Qual a maior preocupação dos EUA na América Latina em relação a Guerra Fria?

Introdução: a região como uma estratégia

  • 1 Este artigo está baseado na tese de doutorado "Segurança na América do Sul: a construção regional e (...)

1Desde os anos 2000, os países sul-americanos, com especial interesse brasileiro, têm constituído um espaço regional na América do Sul relativamente autônomo frente à América Latina e ao continente americano, num processo em que os desafios da segurança e defesa foram cruciais para os desdobramentos políticos da via sul-americana de integração.

2A política externa do Brasil desde a década de 1990 tem colocado em evidência a América do Sul como o espaço regional privilegiado para sua influência política. Embora não seja uma projeção regional ostensivamente defendida como uma "doutrina", o horizonte estratégico da política externa brasileira tem se apresentado cada vez dentro de um referencial sul-americano (Milani et al, 2015). O Brasil assumiu um papel protagonista na construção regional da América do Sul como um bloco político. As relações entre Brasil e América do Sul têm sido objeto de diversos estudos geográficos (Costa, 2002; 2008; Costa, Thery, 2010; 2012; Egler, 2009).

3Na década de 2000, a América do Sul poderia ser vista como uma alternativa possível em relação aos tradicionais recortes hemisférico ou latino-americano bem como em relação a recortes mais limitados da cooperação no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) ou na Comunidade Andina (CAN). A primeira conferência de presidentes da América do Sul (2000), à qual se sucedeu a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), o lançamento da União de Nações Sul-Americana (UNASUL), em 2008, ratificada posteriormente por todos os países sul-americanos, e a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), em dezembro de 2008, são expressões institucionais dessa construção regional sul-americana.

4Essa tendência, no entanto, não é unívoca e contém em si diversas contradições. Longe de se consolidar como um movimento consensual e unidirecional, a tendência de construção política da América do Sul é confrontada tanto com os arranjos consolidados pré-existentes (o “pacto hemisférico ocidental”) quanto com os resultados da reconfiguração global em direção ao Pacífico, da qual emerge a cisão entre uma América orientada ao Pacífico e outra orientada ao Atlântico. Em torno dessas macrotendências divergentes é que a geopolítica contemporânea da América do Sul deve ser analisada.

5As contradições da agenda política de segurança e defesa na América do Sul se manifestam nas diferentes tendências de polarização no interior do subcontinente sul-americano. Em termos conceituais, a separação entre a agenda de defesa e de segurança (Saint-Pierre, 2013, p. 25) com ênfase no papel soberano do Estado, se contrapõe à perspectiva da “multidimensionalidade da segurança”, um enfoque que dilui a soberania territorial em função da segurança transnacional, associada ao combate a redes ilegais e ameaças transnacionais. É o que aparece nas visões divergentes sobre o maior engajamento de alguns países na guerra global antiterror, casos da Colômbia e do Chile, e a tradicional preocupação com ameaças militares interestatais, casos do Equador e da Venezuela (Cepik, 2005, p. 6). Essas clivagens também se expressam na divisão entre “países pró-mercado” e “países bolivarianos” ou “populistas” (Calle, 2010, p. 318), ou na “rivalidade emergente” entre um campo de influência brasileiro e outro norte-americano (Moniz Bandeira 2011[1989]), e que ficou mais evidente com a contraposição da América do Sul ao projeto da Área de Livre de Comércio das Américas (ALCA) (Moniz Bandeira, 2009) ou na reação frente aos acordos para a instalação de bases militares na Colômbia, em 2009. A adesão de cada país aos arranjos políticos regionais pode indicar divergências, como é o caso na maior ou menor ênfase em atribuir ao CDS, uma instância sul-americana para consulta, cooperação e coordenação em matéria de defesa, funções anteriormente relegadas apenas à Junta Interamericana de Defesa, atualmente vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA).

6O papel do Brasil também é avaliado de forma controversa. As iniciativas da política externa brasileira nas duas últimas décadas têm se orientado para a esfera sul-americana, numa perspectiva dialética da relação entre integração e segurança (Vizentini, 2007). O Brasil é considerado como uma “nova potência regional” (Becker; Egler, 1993), um ator-chave na conformação dos arranjos regionais de segurança (Oliveira, Onuki, 2000, p. 108), “país intermediário e poder regional”, mesmo que com maior ênfase nas “formas brandas de poder” do que na força militar (Lima, Hirst, 2009, p. 43). A liderança, no entanto, pode ser vista com desconfiança pelos parceiros minoritários da construção regional sul-americana.

7Diante das contradições expostas, a América do Sul apresentaria fragilidades e inconsistências que dificultariam a aposta num projeto regional comum. As instabilidades internas, os desafios das ameaças transnacionais e o “grande jogo” geopolítico mundial – do qual a América do Sul não participa senão como casa do tabuleiro ou peão – confluem para fazer do projeto regional sul-americano uma iniciativa sempre em xeque.

8O objetivo do artigo é analisar as diferentes estratégias nacionais de segurança e de suas interações dentro do contexto regional sul-americano. Em que medida a América do Sul pode ser individualizada como uma região relativamente autônoma e coerente para interpretar as dinâmicas de segurança dos países sul-americanos no âmbito internacional? Qual tem sido o papel do Brasil nesse processo?

9Em primeiro lugar, discutimos a pertinência do recorte sul-americano frente a outros possíveis recortes e diferentes maneiras como foi pensada a regionalização da segurança na América, como o hemisfério ocidental (ou continente americano), a América Latina e as sub-regiões dentro da América do Sul (Cone Sul, Norte Andino, Amazônia, etc.). Em segundo lugar, enfocamos como o processo de regionalização da segurança na América do Sul aparece de forma mais explícita nos documentos oficiais que definem as políticas e estratégias de segurança e defesa. Buscamos fazer uma leitura comparada das formulações políticas de cada país e dos documentos multilaterais sul-americanos antes e depois da UNASUL, de modo a identificar a relevância dos recortes regionais para as dinâmicas de segurança de um conjunto de Estados. Em terceiro lugar, analisamos duas séries de dados, referentes aos orçamentos de defesa e às transferências de armas dos países sul-americanos. Esses indicadores de segurança e defesa permitem avaliar a evolução do comportamento regional e das interações regionais na América do Sul em relação às dinâmicas extrarregionais e globais.

América do Sul vs. Hemisfério Ocidental

10O conceito de hemisfério ocidental aparece como o grande pano de fundo em relação ao qual as divisões e os recortes existentes no interior do continente americano se estabelecem. A recente emergência de um bloco sul-americano deve, portanto, ser confrontada com o seu lugar histórico e geopolítico, já que não surge num vazio de poder, mas numa área de influência imediata da potência hegemônica global.

11A concepção regional de hemisfério ocidental como uma área coerente de segurança tem sua origem na Doutrina Monroe, em 1823. Embora tenha sido inicialmente uma invenção inglesa ou um blefe norte-americano, em princípios do século XX a projeção dos Estados Unidos sobre o conjunto do chamado “hemisfério ocidental” já estava em vias de se concretizar, com o desenvolvimento do poder naval dos Estados Unidos e seus efeitos diretos no Mar do Caribe e na navegação interoceânica. A defesa hemisférica foi concebida como uma defesa do continente americano como área privilegiada da projeção política e econômica dos Estados Unidos: a “Doutrina original de Monroe se converteu em doutrina da defesa total do hemisfério” (Spykman, 1942, p. 91), esse “grande espaço vital regional” (1942, p. 283).

12A ideia de defesa hemisférica se materializou no alinhamento político dos países do continente americano aos Aliados, durante a II Guerra Mundial, e ao campo capitalista sob hegemonia dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, confirmado pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947) e pela OEA (1948), que deram uma forma jurídica ao compromisso mútuo estabelecido, envolvendo a maioria dos países do continente. Durante as décadas de predominância dos regimes militares na América Latina, a ideia de hemisfério ocidental foi recuperada na perspectiva antissoviética que balizava as doutrinas de “segurança nacional” (Couto e Silva, 1958).

13A regionalização das Forças Armadas norte-americanas divide o mundo em áreas de atuação de comandos militares regionais e pressupõe duas áreas dentro do continente americano: a área do Comando Norte (US NORTHCOM), que engloba Estados Unidos, Canadá, México, Bahamas, Porto Rico e Cuba, e o Comando Sul (US SOUTHCOM), correspondendo à América Central, ao Caribe e à América do Sul em sua totalidade. Excluem-se os territórios sob administração dos EUA ou sob soberania europeia. Os mares também aparecem recortados pelos comandos e as frotas são numeradas de acordo com a área de atuação. No caso da América do Sul, temos a chamada IV Frota, cuja reativação em 2010 ganhou grande repercussão nos países sul-americanos.

14Outro recorte pouco usual é apresentado o geopolítico norte-americano Nicholas Spykman, que, em 1942, escreve uma análise sobre a configuração regional de poder no continente americano em meio à II Guerra Mundial, com o objetivo de orientar a estratégia norte-americana para a ruptura do isolacionismo predominante em sua política externa. Uma vez ameaçado o equilíbrio de poder na Europa, os norte-americanos correriam o risco de um cerco ao “hemisfério ocidental”. Spykman propõe uma divisão geopolítica do continente em três regiões: a América do Norte, o Mediterrâneo Americano e a América do Sul. Para Spykman, o Mediterrâneo Americano correspondia ao México, à América Central, ao Caribe, às Guianas e aos países sul-americanos com a costa voltada para o Mar do Caribe, isto é, Colômbia e Venezuela. O argumento de Spykman era o de que, do ponto de vista geopolítico, Colômbia e Venezuela estavam isoladas do resto da América do Sul pelos planaltos dos Andes e das Guianas e pela selva amazônica. Durante a II Guerra Mundial, a questão da América do Sul era considerada fundamental para as ambições norte-americanas no mundo. Apesar de não possuir capacidade autônoma para confrontar os EUA dentro do “hemisfério ocidental”, os países da América do Sul, principalmente os da região ABC – Argentina, Brasil e Chile – poderiam servir de ponto de apoio para potências extra-regionais disputarem com os EUA. A importância estratégica da América do Sul estava na posição geográfica e nos recursos naturais e econômicos que poderiam ser mobilizados.

América do Sul como Complexo Regional de Segurança (CRS)

15Diante das divisões regionais acima descritas, tomaremos como referência o recorte sul-americano tal como aparece na regionalização proposta por Buzan e Waever (2003). Os autores distinguem dois complexos: um CRS norte-americano, que inclui os sub-complexos América do Norte e América Central/ Caribe; e um CRS sul-americano, no qual estão incluídos todos os países da América do Sul (com exceção do Suriname e da Guiana Francesa), subdivido em dois sub-complexos, o Norte Andino (Equador, Peru, Colômbia, Venezuela e Guiana) e o Cone Sul (Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia). Esta formulação difere de uma anterior, feita por David Mares (1997), que considera um CRS mais abrangente, englobando toda a América Latina e incluindo os Estados Unidos.

16A evolução do CRS da América do Sul tem sido fortemente marcada pela proximidade com os Estados Unidos e pela tendência de distinção entre o Norte Andino e o Cone Sul. Quanto ao grau de intervenção dos Estados Unidos, as hipóteses variam entre considerar 1) os EUA como parte do CRS da América do Sul, devido à sua importância no cálculo da balança de poder regional, 2) o continente americano como um único conjunto sob o comando dos EUA (na perspectiva de defesa hemisférica), 3) a intervenção norte-americana como expressão de seu intervencionismo global (antes associado à Guerra Fria, hoje à guerra contra o terrorismo), ou 4) uma relação interregional entre os dois CRS, marcada pela penetração dos EUA dentro do CRS da América do Sul, tal como proposto por Buzan e Waever (2003, pp. 308-309).

17Segundo Buzan e Waever (2003), as intervenções norte-americanas na América do Sul tenderiam a ocorrer de forma mais velada do que no Caribe e na América Central. Dentro da América do Sul, por sua vez, a diferenciação interna do CRS sul-americano em dois sub-complexos se dá também pelo modo como se legitima a intervenção norte-americana nos conflitos no sub-complexo do Norte Andino, principalmente em relação à guerra às drogas, diferentemente do que ocorre no sub-complexo do Cone Sul.

18As mudanças pós-Guerra Fria envolveram, no nível doméstico, a redemocratização, a redução da influência dos militares na política e a reforma do Estado com a abertura comercial e a internacionalização das economias. No nível regional, enquanto no Cone Sul tem ocorrido uma distensão das rivalidades interestatais desde a década de 1980, no Norte Andino se verifica a permanência de conflitos entre Estados e a transnacionalização dos problemas de segurança. A formação do MERCOSUL, por um lado, e a guerra às drogas na Colômbia, por outro lado, são as questões mais importantes para a definição dos possíveis cenários regionais (Buzan, Waever, 2003, p. 304). No caso do MERCOSUL, Buzan e Waever (2003, p.327) reconhecem uma relação forte entre integração e segurança, devido à busca de soluções negociadas de conflitos, à estabilidade na relação Brasil-Argentina e à possibilidade de representar um contraponto à penetração norte-americana. Os demais países da América do Sul pendulariam entre os dois pólos (EUA e Brasil-Argentina), tese que se aproxima da idéia de “rivalidade emergente” (Moniz Bandeira, 2011).

19Tanto Buzan e Waever em 2003 quanto Spykman sessenta anos antes apontam um maior grau de autonomia do Cone Sul em relação aos Estados Unidos. Para Spykman, no entanto, a preocupação era com a possível penetração de potências extra-regionais, enquanto para Buzan e Waever há um reconhecimento de uma capacidade autônoma do Brasil e da Argentina em se constituírem como um centro de atração que rivalizaria com os EUA dentro da América do Sul.

Lendo a América do Sul nos documentos

20Nas últimas duas décadas, os países sul-americanos buscaram produzir documentos públicos para definirem suas políticas de segurança e defesa. Essa iniciativa demonstra a abertura política de um setor que tradicionalmente se manteve avesso ao debate público e reforça a transparência nas formulações estratégicas de cada país em relação aos demais.

21Uma característica comum à maioria dos documentos é a abordagem multiescalar, na qual são tratados os âmbitos global, continental (ou hemisférico), regional (sul-americano), sub-regional (Andes ou Cone Sul) e bilateral (ou fronteiriço). A leitura das políticas indica uma tendência de diminuição da importância dos âmbitos continental e sub-regional em favor do aumento da atenção concedida ao nível regional sul-americano.

22Aqui selecionamos alguns casos de países que apresentam documentos públicos sobre segurança e defesa em dois momentos distintos ao longo dos últimos vinte anos, o que permite ter uma visão comparativa das mudanças ocorridas entre um e outro tempo.

23No caso do Brasil, a vinculação entre a estratégia nacional brasileira e a formação de uma esfera política regional sul-americana para tratar de segurança e defesa é coerente com as tendências gerais observadas desde a Política de Defesa Nacional, de 1996, mas principalmente na atualização de 2005, na qual a América do Sul é definida como ambiente regional no qual o Brasil se insere e como área prioritária de atuação. Esse ambiente é extrapolado para o Atlântico Sul e os países lindeiros da África, mas os assuntos de segurança mantêm seu foco na América do Sul.

24A Estratégia Nacional de Defesa (2008), sem fazer referências ao âmbito hemisférico ou latino-americano, é bastante explícita ao apontar a diretriz de “estimular a integração da América do Sul” e a necessidade de “prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa” através do mecanismo do CDS, do qual não participaria nenhum “país alheio à região” (2008, p.9).

25Comparando os países que apresentam documentos em datas sucessivas, podemos notar que a Argentina é o que mais se aproxima do enfoque sul-americano, enquanto a Colômbia é o que mais se distancia. Os casos do Equador e do Chile, também analisados, apresentam oscilações entre os diferentes recortes.

26O Livro Branco da Argentina (1998) apresentava um cenário estratégico relacionado ao panorama global, à dimensão continental – subdividido em "continente americano", “âmbito estratégico do MERCOSUL” e “Atlântico Sul” – e à nação argentina. Na dimensão continental, o documento destacava o papel da OEA e da Comissão de Segurança Hemisférica, e, no Cone Sul, o processo de aproximação entre os países da sub-região - incluindo Chile e Bolívia - desde a década de 1980. Essa abordagem é mantida na Revisão da Defesa (2001). A Diretiva de Política de Defesa Nacional da Argentina, aprovada em 2009, já traz um enfoque bem distinto. Ao diferenciar os cenários global e regional, o documento identifica o regional como sul-americano, com ênfase na experiência comum no período pós-Guerra Fria: redemocratização, na intensificação das relações comerciais e infraestruturais e seus reflexos positivos para a cooperação em matéria de segurança e defesa. É notável também a redução de importância do nível hemisférico no documento.

27No Livro Branco do Chile de 2002, a América do Sul é citada como um entorno regional que apresentava uma tendência à diminuição dos conflitos, após as aproximações entre Chile e Argentina, na década de 1980, Peru e Equador, após a guerra do Cenepa (1995) e Chile e Peru, em 1999 (p. 54-55). O maior destaque, no entanto, é dado ao entorno continental e às instituições de segurança interamericanas. Já em 2010, aparecem referências aos memorandos de entendimento entre o Chile e os demais países sul-americanos (p. 143), à comparação de gastos militares dentro da América do Sul (p. 212) e, por fim, ao CDS, como um dos fóruns regionais de segurança e defesa (p 163-164).

28No Livro Branco do Equador de 2002, o cenário regional se referia à América do Sul, mas com referências abstratas sobre a "construção de uma paz regional" (p. 33) e a necessidade de um "novo regime de segurança cooperativa" (p. 34). Em 2006, a América do Sul aparece subordinada ao "âmbito hemisférico", mas é apontada a "possível formação de um bloco sul-americano" a partir dos avanços em integração de infraestrutura, das reuniões presidenciais e da criação de um espaço comum sul-americano (2006, p. 20-21). Ambos os documentos são anteriores à mudança ocorrida com a eleição de Rafael Correa, que assumiu uma postura claramente contra-hegemônica.

29O caso da Colômbia é o mais específico, pois tanto na Política de Defesa e Segurança Democrática (2003) quanto na Política de Consolidação da Segurança Democrática (2007) não há qualquer referência à América do Sul. O tema de Cooperação Internacional é tratado no documento de 2003 (pp. 63-64), onde se fala de “reforço da cooperação regional”, com referências ao Compromisso de Lima da Comunidade Andina, às comissões bilaterais fronteiriças, à necessidade de revisão do Sistema Interamericano de Segurança e às resoluções da ONU. Ambos os documentos da Colômbia são muito centrados na realidade do conflito armado doméstico. Os anos do governo Uribe (2002-2010) foram marcados por uma opção de enfrentamento unilateral e de aliança estratégica exclusiva com os Estados Unidos que não abriu qualquer via de ação regional para mediação do conflito. A Colômbia foi o país que mais resistiu à formação de uma esfera sul-americana autônoma, opção vista como muito associada aos governos de esquerda com os quais a Colômbia rivalizava.

30Essa tendência de isolamento da Colômbia se arrefeceu após a chegada de Juan Manuel Santos à presidência da Colômbia, em 2010. Ao contrário das expectativas iniciais, Santos encaminhou um apaziguamento das relações bilaterais com o Equador e a Venezuela e buscou ampliar sua participação no âmbito diplomático sul-americano.

UNASUL

31Outra importante fonte para analisar a institucionalização dos vínculos sul-americanos em matéria de segurança e defesa são os documentos da UNASUL e, particularmente, do CDS da UNASUL, ambos fundados em 2008.

32A UNASUL foi criada em 2008 a partir de reuniões de cúpula dos presidentes e ministros sul-americanos ocorridas durante a década de 2000. No âmbito da segurança regional, o Comunicado de Brasília (2000) acordou a criação de uma Zona de Paz Sul-Americana, fazendo convergir iniciativas anteriores como o Compromisso Andino de Paz, Segurança e Cooperação (1989) e a Zona de Paz e Livre de Armas de Destruição Massiva, declarada em Ushuaia (1998). Em 2000, o enfrentamento coletivo aos desafios da segurança, como drogas ilícitas e crimes conexos, eram ainda remetidos à OEA (Comunicado de Brasília, 2000). De fato, a OEA possuía um aparato institucional já constituído para orientar políticas relacionadas a esse tema. No entanto, a abordagem desenvolvida pela OEA é muito marcada pela política exterior norte-americana.

33A ausência de uma política sul-americana capaz de contrabalançar a influência norte-americana e a posição unilateral dos EUA ficaram evidentes com as duas iniciativas norte-americanas na região andina logo no início dos anos 2000: a instalação de uma base militar norte-americana em Manta, no Equador, e a implantação do Plano Colômbia. Apesar da desconfiança expressa por algumas lideranças sul-americanas frente a esse posicionamento norte-americano, não houve qualquer reação mais efetiva.

34A integração nos assuntos de defesa foi um dos fatores a impulsionar a criação do novo bloco sul-americano. Em 2008, a incursão das forças oficiais da Colômbia em território equatoriano para combater a guerrilha colombiana culminou com o assassinato do líder das FARC, Raul Reyes, e levou ao acirramento dos ânimos entre Colômbia, Equador e Venezuela, com ruptura de relações diplomáticas e reforço militar na fronteira, reações à violação territorial do governo colombiano. Na ocasião, reforçou-se a ideia de que a América do Sul deveria possuir um mecanismo próprio para tratar de questões de segurança de maneira autônoma em relação à OEA e à mediação norte-americana. O Brasil atuou como vanguarda nesse processo, não sem antes fazer um acerto de contas tanto com o governo norte-americano quanto com a OEA, em visitas diplomáticas que antecederam o giro sul-americano para articulação final da UNASUL, em maio de 2008.

35O CDS foi criado em dezembro de 2008, sete meses depois da criação da UNASUL. Após um primeiro teste na mediação da crise política na Bolívia em setembro de 2008, o grande desafio enfrentado pelo CDS foi responder à assinatura de um acordo bilateral entre Colômbia e Estados Unidos, que autorizou a instalação de sete bases militares norte-americanas em território colombiano, em 2009. A resposta da UNASUL foi imediata. Os chefes de Estado da América do Sul se reuniram numa Cúpula Extraordinária e lançaram a Declaração de Bariloche, que reafirmava, por um lado, alguns princípios e compromissos dos países com a paz, a soberania e a inviolabilidade territorial, indicando que “a presença de forças militares estrangeiras não pode, com seus meios e recursos vinculados a objetivos próprios, ameaçar a soberania e a integridade de qualquer nação sul-americana” e que se deveriam estabelecer “mecanismos concretos de implementação e garantias para todos os países aplicáveis aos acordos existentes com países da região e extra-regionais” (UNASUL 2009a, p. 2). Por outro lado, reafirmava o compromisso de luta e cooperação contra o terrorismo, a delinquência transnacional, os tráficos ilegais e a ação de grupos armados à margem da lei, o que de certa forma contemplava as condições colocadas pela Colômbia para se manter no âmbito da UNASUL após as críticas recebidas por conta do acordo com os Estados Unidos. Por fim, convidava o governo dos Estados Unidos a “um diálogo sobre questões estratégicas, de defesa, paz, segurança e desenvolvimento” (UNASUL 2009b, p. 5). No primeiro grande desafio do CDS, a resolução da polêmica instaurada com as bases norte-americanas foi claramente uma acomodação às condições impostas pela opção unilateral colombiana, o que exemplifica as limitações institucionais da UNASUL para fazer frente, mesmo que em bloco, à influência norte-americana na América do Sul.

36A instalação das bases norte-americanas na Colômbia é, pois, um momento crucial para entender as relações entre os Estados Unidos e a América do Sul durante a década de 2000. Desde 1999, com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, ocorreu na América do Sul a emergência de governos mais à esquerda dentro de seus respectivos espectros políticos nacionais. Embora preconizasse uma maior autonomia dos assuntos políticos sul-americanos frente à interferência dos EUA, a UNASUL não apresentava um viés antiamericano, pois funcionava como um espaço de mediação para evitar uma polarização mais acentuada, atuando na contenção de processos mais radicais.

37Se em 2000 a iniciativa da América do Sul teve que lidar com a presença norte-americana através da base de Manta no Equador e do Plano Colômbia, em 2008 a resposta dos EUA ao novo passo dado na integração sul-americana foi o anúncio das bases militares na Colômbia e, logo depois, a reativação da IV Frota. A UNASUL foi criada no auge das tensões envolvendo a guerra interna colombiana. A recusa do governo do Equador em renovar a concessão da base militar de Manta, iniciada em 1999 e que terminava em 2009, ensejou o acordo entre EUA e Colômbia para a concessão de sete bases militares em território colombiano, em agosto de 2009.

Gastos em defesa: crescentes, mas ainda relativamente baixos

38A partir do final dos anos 1990, mas principalmente durante a década de 2000, verificou-se um aumento considerável dos gastos militares da maioria dos países da América do Sul, em alguns casos acompanhado de acordos comerciais extra-regionais para a aquisição de armamentos e cooperação militar. A retomada de investimentos nas Forças Armadas afetou o incremento dos efetivos militares e as aquisições de armamentos pelos países sul-americanos, de origens cada vez mais diversificadas.

39Analisamos duas séries de dados sobre o comportamento regional da América do Sul e o grau de interação entre os países sul-americanos no que concerne aos assuntos de segurança: os gastos em defesa e as transferências de armas. O Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) oferece uma série histórica consistente com dados de gastos militares desde 1988 e dados de transferências de armas desde 1950. Os dados sobre gastos militares são utilizados como uma variável relevante em diversos estudos sobre segurança e defesa no continente americano (Villa, 2008; Molero, 2009; Calle, 2009; Carreiro, 2009; Casas-Zamora, 2010; Colgan, 2011).

40O primeiro aspecto que chama a atenção é o crescimento constante dos gastos militares na América do Sul desde o fim da Guerra Fria. A partir do final dos anos 1990, os gastos em defesa dos países da América do Sul se ampliaram (7,21% ao ano), com grande peso do Brasil no conjunto da região (Gráfico 1). Esse aumento esteve acima da média mundial até 2001 e abaixo da média mundial depois de 2001. Apesar do crescimento dos gastos em defesa na América do Sul em números absolutos, não houve uma variação significativa na relação entre gastos em defesa e PIB na média dos países sul-americanos, que se manteve em torno de 2,0% (gastos/PIB), abaixo da média mundial (cerca de 2,5%). O aumento absoluto dos gastos foi decorrente do crescimento econômico alcançado pelos países sul-americanos nas décadas de 1990 e 2000 (Villa, 2008).

Gráfico 1: Gastos em defesa na América do Sul (1991-2011)

Qual a maior preocupação dos EUA na América Latina em relação a Guerra Fria?

Fonte dos dados: SIPRI (2012)

41A participação percentual da América do Sul em relação aos gastos mundiais variou de 2,8%, em 1993 para 3,7% em 2011, com pico de 4,2% em 2001. Essa variação não se deu de maneira homogênea para o conjunto dos países. Nesse período, somente Brasil, Colômbia, Chile, Argentina e Venezuela se mantiveram entre os 50 maiores gastos militares do mundo, sendo os três primeiros com variação positiva em suas posições.

42Entre 1992 e 2001, houve uma queda mundial nos gastos militares, puxada pela diminuição dos gastos militares da América do Norte e na Europa, enquanto os demais continentes tiveram um crescimento acentuado. O crescimento relativo dos gastos em defesa foi de 41,6% na África, 56,5% na Ásia Meridional e 76,2% na América do Sul no período, mas com pouco impacto nos valores globais de gastos em defesa. A partir de 2001, o estímulo dos gastos norte-americanos resultou na retomada do crescimento dos gastos globais, enquanto as regiões periféricas e semiperiféricas mantiveram o crescimento dos gastos da década anterior. A tendência de aumento dos gastos seguiu uma “nova cultura global do militarismo”, em que as soluções militares para os problemas e a crença no poder militar para ampliar esferas de influência voltaram à cena na política mundial (Perlo-Freeman, 2012, p. 189).

43Uma vez averiguada a América do Sul em relação ao mundo, cabe agora avaliar a evolução comparada dos países dentro da América do Sul. O aumento dos gastos militares na América do Sul foi puxado pelo Brasil na década de 1990, cujos gastos saltaram de US$ 7,1 bilhões em 1992 para US$ 22 bilhões em 2002 (+209%), enquanto a soma dos demais países da América do Sul cresceu apenas 17,2%. Entre 2002 e 2011, os gastos militares dos demais países da América do Sul passam a crescer de forma mais acentuada do que na década anterior. Após uma pequena queda dos gastos militares do Brasil em 2003, as duas curvas crescem mais ou menos no mesmo ritmo. Desde 2003, a diferença entre os gastos militares do Brasil e dos demais países sul-americanos é bem pequena, no máximo US$ 3,3 bilhões, o que indica um equilíbrio entre Brasil e o restante da América do Sul. Para o Brasil, a equiparação entre seus gastos e a soma da América do Sul parece ser a situação mais conveniente, uma vez que mantém sua posição de liderança sem alimentar um possível “dilema de segurança” nos países vizinhos (Gráfico 1).

44Um olhar detalhado sobre a variação dos gastos em defesa de cada país explicita um pouco mais da dinâmica recente dos gastos de defesa na América do Sul (Gráfico 2). Bolívia, Paraguai, Uruguai e Guiana têm um peso muito pequeno no montante geral dos gastos. A Argentina caiu do patamar de segundo maior gasto em defesa na América do Sul em 1988, sendo ultrapassada por Colômbia e Chile, dois países que apresentaram o maior crescimento dos gastos em defesa. A ampliação de gastos nos casos da Venezuela e do Chile está relacionada ao aumento dos preços das principais commodities exportadas por esses países e pela legislação que transfere um percentual fixo da renda obtida na produção das commodities para os gastos militares, sem necessidade de aprovação do orçamento no Congresso (Calle, 2009).

Gráfico 2: Gastos de defesa na América do Sul (maiores gastos, exceto Brasil) (1988-2011)

Qual a maior preocupação dos EUA na América Latina em relação a Guerra Fria?

Fonte dos dados: SIPRI (2012)

45Embora a média sul-americana da relação gastos em defesa sobre PIB tenha se mantido constante em torno de 2% desde o início da década de 1990, o Chile e a Colômbia se mantiveram sempre acima dessa média e, desde 2009, são os países, juntamente com o Equador, em que os gastos em defesa representam mais de 3% do PIB (Gráfico 3). O Chile desceu de um patamar alto, acima de 4% no final da década de 1980, para variar entre 3 e 4% a partir da década de 1990, período de redemocratização chilena. Logo, a variação positiva dos valores absolutos do gasto chileno em defesa está associada ao crescimento de seu PIB. A Colômbia combina uma variação positiva do PIB com um acréscimo no percentual dos gastos em defesa sobre o PIB e sobre o orçamento, ficando acima de 3% do PIB a partir da década de 2000. Já o Equador ultrapassou em 2002 a média sul-americana de 2% e terminou a década em torno dos 3,5%. O aumento relativo dos gastos do Equador não está relacionado à hipótese de conflito com o Peru, superada com os acordos de paz nos anos 1990, mas sim à instalação da base militar norte-americana em território equatoriano (Base de Manta) e aos efeitos do conflito colombiano após o Plan Colombia (2000).

Gráfico 3: Gastos de defesa em relação ao PIB (%) na América do Sul (1988-2011)

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Fonte dos dados: SIPRI (2012)

46A conclusão é de que a participação da América do Sul nos gastos globais é bastante reduzida. O crescimento acentuado dos gastos sul-americanos nas últimas duas décadas não representou nem alteração significativa na distribuição global dos gastos militares, nem aumento da participação percentual da América do Sul nos gastos militares globais. Colômbia e Chile se destacam com os maiores aumentos em valor absoluto e, ao mesmo tempo, possuem relações preferenciais com os Estados Unidos, o que pode ser considerado um vetor de instabilidade regional ao alimentar reações de países vizinhos que buscaram caminhos mais autônomos em relação ao Estados Unidos na década de 2000, como Venezuela e Argentina.

Transferências de armas: medida dos vínculos regionais e extra-regionais

47As transferências internacionais de armas pesadas são um indicador para caracterizar as interações regionais, considerando o peso das trocas regionais sul-americanas sobre as trocas extra-regionais (entre países sul-americanos e países externos a essa região). Aqui utilizamos a base de dados do SIPRI, que contabiliza as transferências de armas pesadas em Trade Indicator Values (TIV) - unidade de medida que se aproxima do dólar americano.

48Na América do Sul ocorrem dinâmicas armamentistas competitivas, quando as aquisições de armas de um país aparecem como uma resposta a aquisições de outros países dentro da América do Sul. Essa percepção é acentuada quando o aumento das aquisições de armas é estimulado por tensões diplomáticas ou militares entre os países e quando as origens das armas são diferentes em dois países concorrentes (Ex: armas russas para a Venezuela; armas norte-americanas para a Colômbia).

49Mas existem também dinâmicas cooperativas na América do Sul, em que um sistema de armas é adquirido por mais de um país, juntamente com medidas de transparência sobre os usos e finalidades dos armamentos, realização de exercícios combinados, intercâmbios técnicos, empréstimos financeiros, doações de armamentos entre os países da região e ausência de tensões políticas ou provocações entre os países.

50Os gastos em importação de armas não são proporcionais, necessariamente, aos gastos em defesa, pois a existência de uma base industrial nacional de defesa diminui a necessidade de importação de material de defesa. Geralmente os países de maior gasto em defesa – no caso da América do Sul, o Brasil – não apresentem um gasto com importação proporcionalmente tão grande, pois parte do suprimento de armas é obtido por compras de empresas nacionais, o que não é contabilizado como transferência de armas pelo SIPRI (Gráfico 4).

51No mercado global de armas pesadas, a América do Sul participa mais com a importação do que com a exportação de armas. O Brasil é o país que apresenta os maiores volumes de exportação extra-regional, tendo como principais destinos a África (principalmente a Líbia), na década de 1970; o Oriente Médio (principalmente Iraque), na década de 1980, e a Europa (principalmente França e Grã-Bretanha) na década de 1990. Após os picos de exportação na década de 1980, com exportações acima de 200 milhões em TIV, associados às vendas para o Iraque no contexto da guerra Irã-Iraque (1980-1988) e ao aumento do poder militar iraquiano (Dagnino, 2010, p. 69), as vendas caíram a um patamar abaixo de 50 milhões em TIV entre 1994 e 2006. A partir de 2006 ocorre uma retomada das exportações, marcada por um novo pico em 2010, acima de 180 milhões em TIV, já no contexto da Estratégia Nacional de Defesa (2008), que preconizava uma revitalização da indústria de defesa no Brasil.

Gráfico 4: Importação de armas convencionais na América do Sul, em TIV (1960-2011)

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52Considerando o total de exportações de armas pesadas dos países sul-americanos, verificamos que o mercado regional da América do Sul se destaca na década de 2000 como o principal destino das exportações: mais de 60% das armas pesadas exportadas pelos países da América do Sul na última década tiveram como destino um outro país da América do Sul, percentual superior ao do período entre 1971 e 2000, que não superava 30%.

53O peso das importações de armas com origem na própria América do Sul é muito pequeno em relação ao total de importações de armas dos países sul-americanos: 2,60% na década de 1980 e 3,15% na década de 2000, nos períodos de maior participação. Embora ainda sejam baixas as condições de oferta dos países sul-americanos para a demanda do mercado regional, o aumento alcançado na década de 2000 em relação à década de 1990 é significativo, em termos tanto absolutos quanto relativos.

54O mercado sul-americano ganhou uma importância significativa para os países sul-americanos exportadores de armas, principalmente na década de 2000, quando atingiu mais de 60% de participação como destino das exportações originadas nos países sul-americanos. A produção da indústria de defesa na América do Sul, liderada pelo Brasil, com mais de 60% das exportações (Gráfico 5), atende a uma fatia de tecnologias intermediárias (Dagnino, 2010, p. 65), de modo que a parte de maior valor, referente aos sistemas de armas de alta tecnologia, continua dependendo da importação de fora da América do Sul. O Brasil tem desenvolvido uma estratégia nos anos 2000 para se manter em destaque buscando ampliar o mercado na América do Sul e alcançar mercados no mundo em desenvolvimento, através da aquisição de novos sistemas de armas associados à transferência de tecnologia e licenciamento de produtos de fabricantes estrangeiros (Gráfico 6).

Gráfico 5: Países exportadores de armas convencionais na América do Sul em TIV (1960-2011)

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Fonte dos dados: SIPRI (2012)

Gráfico 6: Exportações de armas na América do Sul, en milhões de TIV, por regiões de destino (1961-2010)

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55Apesar do aumento recente, o potencial de crescimento das transferências intra-regionais, levando em conta as condições de oferta e demanda de armas, ainda é bastante limitado. Do ponto de vista da demanda dos países sul-americanos, uma parte ainda muito pequena das aquisições de armas desses países se origina na América do Sul. No entanto, pelo lado da oferta sul-americana, a exportação para a América do Sul já responde por uma parcela significativa, acima de 60%, da exportação total de armas dos países sul-americanos. O aumento das transferências dentro da região poderia ocorrer num contexto de ampliação da base produtiva dos países, o que dependeria de um investimento maior nas indústrias de defesa na América do Sul, ou num contexto de retração dos mercados extra-regionais atualmente existentes, em que a América do Sul se tornaria um “refúgio comercial” para as empresas sul-americanas sem mercado em outras paragens.

56Na América do Sul, depois dos altos gastos com importação de armas na década de 1970, período de predominância de regimes militares, os processos de redemocratização e a crise da dívida externa marcaram um descenso abrupto das aquisições de armas de 1984 até meados dos anos 2000. A partir de 2006 temos um novo período de aumento nas aquisições de armas, com destaque para o Brasil. Nos anos 1970 e 1980, Brasil, Argentina, Peru e Venezuela responderam pela maior parte das importações, enquanto depois de 2006, Chile e Venezuela aparecem como os principais compradores, seguidos por Brasil e Colômbia.

57A origem das importações desses países é bastante variada. Brasil e Chile mantêm parcerias comerciais preferencialmente com os países da Europa Ocidental desde o período da Guerra Fria; a Colômbia ampliou a participação dos Estados Unidos como exportador no período pós-Guerra Fria, enquanto a Venezuela, no sentido inverso, reduziu a participação norte-americana e fortaleceu a parceria com a Rússia.

58Houve uma desconcentração das parcerias comerciais dos países sul-americanos, o que reflete tendências do mercado global de armas e do próprio comércio internacional, com a entrada de novos atores e a diminuição do peso econômico da Europa e dos Estados Unidos. Entre 1950 e 1970 somente 18 países haviam exportado armas para a América do Sul enquanto nas décadas de 1990 e 2000 já são 30 países.

59Os parceiros tradicionais na importação de armas dos países sul-americanos são os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental, que mantêm um fluxo permanente de vendas desde os anos 1950, mas com números absolutos e participação percentual declinantes desde os anos 1980. Enquanto na década de 1960 os Estados Unidos eram a origem 57% das importações da América do Sul, na década de 2000 essa participação ficou em apenas 17% (Gráfico 7).

60Considerando o destino das importações sul-americanas originadas dos Estados Unidos, até a década de 1980, Brasil e Argentina respondiam por mais de 50% do mercado sul-americano, enquanto na década de 2000 essa participação cai para 20%. Chile e Colômbia, cuja participação somada variava abaixo de 20% entre 1971 e 1990, alcançaram uma participação de 66% na década de 2000. A trajetória da Venezuela é oposta: chegou a quase 30% de participação na década de 1980 e caiu para 1,5% na década de 2000.

Gráfico 7: Transferências de armas dos Estados Unidos para os países sul-americanos (1961-2010)

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61A maior parte dos armamentos adquiridos pelos países da América do Sul ainda tem origem na Europa Ocidental (Gráfico 8). Os principais exportadores da Europa Ocidental para a América do Sul são a Grã-Bretanha, França, Alemanha, Holanda, Itália e, mais recentemente, a Espanha. Como no caso dos Estados Unidos, houve uma diminuição na participação percentual da Europa Ocidental em relação ao total das exportações de armas para a América do Sul, além de uma diminuição em valores absolutos nas décadas de 1990 e 2000. Nesse período, em relação aos países de destino das exportações europeias, o que notamos é uma diminuição do peso da Venezuela e, principalmente, da Argentina como compradores, enquanto o Chile se tornou o principal comprador de armas da Europa Ocidental na América do Sul.

Gráfico 8: Transferências de armas da Europa Ocidental par os países sul-americanos (1961-2010)

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62O outro lado da diminuição da participação dos tradicionais fornecedores de armas da América do Sul – Estados Unidos e Europa Ocidental – é a entrada de novos exportadores para região. Para evitar a dependência da importação de armas dos parceiros tradicionais, e sem possibilidade de desenvolver uma base produtiva regional autônoma, a saída encontrada pelos países da América do Sul tem sido a diversificação das parcerias comerciais no setor de defesa. São os casos da Rússia, de Israel, da China e dos países ex-socialistas da Europa Oriental, que ampliaram sua participação no mercado sul-americano a partir da década de 1970 (Gráfico 9). A Rússia foi a principal beneficiária dessa iniciativa na década de 2000, estabelecendo parcerias com Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Peru, Uruguai e Venezuela. Na década de 1990, a Rússia mantém a fatia do mercado adquirido nas décadas anteriores pela URSS e, na década de 2000, dá um grande salto, superando os Estados Unidos como maior exportador de armas para o mercado sul-americano. Israel entrou em 1974 com uma parceria com o Equador e nos anos posteriores ampliou para quase todos os países da América do Sul. A Europa Oriental entra no mercado sul-americano após o fim da Guerra Fria, na década de 1990, mas sem continuidade significativa nos anos 2000. A China, por sua vez, começa a aparecer na década de 1990 e já desponta na década de 2000 como um exportador relevante.

Gráfico 9: Transferências de armas da Europa Oriental, China, Israel e Rússia para os países sul-americanos, em TIV (1961-2010)

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Fonte dos dados: SIPRI (2012)

Conclusão

63Através de documentos e dados, buscamos compreender os diferentes processos constitutivos da construção da América do Sul como uma região de segurança, capitaneada pelo Brasil nas últimas décadas. Diante dos avanços recentes e das limitações estruturais da América do Sul, é possível apontar quatro cenários que se superpõem no horizonte político da região.

64O primeiro cenário é a ampliação da autonomia sul-americana. Essa perspectiva esteve em alta entre 2000 e 2010, devido a uma combinação de diferentes fatores: governos de esquerda na América do Sul, incremento da integração física através da IIRSA, uma certa “negligência salutar” por parte dos Estados Unidos, envolvido nos conflitos do Iraque e do Afeganistão, crescimento econômico dos países sul-americanos, uma política externa brasileira em busca de um protagonismo e o esforço institucional que culminou com a criação da UNASUL. Embora se tenha retraído na década de 2010, o projeto regional sul-americano pode ganhar novo fôlego através de mudanças sistêmicas do poder global ou na esteira de um novo ciclo político.

65O segundo cenário é o de um novo pacto de segurança hemisférica, no qual haveria uma recomposição, nas questões de segurança, da América do Sul dentro dos padrões de segurança multidimensional hemisférica, tendo em vista o enfrentamento dos conflitos políticos e sociais como ameaças emergentes ou transnacionais. Seria uma solução similar à vigente no período da Guerra Fria, quando a subordinação ao campo “ocidental” se combinava com manutenção das estruturas internas de poder econômico e político. No presente, o antigo vocabulário da “segurança nacional” está sendo atualizado para o das “novas ameaças”.

66O terceiro cenário seria o da segmentação Norte Andino / Cone Sul, no qual o projeto regional da América do Sul ficaria limitado ao âmbito do Cone Sul, via MERCOSUL, enquanto o Norte Andino seria subsumido pelo complexo regional de segurança da América do Norte, mantendo uma relação com os Estados Unidos similar à da América Central e Caribe. Essa era hipótese colocada por Buzan e Waever em 2003, num cenário de recrudescimento da Guerra às Drogas no Norte Andino, mas significaria também o retorno ao Mediterrâneo Americano, que Spykman vislumbrava na década de 1940. As mudanças de cenário na década de 2000 colocam essa perspectiva de Buzan e Waever como improvável, porque a segmentação se orientou em outro sentido do cenário seguinte.

67O quarto cenário é a possibilidade de que a América do Sul se segmente entre Atlântico e Pacífico. Essa hipótese guarda a ideia de cisão do esquema anterior, mas a atualiza, levando em conta a entrada da Venezuela no MERCOSUL e sua dissociação do padrão de conflito do Norte Andino. Ao mesmo tempo, o alinhamento entre Chile, Peru, Colômbia e México na chamada Aliança do Pacífico reforça essa perspectiva de segmentação, explícita no próprio nome do bloco. A integração dos países da América do Pacífico se mantém ainda no campo dos interesses econômicos e da busca de oportunidades de negócios, o que reflete um corte ideológico mais liberal, comum aos governos que deram ensejo ao novo bloco.

68A questão que fica pendente é se as estratégias econômicas de cada segmento podem se refletir em concepções diferenciadas sobre a integração política e, particularmente, sobre a segurança regional. As mudanças de governo na Argentina, com Mauricio Macri, e no Brasil, com o fim do ciclo de governos petistas apontam para o arrefecimento de uma possível polarização, uma vez que o viés autonomista sul-americano centrado da vertente atlântica perde força, o que faria do “caminho do Pacífico” o principal atrator da dinâmica política sul-americana. Os quatro cenários não estão claramente definidos num horizonte próximo. Eles nos colocam é um campo de possibilidades e disputas, no qual a região possui um caráter estratégico na orientação e nos destinos dos países sul-americanos.

69O dilema da América do Sul passa pela política dos Estados Unidos para a América do Sul e pela emergência de novos centros de poder no mundo, como é o caso da China. A América do Sul não é uma área em que os Estados Unidos se veem ameaçados em face de uma ameaça extracontinental, nem tampouco de uma força autônoma emergente no projeto regional sul-americano. A política norte-americana não passa somente pela ação direta da coerção, mas passa pela atuação indireta, fragmentada e seletiva que habilita outros Estados (como a Colômbia) e, também de maneira segmentada, agentes estatais internos (relativamente autônomos ao controle político democrático) a agirem de acordo com seus parâmetros difundidos sobre o que é segurança.

70Não é preciso boots on the ground quando se pode exportar a lógica da segurança – embora os Estados Unidos não prescindam nem do boots on the ground, como as bases na Colômbia em 2009, nem do float on the sea, como na reativação da IV Frota, para que não reste dúvida sobre qual lógica da segurança deve ser assimilada.

71O Brasil oscila e é ambíguo em relação aos seus caminhos – o que pode também ser uma estratégia de distribuir suas fichas em várias casas, uma vez que não se tem clareza estratégica sobre o que fazer. Na década de 2000, o Brasil emitia sinais de que buscava uma América do Sul relativamente autônoma, processo que culminou em 2008 com a criação da UNASUL e do CDS. As limitações do projeto da América do Sul foram colocadas em evidência com os efeitos da crise de 2008, justamente no momento em que a construção regional atingia maturidade. O papel do Brasil como principal vértice da integração regional sul-americana fica comprometido quando o que se consolidam são os vínculos diretos extra-regionais de cada país por fora da mediação sul-americana – seja do ponto de vista político, com os Estados Unidos, seja do ponto de vista econômico, com a Ásia.

Qual a maior preocupação dos Estados Unidos na América Latina em relação a Guerra Fria?

A preocupação com a instabilidade regional no contexto do final da Guerra Fria está fortemente associada à ênfase dada pelas sucessivas administrações norte-americanas à não-proliferação de armas de destruição em massa. Essa preocupação se estende na disseminação das capacidades militares convencionais avançadas.

Qual era a preocupação dos Estados Unidos em relação à América Latina?

“Nos anos 1940, a preocupação central dos Estados Unidos em relação à América Latina, não era a influência soviética nos movimentos políticos, mas as posturas nacionalistas de alguns governos e os movimentos que divergiam da influência norte americana no tocante a uma política de afirmação nacional.”

Qual impacto A Guerra Fria teve na América Latina?

A repressão fora instituída nas suas mais diversas facetas, sendo a censura aos meios de imprensa oficializada e a tortura legitimada juridicamente. Exílios, prisões e desaparecimentos de perseguidos políticos também se fizeram cotidianos em países como Chile, Uruguai, Argentina, Bolívia e Brasil.

Como é a relação dos Estados Unidos com os países da América Latina?

Enquanto os países latino-americanos não buscavam territórios além de suas fronteiras, se envolvendo em alguns conflitos de litígio, os EUA tinham um projeto de expansão territorial por toda a América do Norte, tornando a diplomacia e as políticas públicas muito importantes para este empreendimento.