da pol�tica como subsistema especializado em produzir decis�es coletivamente vinculantes.

A diferencia��o do sistema pol�tico foi historicamente marcada pela consolida��o da “raz�o de estado” (Staatsraison) em substitui��o � moralidade religiosa no esfor�o de monopolizar e centralizar o uso leg�timo da viol�ncia f�sica em um determinado territ�rio. Em Maquiavel (1996 [1532]), esse problema fundamental aparece formulado como paradoxo moral do “pr�ncipe” que, para alcan�ar o fim moralmente justificado de assegurar a “ordem, a paz e a justi�a”, precisa agir de forma moralmente reprov�vel, assassinando ou deportando potenciais usurpadores do poder. Uma vez assegurada a diferen�a entre governantes e governados por meio da concentra��o do poder e da viol�ncia, o problema deixa de ser essa necessidade de afirmar a autonomia das exig�ncias funcionais da atividade pol�tica diante das exig�ncias da moral religiosa. No lugar do problema da “raz�o de estado”, entra o problema do controle do uso arbitr�rio do poder. O exerc�cio do poder, uma vez que n�o pode mais estar baseado no “cheque em branco” constitu�do pela f�rmula da “raz�o de estado”, ter�, ent�o, de ser legitimado pela observa��o dos direitos do cidad�o e do sistema de “freios e contrapesos”/divis�o de poderes. Trata-se, aqui, da passagem da monarquia absolutista para o Estado constitucional.

� precisamente esse processo de “constitucionaliza��o do poder” (Neves, 2008, p. 481) que resulta na forma��o de direitos pol�ticos igualit�rios como express�o da no��o de soberania popular, concebida como fonte �ltima de legitima��o do poder. Na medida em que o acesso e o exerc�cio do poder s�o regulados por procedimentos jur�dicos destinados a garantir tanto a express�o da vontade popular como o uso constitucional do poder, espera-se neutralizar a influ�ncia direta do poder social sobre o poder pol�tico. Na teoria de Luhmann, a constitui��o se torna o acoplamento estrutural entre direito e pol�tica, capaz de realizar essa neutraliza��o do poder social, filtrando, especificando e rotinizando as possibilidades de irrita��o m�tua entre os dois subsistemas. O direito irrita a pol�tica na medida em que o c�digo do direito se torna relevante para o poder, podendo-se distinguir entre poder l�cito ou il�cito e constitucional ou n�o constitucional (Neves, 2006, p. 252). As realiza��es e problemas dessa “constitucionaliza��o do poder” constituem o foco tem�tico da sem�ntica te�rica da pol�tica (“teorias de reflex�o” no jarg�o de Luhmann) que vai se ocupar primariamente dos problemas relativos � (insuficiente) universaliza��o dos direitos do cidad�o e ao controle do uso arbitr�rio do poder (a divis�o de poderes e os “freios e contrapesos”). Como sintetiza Luhmann (1997, p. 968): “a teoria pol�tica torna-se teoria do Estado constitucional”.

Mas, ao se tornar teoria do Estado constitucional, a teoria pol�tica perde de vista a dimens�o n�o constitucional do poder. Embora Luhmann n�o tenha se distanciado suficientemente da associa��o entre modernidade pol�tica e as democracias liberais do Atl�ntico Norte, ele consegue se afastar da ideia de uma pol�tica plenamente controlada por procedimentos democr�ticos e constitucionais, com conceitos que se mostram produtivos no desafio de compreender a variedade do fen�meno pol�tico em diferentes regi�es da sociedade mundial. Esses conceitos podem ser utilizados para conduzir a teoria a romper com a idealiza��o da pol�tica democr�tica nos pa�ses de modernidade central, com o nacionalismo metodol�gico e com a teleologia na observa��o da diferen�a entre democracia e autocracia: referimo-nos, especialmente, aos modos de diferencia��o interna do sistema pol�tico em pol�tica, administra��o e p�blico (Luhmann, 2002, p. 253), associados � diferen�a centro/periferia e � constitui��o de dois circuitos de poder paralelos, distintos e eventualmente contradit�rios: o circuito formal e o circuito informal.

Na diferencia��o interna do sistema, a pol�ticaengloba os processos, estruturas e atores dos poderes executivo e legislativo, mas tamb�m os partidos pol�ticos envolvidos na elabora��o de decis�es coletivamente vinculantes. N�o se trata de uma atividade que produz, isoladamente, decis�es coletivamente vinculantes, mas sim de comunica��es que servem para preparar essas decis�es, testando e avaliando suas chances de sucesso (Luhmann, 2002, p. 254). A administra��o inclui todo o complexo de organiza��es respons�veis por implementar leis, normas e regulamentos, oferecer servi�os p�blicos e aplicar todo tipo de pol�tica p�blica ou programa formulados por decis�es pol�ticas. Por fim, como resultado do acoplamento entre sistema pol�tico e sistema de comunica��o de massas, surge uma esfera marcada pela auto-observa��o do sistema pol�tico: trata-se do p�blico enquanto conjunto formado por discuss�es que informam a opini�o p�blica sobre temas politicamente relevantes e por pap�is que os cidad�os podem assumir no sistema pol�tico, como eleitor, membro de organiza��o de interesse e movimentos sociais, contribuinte, benefici�rio de programas sociais etc. Na forma de opini�o p�blica, o p�blico filtra os temas que interessam � produ��o de decis�es coletivamente vinculantes.

A diferencia��o entre pol�tica, administra��o e p�blico est� associada � diferen�a interna centro/periferia (Luhmann, 2002, p. 245). Segundo essa diferen�a, o centro do sistema engloba os poderes executivo e legislativo, a administra��o p�blica e os partidos pol�ticos, enquanto a periferia � composta pela opini�o p�blica, os movimentos sociais, as organiza��es de interesse, organiza��es n�o governamentais etc. Com isso, a dicotomia ontol�gica entre Estado e sociedade civil (Saavedra, 2020) � dissolvida e trabalhada como uma distin��o produzida e controlada pelo pr�prio sistema pol�tico. Nesse sentido, Luhmann n�o reproduz, no plano da sociologia, a no��o de Estado enquanto representa��o simb�lica do sistema pol�tico em sua totalidade, permitindo conceber as comunica��es pol�ticas da “periferia” e do “p�blico” (que n�o s�o “estatais”) como constitutivas do sistema de prepara��o e produ��o de decis�es coletivamente vinculantes. Isso permite avaliar a import�ncia do Estado em uma concep��o n�o estadoc�ntrica da pol�tica, multin�vel e capaz de romper com o nacionalismo metodol�gico.

A sociologia pol�tica de Luhmann engloba n�o apenas os fluxos de poder do tipo top-down (de cima para baixo) e do tipo bottom-up (de baixo para cima), como considera a possibilidade de coexist�ncia contradit�ria e n�o sincronizada de uma variedade bem maior de fluxos e arenas de poder. Assim:

� poss�vel pensar a decis�o pol�tica e o poder como fluxos comunicativos [...] que circulam em seu processo de elabora��o de forma horizontal, vertical, central, perif�rica, espiral, contradit�ria e/ou intermitente. Tudo isso acontece em m�ltiplos lugares e momentos que n�o s�o necessariamente coordenados e sincronizados entre si, nem dirigidos ou supervisionados centralmente. Portanto, os efeitos desses fluxos de decis�o e poder [...] t�m escopos e consequ�ncias diferenciados e inesperados (Saavedra, 2020, p. 107).

Nos distintos fluxos, arenas e circuitos da comunica��o pol�tica, podem surgir e se alterar formas espec�ficas de inclus�o e exclus�o, de acordo com disputas “distributivas” igualmente espec�ficas (Bachur, 2020). A variedade de processos comunicativos faz com que o binarismo da forma inclus�o/exclus�o (Stichweh, 2005) assuma configura��es espec�ficas nos distintos n�veis, circuitos e arenas do sistema. � preciso ressaltar o car�ter operativo e bin�rio da forma inclus�o/exclus�o na teoria dos sistemas. Em todo evento ou processo comunicativo, opera-se com a distin��o entre inclus�o e exclus�o: n�o h� inclus�o sem exclus�o, pois se trata de uma forma operativa de dois lados.

Enquanto os sistemas funcionais se apoiam na norma universalista da inclus�o – e isso, como veremos, acontece at� em regimes pol�ticos autocr�ticos –, deixando o “outro lado” (exclus�o) da forma fora de considera��o, a diferencia��o interna dos subsistemas funcionais produz uma variedade de organiza��es, redes e outros n�veis sist�micos que produzem simultaneamente inclus�o e exclus�o, de acordo com l�gicas e estruturas espec�ficas. A combina��o entre inclus�o universalista nos sistemas funcionais com exclus�o particularista em seus n�veis e arenas internas se realiza, na pol�tica, especialmente com a bifurca��o entre os fluxos do poder formal e do poder informal (Luhmann, 1981a; Luhmann, 2002, p. 260). Ao trabalhar com essa bifurca��o, Luhmann aborda a pol�tica n�o s� para al�m do Estado e sua dimens�o oficial, mas tamb�m para al�m do ideal constitucional de um poder pol�tico plenamente imune ao poder social desigualmente distribu�do. A distin��o entre poder formal e informal n�o trata formas autocr�ticas de inclus�o e exclus�o pol�ticas como caracter�sticas exclusivas de determinados pa�ses (nacionalismo metodol�gico) considerados atrasados em sua trajet�ria de desenvolvimento pol�tico, mas sim como caracter�sticas presentes, em maior ou menor grau, tamb�m em pa�ses definidos como democracias constitucionais, liberais e representativas.

Na rela��o entre o p�blico e a pol�tica, o poder formal � aquele que o cidad�o transfere pelo voto ao governante e que institucionaliza a “constitucionaliza��o do poder” e a norma da igualdade pol�tica. Na rela��o entre pol�tica e administra��o, o poder formal � a decis�o sobre normas, leis, regulamentos, projetos, programas e pol�ticas que os poderes executivo e legislativo produzem para serem implementados pela burocracia estatal. Na rela��o entre administra��o e p�blico, o poder formal consiste nas atribui��es relativas � implementa��o das decis�es pol�ticas na rela��o com os cidad�os.

O circuito do poder informal � uma esp�cie de fluxo comunicativo na dire��o oposta � do poder formal, e que floresce nas rela��es de interdepend�ncia entre pol�tica, administra��o e p�blico. Nesse circuito, as comunica��es pol�ticas n�o s�o alcan�adas pela normatiza��o constitucional, estabelecendo-se como um espa�o que contrasta com a igualdade pol�tica normativamente esperada no espa�o do poder formal. Nessa dimens�o do poder:

[...] a pol�tica n�o pode funcionar sem as orienta��es da administra��o. Assim como o p�blico torna-se dependente da pr�-sele��o de pessoas e programas dentro da pol�tica e a administra��o passa a depender, na medida em que se expande para campos de for�as mais complexos, da atua��o volunt�ria do p�blico, sendo obrigada a conced�-lo alguma influ�ncia. (Luhmann, 1981a, p. 164)

O crescimento e o adensamento das estruturas organizacionais envolvendo a administra��o e o p�blico, incentivados pela expans�o do Estado de bem-estar social, elevam a complexidade das situa��es de decis�o com as quais a administra��o se v� diariamente confrontada em fun��o de suas rela��es informais com o p�blico. Isso faz com que a administra��o se torne cada vez mais dependente da coopera��o dos segmentos organizados do p�blico. Esses segmentos possuem uma margem de atua��o e influ�ncia sobre a implementa��o de pol�ticas p�blicas que n�o se deixa controlar pelo poder constitucionalizado e pelos programas decis�rios oficiais (Luhmann, 2002, p. 260-261).

Essa rela��o de depend�ncia significa que os grupos organizados podem sancionar (punir) o governo, adquirindo posi��es de poder informal e autocr�tico capazes de se opor ao curso do poder formal democr�tico. Um exemplo contempor�neo, presente no Brasil, de crescimento do poder informal autocr�tico � o protagonismo de organiza��es religiosas, especialmente as pentecostais, em processos de moraliza��o da pol�tica. Tais organiza��es t�m aproveitado oportunidades de san��o no circuito informal do poder. As negocia��es e amea�as de denomina��es religiosas a atores pol�ticos geralmente envolve o componente da moraliza��o, especialmente a amea�a de vincular determinado pol�tico ou partido a posicionamentos capazes de alimentar rejei��o moral nos segmentos religiosos da popula��o. Os meios de comunica��o de massa e sua capacidade de difus�o s�o indispens�veis na configura��o de um ambiente pol�tico interno (opini�o p�blica) de amea�as e esc�ndalos morais cotidianos (Luhmann, 1996b) que prende a aten��o e orienta a conduta dos atores pol�ticos. Por causa de seu papel decisivo na moraliza��o da pol�tica, a organiza��o e o controle dos meios de comunica��o de massa, que se alteram profundamente com a emerg�ncia das ditas “redes sociais” (Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagram), constituem um dos fatores mais importantes do poder informal em sua configura��o autocr�tica, cujos efeitos se estendem r�pida e ciclicamente para o poder formal, influenciando o processo eleitoral.

A rela��o entre democracia e autocracia

Para Anna Ahlers e Rudolf Stichweh (2019), a pol�tica moderna, funcionalmente diferenciada em n�vel global, oscila atualmente de modo bipolar entre alternativas democr�ticas e autocr�ticas de organiza��o e exerc�cio do poder. Com isso, ela n�o s� transcende a idealiza��o constitucional da pol�tica, j� realizada por Luhmann, como permite an�lises comparativas de fen�menos autocr�ticos e democr�ticos sem nenhum tipo de nacionalismo metodol�gico.

Essa concep��o “bipolar” da pol�tica moderna a partir da teoria sociol�gica sist�mica nos permite um olhar mais nuan�ado sobre os processos de democratiza��o ou de autocracia. Entre a possibilidade de retirar o r�tulo de democr�tico e colocar o de autocr�tico h� um leque de grada��es e de avan�os dos enclaves autocr�ticos e democr�ticos. Democracia e autocracia s�o percebidas como dois equivalentes funcionais de que disp�e a modernidade pol�tica para realizar a fun��o de construir decis�es coletivamente vinculantes. Para o argumento deste artigo, a concep��o de “bipolaridade” da pol�tica moderna implica que fen�menos autorit�rios n�o devem ser vistos como elementos de tradi��es autorit�rias do passado que sobrevivem no presente.

Como a pol�tica � um sistema global, diferenciado internamente em Estados-na��es e em n�veis subnacionais, Ahlers e Stichweh sugerem uma an�lise multin�vel que seja capaz de considerar as semelhan�as e diferen�as na rela��o entre os n�veis global, nacional e subnacional. N�o se trata de recusar a classifica��o de pa�ses como autorit�rios ou democr�ticos, mas de incluir na an�lise outros n�veis do sistema pol�tico (Ahlers & Stichweh, 2019, pp. 821-822 e 833). No n�vel global, n�o existe democracia. Tudo o que a modernidade produziu em termos de democracia nunca alcan�ou o n�vel global em termos institucionais. Nos n�veis subnacionais, � comum que regimes autorit�rios, a exemplo da China, combinem diferentes formas de inclus�o e exclus�o com a hierarquia interna da organiza��o estatal e dos processos de tomada de decis�es coletivamente vinculantes. Assim, enquanto a condu��o do governo central permanece inacess�vel, a implementa��o local de pol�ticas p�blicas adquire mais abertura para a variedade de interesses e demandas do ambiente, promovendo formas distintas de participa��o da popula��o afetada pelos resultados (output) das pol�ticas governamentais (Ahlers & Stichweh, 2019, p. 833; Zhiyuan, 2009).

Nessa an�lise sist�mica multin�vel, a combina��o de exclus�o da maioria da popula��o dos pap�is profissionais de condu��o pol�tica do governo central com sua inclus�o nos pap�is de p�blico destinat�rio de pol�ticas p�blicas se articula com os padr�es de hierarquia entre valores societais t�picos de democracias e autocracias: na democracia predomina a hierarquia de valores, na qual a pol�tica � avaliada pelos valores fixados internamente pelo pr�prio sistema pol�tico (como as liberdades de opinar e votar) em seus procedimentos de tomada de decis�o coletiva; nas autocracias, por sua vez, o valor do processo pol�tico � subjugado a uma hierarquia de valores externa � pol�tica, mas que serve de fundamento para elites que controlam o acesso �s posi��es do poder formal. Valorizar primariamente o input � valorizar o pr�prio sistema pol�tico, o jogo democr�tico tomado como um fim em si. Valorizar primariamente o output � valorizar o sistema pol�tico como meio para fins estabelecidos a partir de valores sociais externos � pol�tica – como a conserva��o da moral, a preserva��o da vida dos indiv�duos ou a efetividade na implementa��o das pol�ticas p�blicas –, mas que a pol�tica aceita como necess�rios para estruturar a tomada de decis�es (Ahlers & Stichweh, 2019, p. 824-825).

Essa distin��o entre padr�es de prefer�ncia de valores permite n�o reduzir modernidade pol�tica � democracia e conceber o autoritarismo como uma lat�ncia sempre presente na forma��o e reprodu��o do sistema pol�tico moderno. Como a modernidade � marcada pelo pluralismo de valores inerente � diferencia��o funcional, a sociedade n�o garante ao sistema pol�tico que o valor pr�prio dos processos pol�ticos seja sempre preferido pelas maiorias. �s vezes a maioria prefere um regime autorit�rio por consider�-lo mais eficiente para tomar decis�es sobre valores de outros sistemas funcionais, externos � pol�tica (Ahlers & Stichweh, 2019, p. 826).

As diferentes formas modernas de autocracia acolhem, seletivamente, o imperativo da inclus�o do p�blico, mas sem sua participa��o na sele��o das elites pol�ticas. Trata-se de fen�meno moderno, no qual autocracias precisam legitimar suas decis�es diante de um p�blico levado em conta por quem controla o poder do Estado, ainda que de modo passivo. A crescente import�ncia da “opini�o p�blica” nos regimes autorit�rios atesta esse fato.

No paradigma da singularidade pol�tica brasileira, como vimos, existe uma idealiza��o da democracia constitucional como �nica forma pol�tica moderna, sem equivalentes funcionais, para a constru��o de decis�es coletivamente vinculantes e aceit�veis como leg�timas pelo p�blico da pol�tica.

Nesse sentido, � importante mencionar o trabalho te�rico de Wanderley Guilherme dos Santos (2017). O cientista pol�tico defende que o autoritarismo n�o pode ser observado mais como um fato que n�o cabe no presente, como se fosse sobreviv�ncia do passado, exatamente como preveem os conceitos de patrimonialismo e neopatrimonialismo que tentam explicar o fechamento das posi��es de poder pol�tico pelo passado ib�rico. Ele recusa a concep��o de que as rupturas no jogo democr�tico brasileiro sejam a demonstra��o de um reiterado autoritarismo que marcaria atavicamente o sistema pol�tico nacional.

Para mostrar o equ�voco dessa concep��o, Santos compara regimes olig�rquicos e democr�ticos: dentro do sistema democr�tico identificamos mais rupturas das regras do jogo do que nos per�odos olig�rquicos, corroborando a tese da “bipolaridade” da pol�tica moderna (Santos, 2017, p.11). Nesse sentido, golpes parlamentares como o que retirou Dilma Rousseff da Presid�ncia indicam contradi��es do sistema pol�tico e os limites da pr�pria democracia moderna, sobretudo a tens�o entre os valores do sistema representativo e o capitalismo. Sua abordagem vai al�m das interpreta��es do PPB expostas neste artigo: rompe com a tese da excepcionalidade brasileira e com a idealiza��o do sistema democr�tico (Santos, 2017, p14).

Conclus�o

A idealiza��o da modernidade pol�tica dos pa�ses do centro � um contraponto normativo para a defini��o dos pa�ses perif�ricos como deficit�rios na realiza��o dos atributos considerados t�picos da pol�tica moderna: a democracia e o constitucionalismo. A atribui��o ontol�gica (nacionalismo metodol�gico) de caracter�sticas modernas (democracia e poder constitucional) aos pa�ses centrais e caracter�sticas pr�-modernas (autoritarismo e poder arbitr�rio) aos pa�ses perif�ricos pressup�e uma linha de desenvolvimento (teleologia) que vincula o tradicional a tudo que � autorit�rio e o moderno ao que � exclusivamente democr�tico. Esse discurso p�blico e acad�mico sobre a rela��o entre democracia e as formas pol�ticas autocr�ticas precisa ser revisto.

Al�m da cr�tica, esbo�amos o ponto de partida te�rico de uma sociologia pol�tica de orienta��o sist�mica como explica��o alternativa que redefine os par�metros de observa��o e o pr�prio objeto: o Estado nacional perde sua exclusividade como categoria anal�tica da teoria pol�tica e passa a ser observado como um n�vel entre outros na pol�tica moderna, e o objeto deixa de ser a democracia e o autoritarismo enquanto formas pol�ticas separadas para ser a “bipolaridade” entre elas, sua coexist�ncia dentro do mesmo sistema pol�tico moderno e em seus distintos n�veis. Em s�ntese: observa-se as rela��es entre poder democr�tico e poder autocr�tico na configura��o estrutural interna e nas rela��es entre os diferentes n�veis do sistema pol�tico.

Esta sociologia pol�tica que propomos n�o hierarquiza no tempo (moderno/atrasado) e na regi�o (regi�es modernas/ regi�es atrasadas) a diferen�a entre democracia e autocracia, mas a considera como uma diferen�a moderna, que assume configura��o bipolar na modernidade pol�tica global. Nesse contexto te�rico, variantes locais e regionais podem ser comparadas para al�m dos obst�culos epistemol�gicos do nacionalismo, da teleologia e da idealiza��o. A pol�tica moderna n�o pode ser reduzida � democracia. O chamado “recesso da democracia” n�o � um corpo estranho � modernidade pol�tica.

Para a teoria da diferencia��o funcional, a considera��o de que as autocracias e os fen�menos autocr�ticos existentes s�o modernos, no sentido de que partilham estruturas sem�nticas e formas de diferencia��o interna com os regimes democr�ticos, coloca em xeque a imagem de uma diferencia��o funcional completa e acabada como tra�o de qualquer Estado nacional, regi�o e da sociedade mundial como um todo. Nesse sentido, trata-se de contribuir para um processo de revis�o e aperfei�oamento da teoria da sociedade moderna e de sua dimens�o pol�tica, que leve em conta os paradoxos e contradi��es dessa sociedade e de sua pol�tica.

Os fen�menos autorit�rios que observamos na hist�ria pol�tica brasileira, tanto os regimes autorit�rios do passado como as estrat�gias recentes de limita��o do poder democr�tico constitucional, precisam ser compreendidos a partir da modernidade do poder autocr�tico. A an�lise deve partir de uma teoria social multin�vel e n�o estadoc�ntrica da pol�tica, que nos permita observar os problemas da pol�tica moderna em sua globalidade e din�mica de incerteza no jogo oscilante entre democracia e autocracia.

Refer�ncias

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Notas

1 Para uma cr�tica detalhada da narrativa “moderna” de Schwartzman sobre o autoritarismo brasileiro, ver Ribeiro e Dutra (2020) que, al�m de explicitar os pressupostos presentes na formula��o do soci�logo mineiro, ainda oferecem uma alternativa te�rica a partir da sociologia pol�tica de Niklas Luhmann.

2 A “teleologia do desenvolvimento” � uma caracter�stica central das teorias da moderniza��o preocupadas n�o apenas com o desenvolvimento pol�tico, mas tamb�m com a rela��o entre pol�tica, sociedade e o desenvolvimento econ�mico de pa�ses “subdesenvolvidos”. No tema do desenvolvimento econ�mico, a teoria etapista de Walt Whitman Rostow (1974) � exemplo paradigm�tico e tem desdobramentos pr�ticos tamb�m para a dimens�o pol�tica, j� que estreita fortemente o leque de combina��es poss�veis entre pol�tica e sociedade (a “decolagem” da mudan�a social e econ�mica) que podem levar � transi��o de formas tradicionais para formas modernas.

Qual o objetivo do autoritarismo?

Autoritarismo é uma forma de governo que é caracterizada por obediência absoluta ou cega à autoridade, oposição a liberdade individual e expectativa de obediência inquestionável da população.

Como melhorar o autoritarismo?

Padronize os processos e estabeleça indicadores e objetivos para que cada um desses permaneça sempre em evolução. 4 – Seja um arquiteto de mudanças: Não aceite o mínimo ou o “mais ou menos”. Sua equipe pode mais! Acredite nela e certifique que os componentes dela saibam disso.

O que foi o autoritarismo no Brasil?

O autoritarismo, ou autoritarismo social no Brasil, é um traço marcante da sociedade. Embora a imagem do brasileiro seja a da afabilidade, da cordialidade, da "democracia racial", a realidade mostra uma uma sociedade violenta, desigual, e hierárquica.