Quando os seres humanos chegaram a África

Desvendar os mistérios que cercaram o passado humano através de pesquisas sobre a origem dos primeiros povos da Terra é um desafio que instiga diversos pesquisadores. Para a realização de pesquisas sobre o período pré-histórico da humanidade, os estudiosos desenvolveram dois tipos básicos de estudos. A Paleontologia e a Arqueologia. Os paleontólogos estudam geralmente os fósseis, que são as partes mais resistentes do corpo, como ossos e dentes. Os arqueólogos estudam as criações do homem pré-histórico, como instrumentos de pedra e metal ou peças de cerâmica, que ajudam a interpretar a maneira como eles viviam.

Essas duas técnicas são preponderantes no campo da pesquisa e foi através da arqueologia que um grupo de estudiosos encontrou no continente africano alguns sítios arqueológicos que ajudaram a compreender um pouco mais da Pré-História desse continente. Através da análise dos objetos encontrados, os arqueólogos chegaram à conclusão de que o local que hoje é a África do Sul foi habitado por grupos nômades que viviam da caça e da pesca há mais de 100 mil anos.

Os povos chamados de berberes, por exemplo, foram considerados um dos primeiros povos que habitaram o norte da África. Esse grupo também ficou conhecido pelo nome de caucasoide. O termo caucasoide foi criado pelo estudioso Cristoph Meiners que, através dos estudos do crânio, decifrava a região em que determinados grupos se desenvolveram.  Assim, caucasoides foram aqueles que viveram em diferentes regiões do planeta, como Europa, Norte da África e Ásia Ocidental.  

No Norte da África, os berberes desenvolveram-se ao longo da costa mediterrânea, do Egito ao Atlântico. Ainda hoje existem povos descendentes desse grupo que, segundo especialistas, são uma mistura de diferentes etnias. Contudo, o termo berbere atualmente refere-se mais ao idioma do que propriamente a uma etnia específica, pois é uma língua falada por milhões de argelinos e marroquinos.

Os bantu também foram um dos primeiros povos que habitaram o continente africano. As atuais regiões da Nigéria e Camarões foram as localidades onde surgiram esse grupo que viveu no período da Idade do Ferro. Eles foram responsáveis pela introdução de novas técnicas que contribuíram para a formação das primeiras comunidades agrícolas. O desenvolvimento da metalurgia e da cerâmica foram exemplos específicos das invenções dos bantu, que ajudaram na escalada da evolução humana.

Por Fabrício Santos

Graduado em História

Legenda da foto,

Grupos africanos ainda mantêm a maior diversidade genética

Um novo estudo genético entrou na discussão sobre as raízes da humanidade, fortalecendo a versão de que o ser humano moderno surgiu no sul da África e não no leste do continente, como indicam pesquisas e descobertas anteriores.

Em um artigo divulgado na publicação científica <i>Proceedings of the National Academy of Sciences</i>, os pesquisadores americanos sustentam que o sul africano provavelmente ofereceu melhores condições para o surgimento do ser humano moderno.

"A África é apontada como o continente de origem de todas as populações humanas modernas. Mas os detalhes da pré-história e da evolução humana na África permanecem obscuros devido às trajetórias complexas de centenas de populações distintas", afirma o estudo.

A coautora do estudo Brenna Henn, da Universidade de Stanford, na Califórnia, disse à BBC que a equipe encontrou uma "diversidade (genética) enorme" entre as populações caçadoras e coletoras da África – mais que entre as sedentárias, baseadas na agricultura.

Tais populações eram altamente estruturadas e relativamente isoladas umas das outras, provavelmente retendo grandes variações genéticas entre si, afirmou.

"Analisamos os padrões de diversidade genética entre 27 populações africanas atuais, e percebemos um declínio de diversidade que começa de fato no sul da África e progride à medida que a análise caminha em direção ao norte do continente", contou Henn.

Os modelos usados pela equipe são consistentes com a perda de variedade genética que ocorre quando um número muito pequeno de indivíduos estabelece uma nova população a partir de uma população original mais numerosa.

"As populações no sul da África têm a maior diversidade genética de qualquer população de que temos notícia", afirmou a pesquisadora. "Isso sugere que esta pode ter sido a melhor região para dar origem aos humanos modernos."

O paleontólogo Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, que não faz parte da equipe que elaborou o estudo, disse que a pesquisa é um "marco" no seu campo de pesquisa.

"É um marco, que conta com muito mais dados sobre os grupos de caçadores e coletores que qualquer outro, mas eu continuo cauteloso em apontar um local de origem (para os primeiros humanos)", afirmou.

O professor discorda da visão de que tenha havido uma espécie de "Jardim do Éden" a partir do qual a humanidade evoluiu.

"Diferentes populações da África antiga provavelmente contribuíram com os genes e o comportamento que formam o ser humano moderno."

Stringer explicou que, embora a ocorrência de grupos caçadores e coletores seja bastante restrita atualmente, pinturas rupestres atribuídas a esses grupos sugerem que no passado eles se espalhavam por uma área muito maior.

"O novo estudo sugere que os genes dos Khomani (grupo étnico do sul da África), dos Biaka (da África Central) e dos Sandawe (do leste) parecem ser os mais diversos, e por conseqüência estas são as mais antigas populações de <i>Homo sapiens</i>", argumenta.

"É mais provável que os grupos sobreviventes de caçadores e coletores sejam hoje restos localizados de populações que em outras épocas se distribuíam por toda a África subsaariana há 60 mil anos", afirmou o paleontólogo.

Movimento ativado

América. O último continente a ser povoado pelo ser humano. Uma parte do planeta Terra desconhecida do Homo sapiens por milhares de anos.

Até que uma mudança climática — entre muitas outras coisas — permitiu ao inquieto primata pisar naquela região.

Mas como a América foi povoada?

"É uma pergunta vital que ainda não resolvemos e continuamos fazendo porque pulsa em nossa curiosidade humana", diz à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Lawrence C. Brody, diretor do departamento de Genômica e Sociedade do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano (NHGRI, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.

"Os humanos anatomicamente modernos deixaram a África há pelo menos 100 mil anos e começaram a se espalhar. E em algum momento depois de 40 mil anos, os humanos desenvolveram a tecnologia necessária para começar a explorar mais ao norte”, acrescenta Víctor Moreno, pesquisador de pós-doutorado do Centro de Geogenética da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, à BBC News Mundo.

Há várias teorias, mas a corrente dominante atual sustenta que houve uma única migração primeiro para a Ásia, depois para a Australásia e, mais tarde, para a Europa.

A América ainda estava muito longe e, sobretudo, bastante isolada.

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Os estudos sobre o DNA foram fundamentais para mapear estas migrações ancestrais.

“Nosso DNA contém um arquivo enorme da história de nossos ancestrais. Um genoma pode representar a história de muitas pessoas diferentes de uma população inteira”, afirmou à BBC News Mundo a antropóloga e geneticista americana Jennifer Raff, especialista no povoamento inicial do continente americano.

Para aprender sobre a árvore genealógica de nossos ancestrais, os cientistas sequenciam o DNA humano que ainda pode ser encontrado em fósseis e esqueletos muito antigos, razão pela qual é chamado de "DNA antigo".

As tecnologias modernas de sequenciamento tornaram possível ter acesso a fragmentos de DNA sem ter que sequenciar um genoma inteiro.

“Os antropólogos tiram conclusões gerais a partir de amostras muito, muito pequenas de DNA antigo, como dentes ou fragmentos de ossos e, mais recentemente, argila e areia. Os algoritmos nos ajudam a interpretar os dados e saber se aquele DNA está contaminado”, explicou o geneticista humano Brody.

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Isso deu a eles algumas respostas sobre o povoamento da América.

“Por exemplo, descobrimos que várias populações ancestrais contribuíram para a ascendência dos povos indígenas americanos, e não apenas uma como se acreditava anteriormente”, diz Raff.

"Graças a isso, agora sabemos que o cenário do povoamento da América foi muito mais complexo do que se pensava, mas também muito mais interessante."

Para embarcar nesta jornada fascinante, devemos começar situando-nos há aproximadamente 25 mil anos na linha do tempo.

Estamos no período do Último Máximo Glacial (LGM, na sigla em inglês), a última era do gelo conhecida na história da Terra.

“O mapa-múndi era muito diferente do atual. A maior parte da América do Norte estava coberta por uma espessa camada de gelo que tornava a região inabitável”, diz Acuña-Alonzo, antropólogo geneticista da Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) do México.

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“As condições eram bastante difíceis. Muitos lugares eram inacessíveis e cobertos de gelo. Fazia muito frio, os humanos tinham que caçar e coletar... e não sabiam quando poderia aparecer o próximo mamute!”, acrescenta o pesquisador Víctor Moreno.

Com o avanço do período glacial, o nível dos mares do mundo foi baixando, à medida que a água era armazenada nas camadas de gelo que cobriam os continentes.

“Toda a água estava sequestrada nas geleiras”, explica Moreno.

Por causa disso, havia duas grandes geleiras que cobriam quase todo o Canadá e tornavam praticamente impossível ir para o sul.

Mas no final desse período glacial, há cerca de 12 mil anos, as camadas de gelo começaram a derreter e surgiram alguns refúgios glaciares.

“Nesses locais, as condições não eram tão terríveis e ainda eram produtivas em termos de recursos para que os humanos pudessem se alimentar”, diz Moreno.

Um desses refúgios foi a Beríngia: uma ponte de terra que emergiu do mar congelado por meio da qual as primeiras populações de humanos entraram na América, segundo acredita a maioria dos pesquisadores.

Ela se estendia do que conhecemos hoje como o Alasca até a Eurásia — e era um território seco, cheio de vegetação e fauna.

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Atualmente, está submersa — por isso não é possível encontrar vestígios arqueológicos —, mas há um consenso de que os ancestrais dos indígenas americanos saíram da Sibéria em direção ao Alasca por aquele trecho de terra e ficaram isolados na Beríngia durante algum tempo.

“À medida que as péssimas condições do Último Máximo Glacial melhoravam, foram abertas certas rotas — pelo litoral e pelo interior — que teriam permitido a entrada na América a partir da região da ponte terrestre de Bering”, diz Víctor Moreno.

Mas ainda há dúvidas sobre a rota que seguiram para entrar na América, sobre quantos grupos (ou quais grupos) fizeram este caminho e quando isso aconteceu.

Há duas teorias sobre quando os primeiros seres humanos chegaram à América.

As duas principais correntes são a teoria do povoamento precoce (que diz que isso ocorreu há cerca de 30 mil ou 25 mil anos) e a teoria do povoamento tardio (segundo a qual isso teria acontecido há cerca de 12 mil ou 14 mil anos).

Por muito tempo, se pensou que o povoamento foi tardio. Esta hipótese também é conhecida como "teoria clássica do povoamento da América" ou "modelo Clóvis".

Os Clóvis, considerados em meados do século 20 a cultura indígena mais antiga da América, usavam uma técnica de entalhe de pedra bastante aprimorada para caçar a fauna gigante que existia na Idade do Gelo com ferramentas que hoje conhecemos como “pontas de clóvis”.

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Fonte: Getty

Durante décadas, essas "pontas de clóvis" foram encontradas em sítios arqueológicos de cerca de 13 mil anos, espalhados por várias partes da América do Norte. Por isso, se pensava que eles foram os primeiros povoadores da América.

Mas, nos últimos anos, vários estudos genéticos refutaram essa ideia.

Embora não haja consenso, hoje há mais cientistas e arqueólogos que argumentam que a ocupação da América ocorreu muito antes do que se acreditava.

"A maioria dos cientistas e arqueólogos apoia a teoria do povoamento precoce, e não tardia, mas os pesquisadores não chegam a um acordo sobre uma data específica ou sobre que sítios arqueológicos são 'autênticos'", diz à BBC News Mundo Jennifer Raff.

A análise genética de populações contemporâneas e antigas foi fundamental para que a teoria do povoamento precoce ganhasse peso.

No entanto, ainda há pesquisadores — principalmente arqueólogos — que continuam a defender a teoria do povoamento tardio.

“Alguns arqueólogos são céticos a respeito dos primeiros sítios arqueológicos encontrados, sobretudo porque não aceitam os métodos de datação, as associações com a atividade humana e a estratigrafia (análise dos estratos arqueológicos) que foram reportados”, explica Acuña-Alonzo.

“A verdade é que demonstrar a antiguidade da presença humana é bastante complicado e difícil, por isso só sítios arqueológicos muito bem escavados e documentados servirão para ir mudando essas posições”, acrescenta o pesquisador.

Também segue aberto o debate sobre como os primeiros seres humanos entraram no continente depois que deixaram a ponte terrestre de Bering, ou Beríngia, mas os cientistas trabalham principalmente com duas possibilidades: uma rota marítima ou uma rota terrestre.

Mas, o estudo de genomas antigos e contemporâneos, a descoberta de sítios arqueológicos pré-Clóvis e alguns estudos ambientais questionam essa teoria, por isso há mais cientistas que defendem que a travessia foi feita pelo mar.

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Estas pegadas pertencem a crianças e adolescentes que viveram há pelo menos 21 mil anos. Fonte: Bournemouth University, Reino Unido

Um dos achados mais recentes foi a descoberta em setembro de 2021 de pegadas humanas em um lago do Novo México, nos Estados Unidos, com mais de 20 mil anos.

Essas pegadas sugerem que os primeiros humanos chegaram à América no auge da Última Era do Gelo e que pode ter havido grandes migrações sobre as quais ainda não sabemos muito.

Mal sabemos que aparência tinham os primeiros seres humanos que chegaram à América.

Para tentar descobrir quem eram, recorremos novamente à genética.

Graças a ela sabemos que os ancestrais dos primeiros americanos se separaram de seus "primos asiáticos" quando entraram na ponte terrestre de Bering, e que se misturaram muito mais do que se supunha, sobretudo durante os últimos 10 mil anos.

Os geneticistas acreditam que houve uma miscigenação entre duas populações ancestrais humanas: os antigos paleo-siberianos e os antigos asiáticos do leste, segundo Acuña-Alonzo.

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Raff diz que um desses grupos habitava o que hoje é o Sudeste Asiático. Acredita-se que esse grupo tenha contribuído majoritariamente para a ancestralidade dos primeiros seres humanos que povoaram o continente americano — especificamente, cerca de 60%, indica Víctor Moreno.

O outro ramo ancestral surgiu há cerca de 39 mil anos no que hoje é o nordeste da Sibéria.

Esses dois grupos convergiram há cerca de 25 mil a 20 mil anos atrás.

Não sabemos exatamente como isso aconteceu, mas aconteceu durante uma migração da Sibéria” diz Raff.

“Temos muito pouca ideia. O mais provável é que tenha ocorrido em algum lugar da Sibéria, mas quão perto da ponte terrestre de Bering isso aconteceu? Quão ao norte ou quão ao sul? Isso é algo que está sendo debatido porque o apoio genético, arqueológico e antropológico que temos é escasso”, diz Víctor Moreno.

O que a genética explica é o que aconteceu a seguir: houve uma série de eventos demográficos complexos e a população, novamente, se dividiu em duas.

Um ramo, o dos antigos beríngios (por sua possível conexão com a Beríngia) não teve descendentes conhecidos. O outro, dos antigos nativos americanos, sim.

Os cientistas chegaram a essas conclusões após descobrir uma afinidade genética muito grande entre grupos ancestrais da Sibéria e populações da Eurásia Oriental.

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Pesquisador analisando pegadas de mais de 20 mil anos atrás encontradas nas margens de um lago no Novo México. Fonte: Universidade de Bournemouth, Reino Unido

“Sabemos, por exemplo, que os indígenas americanos estão relacionados geneticamente às populações do nordeste da Ásia por uma série de genes que permitiram a seus ancestrais economizar energia em condições climáticas muito difíceis”, acrescenta o geneticista.

Apesar dessas descobertas, eles ainda estão tentando determinar quantos povos antigos e atuais na América têm uma conexão com a linhagem genética desses antigos nativos americanos.

“Temos que aceitar que há muitas arestas dessa pergunta para as quais ainda não temos uma resposta”, diz Raff.

Na verdade, a última descoberta no Novo México deixa outra grande incógnita no ar: a possibilidade de que as primeiras populações tenham se extinguido sem deixar descendentes, sendo "substituídas" por outros povoadores quando o corredor de gelo foi formado.

Mas ainda não se sabe se foi esse o caso ou como teria acontecido.

“Não temos escolha a não ser abraçar a incerteza. Mas, ao mesmo tempo, é emocionante saber que estamos cada vez mais perto de reconstruir essa primeira viagem à América.”

Enquanto isso, os cientistas esperam que a herança genética nos dê mais respostas sobre a última grande expansão do Homo sapiens no planeta.