Que papel a Declaração dos direitos humanos exerce no controle da intolerância religiosa?

Introdução

  • 1 A secularização (saecularizatio) é um termo utilizado pelo Direito Canônico para designar a passage (...)
  • 2 A expressão laicidade foi utilizada no século XIX pelo conselho geral de Seine, na França, em defes (...)

1O modelo de democracia ocidental foi constituído influenciado pela ideia de que a modernização levaria à secularização,1 ou seja, a um declínio da influência da religião na sociedade mediante o seu deslocamento para a esfera privada, o que teria provocado o processo de laicização2 do Estado, entendido como a formação de uma esfera pública desvinculada de grupos religiosos e de um tratamento igualitário a todas as religiões, pressupondo, dentre outros aspectos, a separação entre as atividades realizadas pelo Estado e pela religião. Estudos sociológicos e antropológicos têm demonstrado que esta ideia não se realizou nem plenamente, nem de maneira uniforme, seja porque se observou o surgimento de movimentos de contrassecularização, seja porque a laicização se deu de formas variadas e com efeitos distintos nas sociedades, em especial, no que se refere às formas político-jurídicas de tratar a diversidade de manifestações religiosas no espaço público.

2Considerando que a laicidade é um processo político que se desenvolve a partir do Estado para delimitar seu afastamento em relação às religiões, torna-se relevante compreender como isso ocorre na prática, já que o fato de um Estado proclamar-se laico não significa o fim de conflitos entre Estado e religião, ao contrário, pode representar a explicitação de novas disputas, já que os cidadãos que professam alguma religião tendem a defender seus valores e interesses.

  • 3 A diferenciação da escrita de Estado com letra maiúscula será adotada quando se referir à sua atuaç (...)

3Partindo da premissa de que os antropólogos lidam com fatos etnográficos, pois o que se observa é selecionado e o relato é sempre uma interpretação de interpretações (Geertz, 1989), julgo ser necessário esclarecer que quando falo de Estado3 não estou me referindo a um fato social, ou à “ficção dos filosófos”, como dizia Radcliffe-Brown (1970), mas de uma categoria nativa, que se constitui a partir de um diálogo contínuo com dados empíricos.

4Desta forma, é possível pensar, tal como propõe Luís Roberto Cardoso de Oliveira (1996), que a noção de direitos é uma categoria relacional, cujo emprego supõe uma situação de interação que envolve pelo menos duas partes e um contexto determinado, de modo que os significados que lhe são atribuídos revelem diferentes valores e representações sobre a cidadania e a justiça.

  • 4 Os resultados aqui apresentados estão relacionados a dois projetos de pesquisa: “Combate à intolerâ (...)
  • 5 A esfera pública é entendida como o universo discursivo no qual ideias e normas são difundidas e su (...)
  • 6 Sobre a Comissão, ver Miranda & Goulart, 2009; Miranda, Mota & Pinto, 2010; Goulart, 2010.

5Este artigo apresenta algumas reflexões sobre procedimentos policiais e judiciais referentes a casos de intolerânciareligiosa, analisados a partir de pesquisas etnográfícas4 voltadas à análise de práticas de administração institucional de conflitos em situações de controvérsias relacionadas às diferenças identitárias étnico-religiosas em espaços públicos do Rio de Janeiro.A análise tem como foco o debate sobre os efeitos ocasionados por demandas de direitos, de justiça e reconhecimento por parte dos atores envolvidos em conflitos na esfera pública e no espaço público5 (Habermas, 1993; Cardoso de Oliveira, 2008). O objetivo é compreender o tratamento dado a esses conflitos pelas instituições públicas e a maneira como os dispositivos jurídicos e normativos são aplicados e apropriados em contextos distintos. Ressalta-se que a pesquisa não tem como objeto o estudo das religiões, mas sim a manifestação de conflitos de natureza étnico-religiosa no espaço público, a partir do ano de 2008, quando casos de intolerância religiosase tornaram públicos no Rio de Janeiro, envolvendo integrantes de religiões evangélicas neopentecostais e afro-brasileiras, suscitando a constituição de uma Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR),6 composta por membros de organizações religiosas, do movimento negro e de organizações não-governamentais, que tem estimulado as vítimas a apresentarem demandas judiciais por reconhecimento de seus direitos, como veremos adiante.

A liberdade e a intolerância religiosa: os dois lados do conflito

6A consagração da liberdade religiosa como um direito civil básico relacionada à liberdade de expressão, no mundo ocidental, é muitas vezes associada à obra de John Locke, para quem o “problema da intolerância” resultava da confusão entre os domínios civil e religioso. Em seu livro Cartaarespeitodatolerância,de 1689, Locke estabeleceu as bases para o princípio da laicidade do Estado ao indagar “até onde se estende o dever de tolerância, e o que se exige de cada um por este dever?” (1964:17), e afirmar que “pessoa alguma tem o direito de prejudicar de qualquer maneira a outrem nos seus direitos civis por ser de outra igreja ou religião” (1964:18). Deste modo, propôs que a força política do Estado somente deveria intervir no funcionamento ou regulamentar os cultos quando estes se revelassem atentatórios ao direito das pessoas ou ao funcionamento da sociedade. Revela-se, portanto, que o princípio organizador dos direitos civis e da cidadania era a igualdade de todos perante a lei e, especialmente, perante os tribunais (Marshall, 1967; Carvalho, 2001).

7Apesar de a expressão liberdade religiosa ser utilizada para exprimir o que seria o primeiro direito civil reconhecido pelas democracias ocidentais, ressalto que a categoria tolerânciase mostra mais adequada para descrever, no caso do Rio de Janeiro, a expressão de diferenças identitárias étnico-religiosas e seus reclamos por direitos de cidadania diante das instituições representativas do Estado. Isto porque, ao contrário da ideia de liberdade que pressupõe indivíduos em condições de igualdade, a tolerânciaexpressa a percepção de que o “outro” está numa relação assimétrica. Tolerar é uma palavra que significa levar e suportar, mas também significa destruir e combater. “Assim, a ideia de guerra e de esforço subjazem à noção de tolerância” (Sahel, 1993:12). Portanto, a tolerânciarepresenta apenas uma concordância provisória em face de um conflito iminente relacionado a manifestações de situações de intolerância em contextos anteriores, sem que, no entanto, isto represente uma alteração das preferências subjetivas, mediante a conversão ou o reconhecimento legítimo da diferença, a partir da compreensão da alteridade.

  • 7 O próprio Locke deixa claro como é difícil lidar com o tema na prática. Na Carta, ele afirmou que n (...)

8Se a aspiração de um grupo a ter sua diferença reconhecida muitas vezes pode estar relacionada a uma opressão sofrida no passado e/ou no presente, tolerar a fé de outrem significa uma atitude política, pois corresponderia à garantia de interesses particulares, sem que isso leve necessariamente a uma definição do respeito ao bempúblico, o que para Locke7 deveria ser a medida de toda a legislação. A tolerânciapermite, portanto, explicitar a tensão entre a identidade e a diversidade, em especial, em contextos sociais marcados pela desigualdade.

  • 8 A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, estabelecia em seu artigo 5, (...)
  • 9 A criminalização é entendida como um processo social que supõe uma interligação entre a reação mora (...)
  • 10 Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para (...)
  • 11 Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a (...)

9No caso do Brasil, é preciso mencionar que, embora nosso país tenha adotado a forma político-jurídica republicana, as instituições do Estado funcionaram, e ainda funcionam, por meio de representações e práticas próprias dos princípios jurídicos que estruturam sociedades de cunho piramidal, marcadas por um modelo de hierarquia em que a desigualdade é a medida da liberdade (Kant de Lima, 2008). Assim, a afirmação constitucional da igualdade de todos perante a lei coexistiu, e ainda o faz, com regras jurídicas na esfera pública e com um espaço público onde a desigualdade e a hierarquia são princípios organizadores de grande parte das interações sociais. Esse paradoxo entre a igualdade/desigualdade formal e a hierarquia social reflete-se, de forma paradigmática, nos mecanismos de administração de conflitos no espaço público (Kant de Lima, 2000; Mendes, 2004). Nesse sentido, quando se fala da separação oficial entre o Estado e a Igreja Católica écomum a referênciaà promulgação da primeira Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, que aboliu a religião oficial no país, ao afirmar que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum” (§ 3º do art. 72, Seção II – Declaração de Direitos).8 Porém, deve-se lembrar que o primeiro marco legal republicano que entrou em vigor foi o Código Penal, de 11 de outubro de 1890, no qual estava prevista a criminalização9de algumas práticas não classificadas como “religiosas”,10 mas que eram associadas aos crimes contra a saúde pública e ao exercício ilegal da medicina.11 A definição de crimes e suas penas antes do estabelecimento dos direitos é revelador do “papel político destinado ao processo penal” (Kant de Lima, 2008:127), o que permite apontar distintas concepções de ordem pública e social que determinam as escolhas feitas nas diferentes instituições para implantar estratégias de controle social e administração de conflitos em público. Ao reprimir as práticas que não se enquadravam na concepção de religião vigente, com direito à proteção legal, torna-se explícita uma distinção entre o statusconcedido a uma parte da população e a outro segmento, cujas tradições, por não seguirem a matriz cristã, não teriam direito à liberdade de expressão, podendo ser criminalizadas.

  • 12 Para Misse, a normalização corresponde à “dinâmica de produção da sociabilidade entre sujeitos soci (...)

10Assim, a laicização foi sendo instituída a partir da proclamação da República mediante a atuação das instituições do chamado sistema de justiça criminal,vinculando-se, de forma direta, com a regulação dos direitos civis, seja pelas atribuições de controle e repressão das polícias, seja pela imposição de moralidades no tratamento dos casos e das pessoas envolvidas por parte do judiciário. Cabe ressaltar que a forma discriminatória da intervenção policial e da administração da justiça no processo de normalização12de comportamentos dos imigrantes e de ex-escravos e seus descendentes expressava uma pretensão “educativa”, pretensamente formadora de civilidades, mas que funcionava como um processo de negação da alteridade, já que a expressão das relações de força do Estado não considerava a possibilidade de haver resistência ou reação, o que significa a rejeição do conflito como elemento de produção de consensos e disputa por direitos (Misse,1999). A afirmação da liberdade de crença e da igualdade de todos perante a lei no art.

1172 da primeira Constituição republicana se deu num contexto de manutenção de regras jurídicas, orientadas pelos princípios de desigualdade jurídica e hierarquia, que continuaram norteando as interações sociais e institucionais. Este paradoxo entre a igualdade/desigualdade formal e a hierarquia social refletiu-se, de forma paradigmática, nos mecanismos de administração de conflitos no espaço público no Brasil (Kant de Lima, 2000). Como demonstra Yvonne Maggie no livro MedodoFeitiço(1992), os processos são instrumentos bons para pensar a regulamentação da acusação e do aprisionamento dos feiticeirose, como processos inquisitoriais, socializadores de práticas individualizantes e particularizantes, o foco não é a crença,“mas pessoas específicas que praticamomal” (Maggie, 1992:31 – grifo no original).

12A análise dos processos contra os acusados de praticarem ilegalmente a medicina ou o curandeirismo no início do século XX pôs em cheque a hipótese de que a repressão à religião dos escravos teria produzido uma nova religião, hipótese que era compartilhada pela literatura sociológica clássica, tal como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Roger Bastide, dentre outros, e que é validada ainda hoje por religiosos. A autora explica que os mecanismos reguladores criados pela República foram fundamentais para a conquista do statusde religião. Ao atuar de forma seletiva na identificação dos feiticeiros, delimitou a magia maléfica e a magia benéfica, o que serviu para colocar alguns cultos fora do alcance da polícia e da Justiça.

13É possível afirmar, portanto, que o processo de laicização no Brasil, diferentemente de outros lugares, não teve como consequência a transferência da religião da esfera pública para a esfera doméstica. A República, no que se refere ao processo de separação entre Igreja e Estado, produziu inicialmente um retraimento do catolicismo, a partir de um intenso conflito em torno da autonomia de manifestações culturais de matriz não-cristã que buscavam expressar-se de forma legítima publicamente (Montero, 2006). Se, num primeiro momento, a manifestação daquilo que era chamado de feitiçaria, curandeirismoe batuquesfoi criminalizada, posteriormente abriu-se a possibilidade de seu reconhecimento como religiões institucionalizadas, o que possibilitou mais tarde a descriminalizaçãodas religiões de matriz afro em nome do direito à liberdade de culto.

  • 13 No preâmbulo da Constituição de 1934 está escrito: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pond (...)

14Nesse sentido, a regulação de um espaço religioso no Brasil se deu formalmente vinculada a um arranjo liberal, segundo o qual o Estado não teria vínculos oficiais e formais com nenhuma religião, o que permitiria autonomia de criação e funcionamento de práticas religiosas. Porém, na prática, esse período correspondeu a uma série de controvérsias que questionaram o estatuto religioso de certos grupos, os quais passaram a depender de dispositivos específicos de regulação, em especial, as intervenções policiais e judiciais, bem como as abordagens intelectuais e jornalísticas (Giumbelli, 2003). Há que salientar também que o processo de laicização passou por idas e vindas do ponto de vista legal, já que a Constituição de 193413 introduziu o princípio da “colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” (art. 17, inciso III) entre Estado e Igreja (católica), que foi reafirmado posteriormente pela Constituição de 1946. O princípio da colaboração recíproca está relacionado ao estabelecimento de cooperação entre as partes e à regulação de comportamentos pautados no dever de proteção e auxílio, que se diferencia da ideia de subvenção, forma de auxílio financeiro pago por governos que pode servir para fomentar atividades de uma instituição religiosa, muitas vezes em detrimento de outras. Deste modo, a liberdade religiosa no Brasil foi sendo constituída num cenário em que se distinguiam quais religiões teriam direito à proteção legal e quais eram práticas consideradas antissociais, devendo ser perseguidas. Outra característica importante desse processo foi a separação dos atos civis dos atos religiosos católicos (matrimônio, batismo, sepultamento, educação), originando uma disputa em torno de privilégios legais que, até então, beneficiavam exclusivamente a Igreja Católica. Consequentemente, o debate político girou em torno de qual liberdade a Igreja Católica desfrutaria, em especial no que se refere à sua autonomia jurídica e de outras associações religiosas, e não à possibilidade de expressão de cultos diversos (Giumbelli, 2002).

  • 14 Nesse momento surgiu no Rio de Janeiro a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificação, voltada à repr (...)

15O período de intensificação das práticas repressivas dirigidas aos grupos de matriz afro se deu durante o Estado Novo,14 quando esses cultos foram associados à prática de crimes e ao uso de drogas. Pode-se concluir, portanto, que a ideia da liberdade religiosa como forma de manifestação da diversidade de cultos e liberdade de expressão não foi a base do Estado brasileiro, mas seu produto, em função das reações sociais aos mecanismos estatais que reforçaram durante muito tempo a ligação entre a discriminação étnica e a perseguição religiosa (Vogel, Mello & Barros, 1998).

16É possível identificar ainda que as controvérsias a respeito da construção da identidade nacional brasileira nos primeiros períodos da história republicana teve como resultado uma consagração da “fábula das três raças” (DaMatta, 1998), como uma ideologia inscrita nas relações sociais, o que por sua vez ensejou a constituição de uma visão hierárquica e complementar entre as unidades raciais, étnicas e religiosas que compunham a sociedade brasileira.A ideia da existência de um credo ou de uma raça superior resultou na produção de uma compreensão verticalizada e piramidal relativa ao mundo público – no topo as religiões de matriz europeia e na base as religiões de matrizes africanas ou indígenas – destinando direitos e garantias particularizadas a estas instituições, ora reconhecendo-as de forma desigual como parte constitutiva da identidade nacional, ora recusando-as ou criminalizando-as na esfera pública e no espaço público.

  • 15 Recentemente, houve um debate judicial, no Rio de Janeiro, acerca da permanência ou não de crucifix (...)

17Do mesmo modo, essa concepção hierárquica e desigual a respeito da construção de um espaço público laico permitiu que no Brasil se constituísse uma arena pública, na qual as regras de acesso aos bens disponibilizados pelo Estado não são gerenciadas de forma universalista e igualitária para todos os credos. Tal situação gerou uma espécie de dissonância entre as regras impessoais e universais impostas pela esfera pública e os princípios hierárquicos, desiguais e personalistas presentes na esfera e no espaço público brasileiros. De fato, a inexistência de um princípio universalista e de tratamento igual e uniforme que abrangesse todos os sistemas religiosos inviabilizou o pleno reconhecimento dos direitos de certas matrizes religiosas, promovendo o acesso particularizado e desigual de determinadas religiões ao espaço público brasileiro, como se um sistema religioso fosse mais legítimo que o outro, por esta razão seus símbolos podendo ser apresentados e ostentados no mundo público.15 Tal concepção produz consequências para a administração institucional dos conflitos por parte dos agentes do Estado, como discutiremos mais à frente.

18Ademais, uma compreensão homóloga à “fábula das três raças” desempenhou um importante papel na produção dessa compreensão sobre a “tolerância religiosa” no Brasil: o mito da democracia racial e do sincretismo religioso. Tais premissas partilhavam da ideia da ausência de conflito e da presença de harmonia existente entre partes opostas, porém complementares e hierarquicamente dispostas no espaço público. Nesse sentido, elas terminaram reforçando a ideologia da “fábula das três raças”, que pressupunha a recusa dos conflitos e das diferenças existentes entre os grupos raciais, étnicos e religiosos que compõem a sociedade nacional. Portanto, a Nação una e indivisível deveria prevalecer sobre as formas culturais e religiosas particulares, permitindo a difusão da ideia de que no Brasil não existe a prática de racismo ou de intolerânciareligiosadevido à nossa miscigenação, ao sincretismo e à nossa cordialidade.

A intolerânciareligiosae a construção de uma agenda de reivindicações no Rio de Janeiro

  • 16 O termo ataque está sendo utilizado porque representa a forma pela qual as investidas públicas de n (...)

19O debate contemporâneo no Rio de Janeiro sobre a separação entre as esferas religiosa e política foi retomado há cerca de dois anos, quando alguns conflitos entre grupos evangélicos neopentecostais e religiosos de matriz afro-brasileira ganharam repercussão na mídia, chamados de intolerânciareligiosa. O acirramento desses conflitos levou religiosos de matriz afro-brasileira a organizarem uma Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), em março de 2008, quando traficantes neopentecostais, no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, expulsaram casas de umbanda e candomblé do local. Foram noticiados na imprensa vários ataques16 aos templos, o que provocou a indignação e a mobilização de candomblecistas e umbandistas, levando-os a organizar uma manifestação pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). De acordo com um dos seus membros, a formação da Comissão tinha como objetivo combater o “preconceito religioso”, lançando mão dos instrumentos legais com vistas ao cumprimento da Constituição no que diz respeito à liberdade de credo.

  • 17 Uma das atividades realizadas pela CCIR foi a produção do Relatório de Casos Assistidos e Monitorad (...)

20A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa acusou, na época, as Igrejas neopentecostais, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de atentarem contra a liberdade religiosa, ameaçarem a democracia e de estarem “enterrando a possibilidade de as comunidades de terreiro, estabelecidas nas favelas e comunidades carentes, garantirem o mínimo de dignidade em sua prática religiosa que a Constituição Federal lhes faculta”.17 Segundo representantes da Comissão, membros dessas igrejas perseguem, ameaçam, agridem e demonizam as “religiões de matriz africana” e também outras religiões.

21A intolerânciareligiosaapareceu nos discursos dos religiosos que participam da Comissão como anteposta à liberdade religiosa, representando um desafio ao convívio numa sociedade plural. As formas de manifestação da intolerânciaseriam variáveis, indo de atitudes preconceituosas, passando por ofensas à liberdade de expressão da fé, até as manifestações de força contra minorias religiosas. De todo modo, as muitas práticas de intolerânciareligiosasão identificadas como demonstrações de falta de respeito às diferenças e às liberdades individuais e que, devido à ausência de conhecimento e de informação, podem levar a atos de perseguição religiosa, cujo alvo seria a coletividade.

22A proposta da Comissão é combater a intolerânciareligiosa, relacionando assim as suas manifestações ao fascismo e aos atos antidemocráticos. Segundo a Comissão, a proposta não é a de iniciar uma “guerra santa”, mas lutar pela possibilidade de optar por uma crença, ou optar por não crer, e não ser desrespeitado ou perseguido por isso. Assim, faz parte dos debates na Comissão a defesa da liberdadereligiosaassociada à liberdade de expressão, como forma de mobilizar mesmo as pessoas que não são religiosas: a reivindicação é pelo “direito de acreditar e de não acreditar”.

23Ressalta-se que na agenda estabelecida pelo grupo “lutar contra a intolerância” e “defender a liberdade” religiosa são ações correspondentes, e não há uma distinção clara entre elas no plano do discurso. Porém, durante o trabalho de campo, tem sido possível observar que os integrantes da Comissão defendem o “combate à intolerância”, entendido como a realização de atos públicos que demonstrem que “todas as religiões são uma só”, que devem conviver harmonicamente, e a divulgação da necessidade de realização de registros de ocorrências em delegacias para a proposição de ações judiciais.

24A Comissão tem buscado dar visibilidade às suas demandas, das quais destaco o desejo de construção de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa; a aplicação efetiva da Lei 10.639/03 em todas as escolas do Brasil, que introduziu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, estabelecendo punições àquelas que não se enquadrarem imediatamente; a realização do censo nacional das casas de religião de matriz africana, através das Secretarias Especiais de Inclusão Racial e Direitos Humanos e do Ministério de Assistência Social, em parceria com universidades em cada estado; e a criação de uma delegacia especializada em crimes étnicos e raciais, tal como existe em São Paulo.

25Para dar divulgação a esta agenda, a Comissão tem promovido uma interlocução com a mídia para enfatizar a relevância do tema, o que é feito pela Coordenação de Comunicação, que vem estabelecendo um diálogo com setores da sociedade civil e do Estado. Este diálogo tem sido fundamental para a repercussão do tema da intolerância e da própria CCIR, sendo realizado de diferentes maneiras. A estratégia de comunicação utilizada pela Comissão tem o objetivo de tornar públicas as questões referentes aos temas da liberdade e da intolerância religiosa, particularmente no cenário do Rio de Janeiro, buscando agregar distintos atores e instituições sociais como novos aliados.

26O evento mais importante promovido pela Comissão, que se tornou um marco de seu trabalho, tem sido a “Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa”. Trata-se de uma manifestação realizada na orla da praia de Copacabana, local escolhido por proporcionar maior visibilidade ao evento, na qual milhares de pessoas levam cartazes e faixas com suas reivindicações por reconhecimento de direitos.

27Dentre suas atividades regulares, está a realização de reuniões semanais na sede da Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB), localizada no bairro do Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, para o recebimento de denúncias de casos de intolerânciareligiosaque são encaminhadas ao poder público. Participam da reunião os integrantes da Comissão, convidados e vítimas, mas merece destaque o fato de que há dois integrantes da Comissão que são representantes do sistema dejustiçacriminal: um delegado da Polícia Civil, cuja participação é vista como uma significativa contribuição no sentido de discutir junto à Polícia Civil o valor do registro das ocorrências relativas aos casos de intolerânciareligiosa,já que o próprio delegado relata as resistências que os policiais têm em reconhecer a “importância do problema”, o que faz com que muitas vezes as ocorrências sejam “bicadas”, ou seja, a vítimaseja convencida a não registrar; e um promotor do Ministério Público Estadual, integrante da Sub-Procuradoria-Geral de Direitos Humanos e Terceiro Setor, que defende a investigação pelo Ministério Público de casos emblemáticos como uma forma de reduzir a impunidade vigente no país, mas que pensa que a “luta” contra a intolerânciareligiosanão pode ser apenas jurídica, mas sim de conscientização popular.

  • 18 É um ato que tanto pode ter caráter subjetivo, que cumpre uma função de autorregulação, quanto uma (...)
  • 19 A categoria “sujeição criminal” possibilita problematizar a capacidade do “poder de definição da in (...)

28Partindo da premissa de que a acusação social18 (Misse, 1999:56) permite retirar o conflito da intimidade para conquistar a esfera pública, revelando um modo de operar poderes nas relações sociais para atingir direta, ou indiretamente, os cursos de ação criminalizáveis, pretende-se discutir como a Comissão tem atuado no sentido de combater a intolerância. No entanto, é preciso antes distinguir conceitualmente a acusaçãoda incriminação, conforme proposto por Michel Misse (1999), iniciando pelo fato de que a última retoma a “letra da lei” para jogar com a ambivalência dos interesses entre o acusador e o acusado.A incriminaçãoé, portanto, um controle de acusaçõessociaisrealizado pelos dispositivos que neutralizamos operadores de poder previstos em lei (flagrantes, indícios materiais, testemunhos, reconstituições técnicas e atuações nos tribunais) durante as interações acusatórias, de modo que representantes do acusado, do Estado e da sociedade recriem dramaticamente o conflito com vistas a construir a sujeiçãocriminal.19 Desta forma, é possível afirmar que os dispositivos utilizados nos ritos judiciais não produzem a incriminação das transgressões, mas sim de indivíduos. Para isso, é preciso que a polícia interprete o evento como uma transgressão à lei e o crimine, retirando-o da condição de ofensa moral, e o leve para a condição de transgressão à lei, por meio de dispositivos estatais de criminação, que iniciarão o processo de incriminaçãopela construção de um sujeito-autore seu indiciamento.

  • 20 Caó é o apelido do ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira, do PDT-RJ, que integrou a Assembleia Nac (...)
  • 21 Referem-se à Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que foi subscrita durante a Conferênci (...)

29É com a intenção de trazer para a esfera pública para identificar qual é o objeto da transgressão e quem são os transgressores que a Comissão realiza suas reuniões todas as quartas-feiras. Frequentemente, em tais reuniões, aparecem algumas pessoas, na maioria praticantes do candomblé e da umbanda, mas há casos envolvendo católicos e muçulmanos que declaram ter sido vítimasde intolerânciareligiosa. Contam publicamente suas histórias, que podem ser comentadas por todos os presentes, mas que são avaliadas pela Comissão para “identificar”, sem que fiquem muito explícitos os critérios adotados, se o caso se trata ou não de uma manifestação de intolerânciareligiosa.Embora esses critérios não sejam muito claros, é comum observar em eventos públicos promovidos pela Comissão (debates, entrevistas à mídia etc.) que a sua “luta” é considerada uma ação “constitucional em defesa da democracia”, baseada na defesa da aplicação das leis brasileiras, especialmente, a Lei Caó,20 e de tratados internacionais assinados pelo governo brasileiro, mencionando-se geralmente o Pacto de San José da Costa Rica.21

30É importante ressaltar que o debate dos casos é o ponto alto da reunião, quando se discutem o significado dos atos a que a vítimafoi submetida e a sua possibilidade de enquadramento legal. Depois, a vítimaé orientada sobre como proceder e, geralmente, o procedimento inicial é o de realizar um registro na própria Comissão, bem como o encaminhamento para a confecção de um registro de ocorrência na delegacia próxima ao local em que o fato ocorreu.

31O espaço da reunião também é utilizado por pessoas que já possuem um registro de ocorrência, mas que não concordaram com a tipificação dada pela Polícia Civil ou estão insatisfeitas com o atendimento recebido. Nessas circunstâncias, a Comissão também avalia se o caso se trata de uma intolerânciareligiosa, e passa a buscar uma nova tipificação mediante a intervenção do delegado, que tenta “sensibilizar” os outros delegados por meio de conversas informais, “para não afrontar sua autoridade”, e propor a “tipificação correta”:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa (apudSilva, 2009).

32De acordo com o delegado, a Lei Caó, apesar de ser um instrumento legal apropriado, ainda sofre forte resistência entre os policiais. Para ele, a lei teria marcado uma época, referindo-se explicitamente a um posicionamento do Estado em relação à discriminação racial, sem criticar diretamente, no entanto, a atuação do ex-governador Leonel Brizola, que foi o primeiro a propor a introdução de princípios democráticos para regular os procedimentos policiais, o que foi mal recebido no interior das instituições policiais. Até hoje é comum se ouvir que “os direitos humanos” atrapalham a atuação policial. O delegado também chama a atenção para o fato de que “a discriminação é um problema que resiste, persiste...”, pois é um problema que igualmente está presente na sociedade, não sendo exclusivo dos policiais.

33Para ter uma melhor compreensão de como os casos de intolerância religiosasão apresentados no âmbito da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, temos analisado como as formas tradicionais de administração institucional de conflitos por órgãos públicos, em especial a polícia civil e o judiciário, têm atuado no recebimento e no tratamento dessas queixas.

  • 22 É uma organização não-governamental de direitos humanos, que tem entre seus programas um voltado ao (...)

34Como não seria muito produtivo ficar aguardando aleatoriamente assistir a um registro de ocorrência de intolerânciareligiosana polícia, optamos por acompanhar as atividades da Comissão, em que sempre aparecem informações sobre casos novos, o que tem possibilitado à equipe ir às delegacias e às audiências, bem como permitiu que identificássemos até janeiro deste ano 36 casos de intolerânciareligiosacontabilizados pela Comissão, dos quais somente foi possível localizar informações sobre 32 deles. A partir daí iniciamos um levantamento das informações oficiais existentes,e nelas buscamos os registros de ocorrências policiais e processos judiciais referentes ao período de junho de 2008 a janeiro de 2010, que se referia ao tempo de existência da Comissão. Para tanto, foram consultados os arquivos do Projeto Legal,22 as atas das reuniões da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, os processos localizados no Ministério Público e os registros da Polícia Civil, a partir de consulta formal ao Instituto de Segurança Pública, que possui acesso aos bancos de dados da instituição e que identificou 17 registros de ocorrências policiais na cidade do Rio de Janeiro e 14 nos demais municípios do estado do Rio de Janeiro. Todos os casos acompanhados pela CCIR e classificados como intolerânciareligiosa foram encaminhados, seja para o registro de uma ocorrência na delegacia, seja para uma denúncia no Ministério Público (MP), ou ainda para o início de processos cíveis, como em casos de ação por danos morais.Alguns casos foram acompanhados juridicamente pela CCIR a partir da parceria com a ONG Projeto Legal, como o caso do Centro Cruz de Oxalá, um templo de umbanda depredado no bairro do Catete, que funcionava há 80 anos na zona sul do Rio, por quatro evangélicos que foram detidos em flagrante. O caso teve grande repercussão na mídia porque posteriormente levou à prisão do pastor Tupirani, da Igreja Geração Jesus Cristo, situada no Morro do Pinto, zona portuária do Rio, e de Afonso Henrique Alves Lobato, que frequenta a mesma igreja, pois os dois haviam colocados na internet (Youtube) vídeos com “ataques” aos pais-de-santo, questionavam a legalidade e a legitimidade do Estado e das autoridades policiais e judiciais, fazendo a defesa do lema “Bíblia sim, Constituição não!”, e teriam uma postura irônica em relação à Lei Caó, chamada de Lei “Caô”, que corresponde a uma gíria carioca que significa mentira. A Comissão atua, portanto, numa intermediação entre as vítimase o Estado, motivada por interesses de intervir no processo, o que é considerado fundamental tendo em vista que, na maior parte dos casos, se a vítimavai direto à delegacia, não é atendida adequadamente, ou mesmo não é atendida, já que os policiais consideram que este tipo de conflito é algo de “menor importância”. Assim, ir à delegacia acompanhada por um advogado representa outro tipo de atendimento, pelo menos se tem a certeza de que o registro será realizado, o que é necessário para se dar início a um procedimento judicial. É possível compreender não só a desconfiança que muitas vezes as vítimasmanifestam em relação a esses órgãos, como também tem sido possível identificar problemas no atendimento e no acompanhamento dos casos, que demonstram como os policiais tendem a minimizar a intolerânciareligiosa, tratando-a como um problema de “menor importância”, ou de acordo com as categorias policiais, uma “feijoada” (Giuliane, 2008), como veremos adiante.

35O Registro de Ocorrência é um documento importante, pois é o documento básico destinado à anotação dos fatos considerados crimes ou contravenções penais, ou de outros fatos que chegam ao conhecimento da polícia. Esta primeira representação institucional do conflito precede a abertura do inquérito policial. Assim, as informações que constam no registro deveriam orientar a investigação subsequente, de modo a serem complementadas, confirmadas ou refutadas no decorrer da investigação policial (Miranda & Dirk, 2010).

  • 23 Na prática, muitas vezes, quem confere titulação ao registro de ocorrência é o agente policial e nã (...)
  • 24 A classificação policial de um registro é provisória, uma vez que pode ser alterada no decorrer do (...)

36Formalmente, o delegado de polícia deveria iniciar um inquérito sempre que algum indício de crime chegasse ao seu conhecimento. Ele é a autoridade competente para conduzir o inquérito e realizar a classificação legal do fato, ou seja, realizar a titulação do registro de ocorrência.23Do mesmo modo, somente ele poderia mudá-lo em caso posterior de registro de aditamento, que pode ocorrer quando há troca de titulação ou retificação/inserção de outras informações. Vale lembrar que o registro de ocorrência é a primeira descrição do fato e, na medida em que outras informações são incorporadas na fase do inquérito policial, podem ser necessárias mudanças ou acréscimos em algumas partes do mesmo. Dessa maneira, é produzido um registro de aditamento, que deverá ser anexado ao registro de ocorrência original.24

37As informações constantes no registro de ocorrência variam muito, pelo menos no estado do Rio de Janeiro, em função do tipo de crime, da área onde ocorreu o registro, da equipe de policiais que atua na delegacia e da disponibilidade de equipamentos e insumos para a realização do trabalho. Em resumo, o registro de ocorrência é uma peça fundamental, já que sem ele o evento não ocorreu para a Polícia Civil.

38Segundo Roberto Kant de Lima, as autoridades policiais só instauram o inquérito quando se convencem de que o fato apresentado é realmente um crime. Nesse sentido, o registro da ocorrência policial depende da “vontade policial, vontade nem sempre exercida em estrita obediência à lei” (1995:48). Para ele, embora os policiais afirmassem que a seletividade representava uma forma de “poupar papel e trabalho”, tal ato indicava a preocupação em apresentar uma baixa estatística de casos não-resolvidos.

39Nos casos observados, foi possível notar que o inquérito só “andava” quando a Comissão e o delegado que dela faz parte ficavam acompanhando o caso. Outro fator que influenciava a movimentação do inquérito era quando o caso tinha cobertura da mídia, o que o transformava em um casoderepercussão, exigindo dos policiais uma atenção especial.

  • 25 Trata-se de um caso em que a vítima relatou que o ato de intolerância religiosa ocorrera quando o s (...)

40Dos 32 casos analisados, seis foram tipificados pela Polícia Civil, segundo a Lei Caó, como “preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, mas só estavam disponíveis os registros de ocorrência; a explicação oficial era que ainda se estava “em fase investigativa”. Apenas um dos casos já teria sido encaminhado à Justiça e o processo foi arquivado pelo juiz por falta de provas.25

41Outros dois casos também foram classificados como crimes graves, a saber, tortura e sequestro ou tentativa de cárcere privado. Os demais foram tipificados como crimes de “menor potencial ofensivo”: calúnia; injúria; difamação; ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo; ameaça; lesão corporal; dano; maus tratos; perturbação de trabalho ou sossego alheio.

42É preciso esclarecer que a maior parte dos integrantes da Comissão tem clareza de que a demanda por reconhecimento de direitos não se esgota no registro de ocorrência policial. É possível observar diversas manifestações que expressam que o reconhecimento legal não é considerado suficiente para lidar com os ataques, já que não dá conta da dimensão do insulto moral (Cardoso de Oliveira, 2002:31), ou seja, reconhece-se que as agressões sofridas não são facilmente definidas pela linguagem tradicional do direito e tampouco exprimem o ressentimento e os sentimentos das vítimas. Porém, é possível constatar que o encaminhamento dos conflitos ao Judiciário é uma demonstração de desconfiança quanto à possibilidade de autorregulação entre as pessoas em função de suas vinculações religiosas e, consequentemente, por seus interesses manifestamente opostos, o que está associado à visão de que a autoridade do juiz pode representar um elemento fundamental no reconhecimento de direitos.

  • 26 O JECrim é legalmente baseado nos princípios da oralidade, simplicidade e informalidade, celeridade (...)
  • 27 Na primeira fase temos uma audiência preliminar, chamada também de audiência de conciliação. Nesta (...)

43Nos casos encaminhados para o Juizado Especial Criminal (JECrim),26 por serem considerados crimes de menor potencial ofensivo, foi possível acompanharmos a fase de conciliação,27 das quais destaco como exemplos quatro casos de ameaça, que são os mais comuns nas audiências de conciliação, para demonstrar como estes conflitos são tratados:

44Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, julho de 2010: Estavam presentes o conciliador, a vítimae sua advogada, que chegou em cima da hora e não sabia muito sobre o caso. Nesse dia, outra advogada que estava no Juizado para tratar de outro caso, mas era amiga da vítima, também entrou na audiência para ajudá-lo, o que causou certo tumulto, pois ela dava opinião de novas ações que a vítimapoderia entrar contra o autor do fato, que não compareceu, e por isso a audiência não aconteceu. No final, o conciliador falou para a vítima, insinuando que ela desistisse do processo: “A ameaça aconteceu em 2008 e já estamos em 2010 e nada aconteceu com você...”. Ao que a vítimaretrucou que preferia continuar com o processo, respondendo ao conciliador que tinha sofrido de depressão devido à ameaça sofrida. Desde então, o processo está parado no Ministério Público.

45Cascadura, zona norte do Rio de Janeiro, agosto de 2010: Estavam presentes a conciliadora, o autor do fato e a vítima. Nenhuma das partes estava acompanhada por advogados, e também não compareceram os representantes do Ministério Público e da Defensoria, como prevê a lei 9.099/95.A conciliadora deixou a vítima contar a sua versão do fato, depois passou a palavra para o acusado, que contradisse totalmente a história, ocasionando uma discussão entre os dois, que logo foi interrompida pela conciliadora que fala: “Pelo visto não teremos conciliação”, o que é prontamente confirmado pela vítima, que não aceita a conciliação. A conciliadora explica os trâmites formais que o processo terá, lavraos autosdo processo e diz que será marcada outra audiência em breve.

  1. Cascadura, zona norte do Rio de Janeiro, agosto de 2010: O conciliador chama as partes, porém só o autor do fato comparece. O conciliador lê o resumo do caso e autoriza que o acusado conte a sua versão do fato, que diz que a vítima já tinha dito a ele que não iria comparecer à audiência, tendo em vista que tudo já estava resolvido entre eles. O conciliador explica que só a vítima pode desistir do processo e que ela deveria ir ao cartório para fazer isto ou esperar uma próxima audiência e dizer isto. Então, o conciliador aconselha o acusado a telefonar para a vítima e explicar isto a ela. O conciliador encerra a audiência.

  2. Centro do Rio de Janeiro, dezembro de 2009: Estavam presentes o conciliador, uma assistente e o autor do fato, que foi acompanhado por seus pais. A vítima não compareceu. O conciliador apenas constatou que a vítima não tinha aparecido, lavrou os autos do processo e deu por encerrada a audiência, que não durou nem cinco minutos. Neste caso, o conciliador não falou absolutamente nada com o autor do fato.

46Foi possível observar que as audiências de conciliação foram todas presididas unicamente pelo conciliador, e que a presença, ou a ausência, do advogado não fez diferença, pois o objetivo dos conciliadores não era discutir a pertinência de uma demanda por direito, mas estimular que as partes fizessem um acordo e acabassem com o conflito. Quando isto não acontece, os conciliadores cuidam dos procedimentos burocráticos, terminam a audiência transferindo o conflito para a próxima fase, a audiência de transação penal, quando o comum é que o promotor apenas ofereça as possibilidades de negociar entre a multa e a pena restritiva de direitos, o valor da pena e sua forma de execução.Apesar de isto já ter sido relatado em outras pesquisas, é importante ressaltar que observamos que os procedimentos no JECrim acontecem de forma bem distinta do que a prevista em lei, o que não pode ser interpretado como um desvio da norma, mas sim como a existência de um universo paralelo de procedimentos que se desenvolve a partir da prática, o que faz com que o conflito continue sendo ignorado pelo judiciário.

47É importante salientar que nas audiências de conciliação, os acusados muitas vezes não compareceram, seja porque alguns ainda não foram identificados, seja por não terem sido encontrados para o recebimento da notificação.

48A audiência de conciliação acabou funcionando apenas como mais um rito formal, em que o conciliador apenas trata dos autos do processo, ou seja, usa o momento para anexar provas, grampear fotos, notas ou outros documentos ao processo, para depois dizer à vítimasuas opções: prosseguir ou não com a ação.

49Além dos casos mencionados aqui, vimos que frequentemente o conciliador tenta convencer a vítimaa desistir da ação, utilizando argumentos que não estão longe de qualquer forma de administração do conflito, mas que servem para demonstrar o “enorme desgaste” que é mover um processo na Justiça, ou ainda alegar que o fato ocorrido não é “tão grave” e que não “valeria a pena”.

50A forma como a audiência ocorre faz com que as vítimasvejam este estágio como uma “burocracia a mais” a ser enfrentada. Sentem-se, muitas vezes, menosprezadas pela Justiça e veem neste tipo de tratamento uma maneira de subestimar o problema que enfrentam:

Se uma pessoa que rouba tem que enfrentar o tribunal e isto está lá no mesmo lugar que o crime de discriminação, por que quando alguém ofende a religião do outro é diferente? (Candomblecista, cerca de 35 anos).

51Há também vítimasque reconhecem que a intolerância é causada pela “falta de educação”, questionando se uma audiência na Justiça teria alguma eficácia, já que “em 30 minutos não seria possível consertar o problema gerado pelo outro”. Dizem que quando são ameaçadas, ou ofendidas, não são apenas prejudicadas emocionalmente, mas que estes atos comprometem também sua credibilidade perante os outros. Afinal, muitas vítimastêm na religião uma profissão, porque são líderes dos terreiros ou porque realizam “trabalhos de assistência social”, relacionados à sua inserção religiosa. O argumento dos prejuízos materiais, quando aparece, é o último a ser mencionado.

52Assim, mesmo sabendo que as audiências não produzem uma mudança no agressornem servem para reparar os danos, as vítimasinsistem em afirmar que é importante “buscar por meio da Justiça o reconhecimento” da agressão sofrida como uma discriminação, para se obter a certificação legal da necessidade do respeito à religião atingida. Há de se esclarecer que essa busca por reparação expressa também uma ideia de pena, associada ao sofrimento, em que a demanda por proteção ou solução de conflitos direcionada ao Estado deveria provocar no agressor medo dos agentes estatais que, por sua vez, não querem aceitar este papel, pois pensam que lidar com conflitos deste tipo representa uma instrumentalização de sua função para tratar de assuntos que julgam ser “privados”.

53Por outro lado, aqueles que esperam a reparação dos danos materiais não acreditam que a Justiça tenha o papel de “educar o outro”, o que aparece na argumentação dos conciliadores e dos promotores, que explicam as agressões pela dificuldade que algumas pessoas têm de reconhecer e conviver com as diferenças. É interessante notar que, por razões distintas, nem as vítimasnem os agentes estatais acreditam na possibilidade da “resolução” do conflito por meio da conciliação.

54As vítimasdizem que a gravidade da agressão “não pode ser resolvida apenas com um pedido de desculpas”, pois, “se fosse possível resolver na conversa, não teria entrado com o processo”, revelando que a Justiça não seria o lugar para o diálogo, mas o da confirmação do direito:

Na última vez que eu vi ela, ela estava saindo do carro e eu tentei conciliar com ela, mas não deu certo, ela jogou o carro em cima de mim.Você acha que aqui só porque tem um conciliador [ela vai parar?]... Ela vai continuar me ameaçando! (Candomblecista, cerca de 35 anos).

55Já os conciliadores veem a conciliação como uma “busca por um denominador comum”, sendo a audiência um momento para “chamar à razão e ao “bom senso” e, principalmente, para mostrar que “não vale a pena continuar com aquele conflito”. Assim, a desqualificação do conflito é considerada a forma eficaz de retirar os sentimentos, que deveriam estar restritos ao plano da intimidade, da disputa, de modo a encontrar de forma “objetiva” a materialidadedofato, que poderia ser tratado no tribunal. Como este método de “chamar à razão” não apresenta resultados quando a origem do conflito é de caráter religioso, todos são unânimes em afirmar que estes casos são “insolúveis”, de modo que a conciliação aí não produz efeito, pois estes casos são classificados como “picuinha de vizinho” e/ou “abobrinha”, ou seja, são de menor importância, devendo ficar fora do âmbito judiciário. Outro aspecto importante é que, na visão dos conciliadores, o conflito seria uma escolha das vítimas, que poderiam ter deixado de lado o problema, nunca reconhecido como crime.

56Esta recusa dos conciliadores em tratar a intolerância religiosa como crime representa a reprivatização do conflito que, na visão deles, precisaria se manter no ambiente familiar ou de vizinhança. Assim, os atos que seriam crimináveisdo ponto de vista legal deveriam ser apenas privadamente acusadosou recriminados, mas jamais publicamente incriminados:

aqui as pessoas vão brigar muito, por coisa pouca, se apegam a coisas pequenas, futilidades, por exemplo, ele reivindicando garrafa de cachaça, água de laranjeira e ela, uma pessoa culta, uma advogada, fazendo tanta exigência por uma capa de exue pratos da avó (Conciliadora, cerca de 30 anos).

57As disputas, além de serem reprivatizadas, são associadas a uma ausência de “limites”, entendida como uma dificuldade de percepção sobre o “limite de sua liberdade incomodando o vizinho”.

Outro dia, a Igreja que tem perto da minha casa tem uma rádio e colocaram uma caixa de som desse tamanho [e mostra com as mãos algo em torno de uns 50cm] em cima do meu muro, voltada para a minha casa. Então, são aquelas músicas o dia inteiro. Uma hora eu viro pro pastor e faço uns desaforos pra ele e pronto! (Conciliadora, cerca de 30 anos).

58A desqualificação dos conflitos também foi observada nas entrevistas com os promotores, que classificam de forma diferenciada os casos que chegam ao Ministério Público como “processos” e “problemas”, segundo o que os “problemas” correspondem aos casos de desrespeito, provocados pela “falta de educação, na medida em que não se conhece ou se aprende a respeitar as diferenças do outro”, e os “processos” corresponderiam aos crimes graves. Porém, diferentemente da visão das vítimas, os promotores acreditam que “problemas de falta de educação” podem ser resolvidos por meio da conciliação, pois a restauração é entendida como uma “regressão ao momento anterior do crime”, uma situação de “não-conflito” à qual seria possível retornar. Para isso, a melhor forma seria a conversa mediada por um terceiro, no caso o conciliador, que possibilitaria ao autor do crime “conhecer e reconhecer a diferença do outro”, no caso, a vítima. A conciliação teria então um papel de “educar”:

Uma audiência em tribunal comum, na maioria dos casos, gera mais revolta, porque sentença é uma imposição, uma medida estritamente jurídica para um caso, já a conciliação seria uma “composição” das ideias para chegar a um denominador comum, mais eficaz a longo prazo (Promotor, cerca de 45 anos).

59Há também entre os promotores outra visão sobre a conciliação, bem mais pragmática, pois é vista como uma maneira de desafogar o sistema, retirando os casos que, na visão dos agentes públicos, “não têm solução”. Neste caso, acredita-se que as pessoas não procuram a Justiça com um objetivo definido de resolução do conflito, mas só porque

as pessoas estão nervosas e apenas querem falar, não faz sentido mover a máquina pública para isso. A conciliação é boa porque as pessoas podem desabafar e se acalmar. Tem brigas que só terminam quando um dos dois morre (Promotor, cerca de 45 anos).

60Além disso, esta forma de audiência possibilitaria a inclusão de profissionais de diferentes áreas que ajudariam as pessoas que buscam a Justiça e que, na visão dos promotores, não esperam a “aplicação técnica da lei”, mas desejam apenas “ser escutadas”. Para esta função de “ouvir”, os psicólogos e os assistentes sociais seriam mais capacitados, já que os agentes do judiciário com formação em direito seriam “adestrados” na faculdade a seguir o que está previsto em lei, e por isso não atenderiam às demandas desses casos.

61Já os juízes entrevistados que atuam no JECrim, a quem cabe realizar a terceira etapa, que é a instrução e o julgamento, manifestaram com certo orgulho que a conciliação acontece na maioria dos casos, o que caracteriza um trabalho muito bom, pois seria uma forma de pacificaçãodo conflito, que é uma maneira de as pessoas conversarem, dizerem o que sentem e se “entenderem”. Tal perspectiva de pacificaçãoreforça a ideia da reprivatização do conflito, que “opera no sentido de abafar os conflitos e não solucioná-los ou resolvê-los” (Kant de Lima, Amorim & Burgos, 2003).

62Assim,a pacificação seencontra inserida numa lógica brasileiraemque os conflitos são malvistos, pois se trata de uma sociedade com características hierárquicas, na qual o todo deve ser harmônico e cada um tem o seu lugar, em contraposição às leis constitucionais em que todos são iguais perante a lei, estabelecendo-se assim um paradoxo entre as leis igualitárias normativas e as estruturas hierárquicas predeterminadas (DaMatta, 1979).

63Nesse contexto, merece destaque o papel que a polícia tem de funcionar como um intermediário entre o sistema judicial elitista e hierarquizado e o sistema político igualitário. Daí a importância dos registros de ocorrências realizados na polícia, e as dificuldades de sua efetivação devido ao seu poder de decisãoa e ao fato de que as ocorrências policiais registradas “tendem a reforçar seus estereótipos de crimes e criminosos, fornecendo condições para a autorreprodução da ideologia policial” (Kant de Lima, 1995).Vislumbra-se também a influência da tradição inquisitorial, que faz com que a normalização dos comportamentos não tenha o mesmo valor que o reconhecimento legal dos interesses das partes envolvidas, evidenciando uma disjunção radical entre o fato de existirem socialmente crimes que não foram, e não serão, criminados.

Considerações finais

64A demanda da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa pela criminaçãoda intolerânciareligiosaa partir de sua tipificação “correta”, segundo a Lei Caó, representa um esforço de trazer para a esfera pública conflitos que surgiram e não foram solucionados na esfera privada. Este movimento tem esbarrado principalmente na negação, por parte dos agentes do Estado, de que estes conflitos sejam considerados crimes.

  • 28 Título V - Dos Crimes Contra o Sentimento Religioso e Contra o Respeito aos Mortos, Capítulo I - Do (...)

65Isto aparece em diversas situações, seja porque antes da criação da Comissão o crime de “preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (art. 20 da Lei Caó) não era registrado pelas delegacias, pois apenas constava na relação de títulos, de seu banco de dados, o artigo 208.28 Entretanto, a correção do “sistema”, ao contrário do que esperavam alguns integrantes da Comissão, não representou a criminaçãoda intolerânciareligiosacomo discriminação. A diferença fundamental entre usar o artigo 208 ou o artigo 20 é que um será encaminhado ao JECrim, por ser considerado crime de menor potencial ofensivo, e o outro, tipificado conforme a Lei Caó, deve ser encaminhado para a Vara Criminal.

66Outro fato importante é que a intolerânciareligiosageralmente aparece associada a outros tipos de conflitos, em especial a agressões envolvendo familiares e/ou vizinhos, conflitos no ambiente de trabalho e em espaços públicos (escolas, delegacias e tribunais), e agressões cometidas no âmbito de cultos neopentecostais e nos meios de comunicação. Este cenário pode ser contrastado com casos de natureza semelhante analisados porVagner Gonçalves da Silva (2007), em São Paulo, onde também se identificaram agressões realizadas no âmbito de cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação; agressões físicas contra terreiros e/ou seus membros; e ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras em espaços públicos.

67Para Vagner Gonçalves da Silva, a estratégia desses ataquesseria direcionada à imagem pública das religiões de matriz afro-brasileira,o queteria comoconsequência uma dupla reação: o desejo de não aceitar as ofensas e reagir, seja denunciando os casos individualmente, seja buscando apoio jurídico de forma organizada, o que seria algo difícil, pois essas religiões não teriam uma tradição de organização em torno de representações coletivas, mas sim de dissidências e contraposições.

68A relação da intolerânciareligiosacom a imagem pública das religiões de matriz afro-brasileira explica por que as demandas continuam sendo feitas ao judiciário, a despeito de as vítimassaberem que suas queixas são desqualificadas, na maior parte dos casos, e de não ficarem satisfeitas com os resultados das ações. Como se trata de uma estratégia política, elas têm clareza de que o reconhecimento de direitos não se esgota aí, ao contrário, é no judiciário que ele começa, pois representa uma retomada da esfera pública para a afirmação de suas identidades.

69Assim, as diversas manifestações que a Comissão tem realizado buscam expressar que o reconhecimento legal não é suficiente para lidar com os “ataques”, já que não dão conta da dimensão do “insulto moral” (Cardoso de Oliveira, 2002:31), ou seja, não são atos “ingênuos”, pois todos sabem que as agressões sofridas não são facilmente definidas pela linguagem tradicional do direito, que não é capaz de expressar o ressentimento das vítimas.

70A estratégia de levar para a esfera pública a intolerânciareligiosa,seja por meio da Caminhada ou pelos processos, tem por objetivo confrontar uma das características das práticas de discriminação no Brasil, que é a sua dissimulação (Cardoso de Oliveira, 2004), de difícil identificação mesmo para aqueles que a sofrem. Mesmo sendo uma prática ilegal, a discriminação não é percebida como crime pelos diversos agentes estatais, já que moralmente ela também é desqualificada, pois reconhecer que há conflitos e que eles são motivados pela explicitação de preconceitos não é algo socialmente aprovado em nossa sociedade. A publicização desses conflitos pode ser pensada então como um mecanismo que os atores, cuja dignidade tem sido historicamente negada ou desqualificada no plano ético-moral, utilizam para buscar a reversão desse cenário, gerando expectativas de reintegração social.

71Nesse sentido, a intolerância religiosapode ser pensada como uma categoria moral que pretende dar conta não apenas da discriminação racial, que a sociedade insiste em negar, mas também de uma “discriminação cívica” (Cardoso de Oliveira, 2002) que nega o reconhecimento de direitos, já que no Brasil a classificação no plano moral teria precedência sobre o respeito a direitos, que acaba condicionado a manifestações de “consideração” e deferência. Como os praticantes de religiões de matriz afro-brasileira historicamente não foram tratados como “pessoas dignas”, que merecem reconhecimento pleno de direitos de cidadania, sua agenda política contemporânea tem sido marcada por solicitações que reafirmam suas identidades diferenciadas como um elemento positivo na luta pelo reconhecimento em face da sociedade nacional.

72Há um aspecto interessante nos casos acompanhados no que se refere às vítimasde intolerância religiosa, que não acreditam na possibilidade de um diálogo e esperam que o Estado, por meio das suas autoridades policiais e legais, confirme o direito de que consideram ser merecedores, sem que isto, no entanto, tenha como consequência a internalização de sentimentos ou valores. Penso que este fato pode ser mais um exemplo da“desarticulaçãoentre esfera pública e espaço público no Brasil”, que para Luís Roberto Cardoso de Oliveira é o “principal responsável pela discriminação cívica entre nós” (Cardoso de Oliveira, 2002:12 e 95-128). Esta confirmação pela autoridade legal é uma forma de trazer o caso novamente para a esfera pública, espaço por excelência em que os “crimes” são definidos, já que mantê-lo no âmbito privado impede a possibilidade de universalização necessária para que seja enquadrado como uma violação dos direitos de cidadania.

  • 29 Para uma compreensão do “mundo muçulmano” em sua pluralidade cultural e histórica, ver Pinto (2010)

73Outro aspecto importante a se pensar é que a categoria intolerânciareligiosase afasta da categoria discriminação, muitas vezes associada às questões raciais no Brasil, o que permite revelar uma tensão existente na Comissão entre aqueles que desejam determinar que as agressões sofridas estariam relacionadas a um racismo difuso na sociedade brasileira, posição assumida por militantes do movimento negro, e os que pensam que as agressões sofridas não têm relação com a “cor”, mas com uma ofensa a um direito civil básico, que é a liberdade de expressão. No caso dos religiosos e dos praticantes do candomblé e da umbanda, os sinais exteriores que suscitam as agressões não são apenas o fenótipo da pessoa, que caracteriza tradicionalmente o racismo à brasileira (Nogueira, 1985), pois, afinal, o que evidencia esses atores é principalmente seu vestuário (o“vestir branco”, as guias etc.). Este vem a ser o mesmo elemento diacrítico presente na polêmica do uso do véu entre as mulheres muçulmanas, tratadas de forma homogênea,29 o que levou à sua proibição na França, entendidos como marcação negativa das pessoas que impediria a construção de uma imagem social de igualdade na esfera pública, pois trazem à tona as hierarquias consagradas legitimamente no plano religioso, cujo ideário ocidental quer acreditar que deva ficar restrito à esfera privada.

O que diz a declaração do direito à liberdade religiosa do sobre a intolerância?

§1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares.

O que prevê a Declaração Universal dos direitos humanos sobre a intolerância religiosa?

O artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em ...

Qual é o papel da religião na defesa dos direitos humanos?

Diz o artigo 5o, inciso VI, da Constituição: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” A liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais da humanidade, como afirma a ...

Qual é a lei que combate à intolerância religiosa?

A Lei 17.346/21 regulamenta o livre direito à crença em todo o Estado de São Paulo, proíbe qualquer interferência ou impedimento na realização de cerimonias e cultos de todas as religiões, e ainda prevê multa para todo o tipo de intolerância religiosa.