É crime esconder gravidez do pai?

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Bebé com sete meses de gestação morre depois de a mãe esconder o parto e o avô o atirar para um contentor.

João Carlos Rodrigues e Miguel Curado 28 de Junho de 2022 às 01:30

Pai e filha ocultam gravidez e metem bebé no lixo

Uma casa de banho coberta de sangue e uma jovem, de 22 anos, em estado crítico. Foi este o cenário encontrado pelos Bombeiros de Belas, acionados para uma intervenção de socorro no Casal da Barota pelas 20h25 de domingo. Os pais garantiram que a mulher estava a vomitar sangue e que teria Covid-19, mas quando entrou no Hospital Amadora-Sintra um obstetra percebeu logo a mentira.

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Milhares de homens são todos os anos obrigados pela lei a assumir a paternidade de crianças que nunca desejaram. São uma geração de "pais à força", segundo o jurista Jorge Martins Ribeiro, para quem estes homens deviam ter o direito de recusar aquela condição, do mesmo modo que as mulheres têm o direito de abortar. É uma guerra entre sexos que não pode hipotecar o direito da criança à sua identidade biológica, contrapõem muitos especialistas. O Estado deve ou não continuar a impor as averiguações oficiosas de paternidade?

Tomás, um desempregado de 25 anos, solteiro e com o 9.º ano de escolaridade, admitiu fazer muitas coisas na vida. Ser pai não estava entre elas. "A rapariga com quem eu andava ficou grávida, mas andou nove meses a esconder-me e nunca me disse nada. Só passado um tempo, quando a criança saiu, é que me ligaram. Ligaram, mandaram-me mensagens por MSN, a dizer que eu era pai." A primeira reacção de Tomás foi recusar a paternidade. Porém, quando a criança foi registada sem indicação do nome do pai, o funcionário da conservatória comunicou imediatamente a situação ao Ministério Público (MP) a fim de se averiguar oficiosamente a sua paternidade. E Tomás juntou-se assim aos milhares de homens que todos os anos são obrigados pelos tribunais a perfilhar os seus filhos, engrossando aquilo que o jurista Jorge Martins Ribeiro qualifica à revista 2 como "uma geração de pais à força".

Por considerar que os homens são postos numa posição de desigualdade no que à procriação diz respeito, o jurista defende que a lei devia permitir que os pais recusem a paternidade de uma criança por eles indesejada, do mesmo modo que permite às mulheres abortarem. Esta espécie de "aborto no masculino", que não encontra paralelo em nenhum país do mundo, desencadeou uma saraivada de críticas.

"Estamos a comparar situações desiguais. Quem nasce tem direito a um pai? Tem. Quem nasce tem direito à sua identidade genética? Tem. Com certeza que um homem corre o risco de ser enganado pela mulher quando tem relações sexuais com ela. Se não quer correr esse risco, use o preservativo", contrapõe o procurador-geral adjunto do MP, Alípio Ribeiro. Se acontecer aos homens sentirem-se enganados, "ponham uma acção contra a mãe, mas não pretendam agora que a lei permita que isso interfira na vida do filho". Joana Marques Vidal, a nova procuradora-geral da República, concorda que "o direito da criança à sua identidade pessoal e genética deve sobrepor-se ao direito dos pais". À revista 2, Eliana Gersão, do Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra, também lembra que "a paternidade é um facto biológico", logo, "não se pode querer ou não querer".

A prática que leva o Estado português a desencadear automaticamente uma averiguação oficiosa de paternidade sempre que uma mulher aparece a registar uma criança sem indicação do nome do pai tem décadas. A mulher é desafiada a nomear o presumível pai (ou presumíveis pais) e este instado a submeter-se a um teste de ADN para esse efeito. Quando o teste se revela positivo, o MP instaura a respectiva acção. É assim desde 1967, altura em que, alicerçado no direito da criança a conhecer a sua identidade e ascendência biológica, o Estado deixou de esperar pelo consentimento dos presumíveis pais para avançar com estas averiguações oficiosas.

Apesar da lei e dos ADN, continua a haver milhares de crianças filhas de pais incógnitos (a expressão foi entretanto substituída pela expressão "filhos de pais naturais", numa tentativa de eclipsar a carga pejorativa da condição). Em 2007, 441 averiguações oficiosas de paternidade foram declaradas inviáveis, num universo total de 2300 averiguações. No ano seguinte, foram 502, em 2177 processos. Em 2009, foram 449 as averiguações oficiosas de paternidade iniciadas e que redundaram em zero, num total de 2423 processos. No ano seguinte, foram 618, num universo de 2301 processos. Já no ano passado, 538 investigações foram improcedentes, em 2155. Dá 2548 crianças registadas sem nome do pai em cinco anos. No reverso desta medalha, e na soma dos mesmos cinco anos, 1527 pais foram obrigados a perfilhar os filhos. E, no mesmo período, 5849 homens acabaram por perfilhar voluntariamente os seus filhos, antes mesmo de a acção oficiosa ter sido intentada.

É o caso de D., divorciado, com 46 anos, e que se soube pai de um bebé agora com dois meses, fruto de uma relação de mês e meio com uma mulher de 22 anos. "Não foi a paixão da minha vida, mas dávamo-nos bem. Um dia, numa altura em que tinhamos deixado de nos encontrar, ela liga-me a dizer que estava grávida. Lembro-me que foi num final de tarde, em que chovia torrencialmente, e o que eu lhe disse foi: "Se estás grávida, deixa-o vir ao mundo". No decurso da gravidez, foram falando por SMS. "Ela avisou-me um dia ou dois antes de o bebé nascer que o parto estava para breve. Depois quando o foi registar, o Ministério Público mandou-me chamar". E por que não assumiram logo o nome do pai? "Ela tinha o direito de viver a vida dela, à maneira dela, eu nunca tentei interferir, nem nunca me pus com juízos de valor. Mas entendemos ambos que seria melhor para mim, para ela e para o bebé fazer o teste. Não é nenhum bicho de sete cabeças, foi, aliás muito rápido e muito fácil", conta à revista 2.

Se fosse hoje, porém, D. nem esperaria pela intervenção do MP. "A primeira vez que segurei o bebé nos meus braços, senti que era meu filho. Ainda não conheço os resultados do teste, mas não tenho dúvidas de que é meu filho." E agora? "Vou dar-lhe o meu nome, o MP não há-de ter dificuldades em calcular quanto terei de contribuir para o educar. Ele vai continaur a viver com a mãe e com a avó, combinámos que poderei vê-lo sempre que quiser. É o nosso filho."

Ser pai é uma condição vitalícia. E é em nome dos que nunca o quiserem ser, pelo menos num certo tempo e naquelas circunstâncias, que Jorge Martins Ribeiro fala na tese do seu mestrado em Direitos Humanos na Universidade do Minho em violação da "autodeterminação procriacional". Mais claro do que água, na opinião do jurista: "A lei portuguesa reconhece à mulher o direito de abortar, mas recusa ao homem o direito de não ser pai."

É, portanto, uma questão de desigualdade entre os géneros. Mas ao contrário do que nos habituámos a vê-la tratada. "A mulher tem o direito de pôr o fim a uma vida, o homem não tem sequer o direito menos gravoso de rejeitar a paternidade", aponta. Solução? "Porque é absolutamente impensável forçar uma mulher a fazer um aborto, mude-se a lei para reconhecer o direito de o homem rejeitar os efeitos jurídicos da paternidade e da parentalidade."

O autor recua décadas para sustentar que, ao contrário do que dita o pensamento oficial, os homens têm sido negativamente discriminados face às mulheres. a) Foram historicamente convocados a desempenhar o papel de protectores e provedores da família, "sem que tal tenha sido configurado como discriminação". b) São chamados a desempenhar as profissões mais expostas ao perigo e fisicamente mais exigentes. Para qualificar o que considera ser uma atitude "culpabilizadora do homem", Martins Ribeiro socorre-se de uma palavra que só agora começa a constar dos dicionários: "misandria", a saber, ódio aos homens. Será então para combater esta "misandria" no domínio da parentalidade que o jurista preconiza o direito do homem a recusar a paternidade de um filho que nunca quis.

Esta tese dá sequência às emoções evidenciadas por muitos dos homens convocados pelos tribunais para assumirem a paternidade de um filho que nunca desejaram ter e que se declaram apanhados numa armadilha. "Senti logo que ela me estava a prender e que queria mais alguma coisa do que me dar uma criança. Eu [...] ganho para o meu dia-a-dia. Agora, se ela se quer "encostar", não é assim que se "encosta"", declarou Tomás, questionado já depois de o respectivo teste de ADN ter dado positivo. Tiago, um empregado de hotelaria com 22 anos, também disse ter sentido o chão fugir-lhe debaixo dos pés. "Senti-me "pesado" [ao saber da gravidez]. "Pesado" porque aquilo que aconteceu entre mim e ela não passou de uma estupidez, de uma burrice minha [...] Foi uma relação de um dia ou um conhecimento, não passou disso..." Fernando, cortador de carnes, 23 anos: "A gente mal se conhecia. Se calhar, a melhor opção teria sido abortar mesmo, não é? Porque não era o melhor para mim nem para ela. E ela sabia disso e [sabia] que não tinha posses para o sustentar."

Em nome destes homens tornados pais "porque a lei manda que o sejam", Jorge Martins Ribeiro traça mesmo o esboço de um possível novo regime legal a aplicar aos maiores de 16 anos. Para começar, e para que o homem possa decidir se quer ou não assumir a paternidade, a mulher teria de lhe comunicar que engravidou, num prazo de dez dias a contar desde a certificação clínica da gravidez. A comunicação seria feita em documento a criar para o efeito, e a fazer constar no site do Instituto de Registos e Notariado, no qual teriam de constar a certificação da gravidez e a respectiva duração. O mesmo prazo de dez dias seria dado ao homem para assumir ou rejeitar a paternidade, sendo que este imputado pai poderia ainda relegar para o momento posterior ao nascimento a assunção ou não da criança. Já depois de apurada a verdade biológica, portanto.

Quando se apresentasse a registar a criança, a mulher teria então de apresentar o comprovativo de comunicação da gravidez (ou a certificação de não ter podido fazê-lo). A declaração de rejeição ou de tomada de conhecimento por parte do pai seria também averbada no registo de nascimento. Perante uma declaração de rejeição, o Estado demitir-se-ia de proceder a qualquer averiguação oficiosa. Além da expectável diminuição do número de casos de averiguação oficiosa de paternidade, Martins Ribeiro sustenta que o novo regime cortaria de raiz os problemas actuais relativamente ao não exercício dos direitos e dos deveres que decorrem da paternidade à força. Dito de modo grosseiro, não se estabelecendo a paternidade, não decorreriam daí deveres ou direitos do pai para com aquela criança, logo não se poderia falar em incumprimento.

Para Jorge Martins Ribeiro, só assim seria respeitada "a vontade do homem na decisão de procriação".

Eliana Gersão deita as mãos à cabeça. "A gravidez é uma condição feminina e não há contrapartida masculina. Se um dia os homens engravidarem, poderão ter o mesmo direito. Agora, o que os homens podem sempre fazer é dar consentimento prévio para a adopção dessa criança e esperar que esta se concretize e que cessem assim as suas responsabilidades parentais; não podem nunca é negar a verdade biológica da criança."

Joana Marques Vidal, procuradora-geral da República, até admite que a obrigatoriedade de o MP desencadear uma averiguação oficiosa de paternidade possa tornar-se facultativa. "Admito que nalguns casos possa ser do interesse da criança não se proceder a essa investigação." Exemplo: "Imagine uma criança sem nome do pai que é abandonada pela mãe na maternidade e é logo dada para adopção." "Mas", ressalva, "essa decisão teria de atender ao superior interesse da criança e não à vontade do pai biológico."

Frontalmente contra a possibilidade sugerida pelo jurista, o procurador-geral adjunto Alípio Ribeiro lembra que "independentemente de a paternidade ser ou não assumida nas suas dimensões afectiva e financeira, a identidade genética será cada vez mais importante no futuro, até por questões de doença e do avanço da medicina personalizada, que implica conhecer a estrutura genética da pessoa".

Antecipando-se a estes argumentos, Jorge Martins Ribeiro sublinha na sua tese que o direito da criança à sua verdade biológica não sairia afectado, porquanto, ficando a declaração de rejeição ou de tomada de conhecimento averbada no assento de nascimento, a criança "tem conhecimento da identidade do seu (possível, pois trata-se de uma imputação de paternidade) progenitor". Quanto ao estigma, "não será substancialmente diferente do que resultará das situações em que a paternidade não foi exercida, apesar de estabelecida".

Na mesma linha de raciocínio, Martins Ribeiro sustenta que não seria por passar a haver filhos sem nome do pai que se assistiria ao agravamento da feminização da pobreza, decorrente do facto de as mulheres, que tradicionalmente auferem salários menores e são mais fustigadas pelo desemprego, ficarem exclusivamente a braços com os encargos financeiros dos filhos. "O actual quadro legal também não evita a existência de crianças que têm inscrito, mas sem que passe disso, no seu assento de nascimento o nome do pai ou o nome da mãe, sem que tenham verdadeiramente pai ou mãe". Aliás, "a maior parte destas paternidades impostas acaba por não ser exercida, porque naturalmente não é o apelido do progenitor nem a fixação de uma pensão de alimentos que garantem à criança um pai. Na maior parte das vezes, o filho viverá com a mãe e não poderá contar com o pai".

O diagnóstico que a socióloga Helena Machado traçou, depois de um estudo que levou várias investigadoras das universidades do Minho e de Coimbra às instalações do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) para apurar o que acontece entre pais e filhos depois de determinada a verdade biológica, não é muito diferente.

A maior parte dos homens inquiridos, numa amostra total de 146 homens e mulheres envolvidos em averiguações de paternidade, não chega a estabelecer relações com os menores. "Acedem" a ter o seu nome no registo de nascimento da criança e depois... nada. Mesmo que, numa fase inicial, se predispusessem a contribuir para o sustento daquela criança, quando novamente inquiridos, quatro ou seis meses depois, o discurso tinha nuances. "Muitos diziam algo do género: "Bem, estou desempregado, contribuirei se puder." Outros admitiam ter uma relação com a criança, mas à medida da sua disponibilidade, sem horas e dias de visitas pré-determinadas, e o mesmo em relação a contribuição financeira. Alguns iam ao ponto de questionar a idoneidade do laboratório, sugerindo que as amostras tinham sido trocadas", recorda Helena Machado à revista 2.

Sobre o caminho a seguir para atalhar a esta situação é que as posições entre os dois investigadores divergem radicalmente. Porque o que Helena Machado defende é que, além de forçar estes homens a assumir a paternidade da criança, a lei deveria desencadear acções de regulação das responsabilidades parentais, segundo os mesmos mecanismos automáticos. "Essas sim, obrigariam o pai a contribuir financeiramente e a envolver-se na vida da criança, ao mesmo tempo que garantiriam o seu direito a ter contacto regular com ela", preconiza Helena Machado, lamentando que nalguns tribunais as mulheres envolvidas nestas acções oficiosas vejam a sua vida privada devassada e a sua integridade moral posta em causa, à força de perguntas do género: "Quantos namorados teve?", "Era virgem quando engravidou?", "Costumava usar contracepção?"

Não por acaso, muitas das mães inquiridas na mesma investigação conduzida por Helena Machado viram o teste de ADN como uma oportunidade de defesa da honra. "Eu, graças a Deus, sei quem é o pai, quem vai ficar mal é ele", declarou Sameiro, uma desempregada com o 6.º ano. "Assim, ele fica a saber que eu sempre estava a dizer a verdade, que não estava a mentir, e fui de consciência tranquila", disse Sónia, outra desempregada, de 21 anos.

Serão resquícios de mentalidades mais antigas que secundarizavam os direitos das mulheres. O procurador-geral adjunto do Ministério Público, Alípio Ribeiro, recua na história para lembrar que durante muitos séculos as acções de investigação da paternidade nem sequer eram permitidas. No século XVIII já havia acções deste tipo em tribunal mas condicionadas ao consentimento do pai. Do mesmo modo, o Código de Seabra, que vigorou entre 1867 e 1967, proibia qualquer acção de investigação de paternidade ilegítima, ou seja, atinente a crianças nascidas fora do casamento, exceptuando em três situações: existindo documento escrito em que o pai expressamente declarasse a sua paternidade; em casos de estupro ou rapto ou quando o filho se encontrasse em "posse do Estado", ou seja, sempre e quando o filho houvesse sido "reputado e tratado por filho, tanto pelos pais, como pelas famílias destes e pelo público". Mesmo assim, os tribunais resistiam a reconhecer a tal "posse do Estado".

Um acórdão de 1954, recuperado por Alípio Ribeiro, negava imputar a paternidade de uma criança porque a mesma, apesar de apontada publicamente como sendo filha de determinado pai, nunca como tal tinha sido tratada pelo mesmo. Isto apesar de o mesmo tribunal ter dado como provadas as relações sexuais da mãe com aquele homem - ela criada, ele patrão - e que o mesmo, ao saber da gravidez, tinha disponibilizado dinheiro para o aborto.

Descontado o anacronismo da situação, esta não diverge tanto assim do que agora propõe Jorge Martins Ribeiro. No mesmo ano, 1954, outro acórdão recusava reconhecer a paternidade de uma criança, baseado também no facto de o pai nunca ter aceitado tratá-la como filha, apesar de ter dado como provado que a mãe "não copulou com nenhum outro homem", tendo, portanto, engravidado na sequência das relações sexuais mantidas com aquele pai e de ter sido este a suportar as despesas com a parteira, bem como a renda da casa em que aquela vivia.

O mesmo código proibia expressamente a perfilhação de filhos adúlteros, ou seja, "havidos por qualquer pessoa, casada ao tempo da concepção, de outra que não seja o seu consorte", e incestuosos. Impossibilitados de aspirar à perfilhação, estes filhos passavam à condição de espúrios, o que equivalia a dizer que só tinham o direito de exigir dos seus pais os alimentos necessários. "Em tudo o mais são havidos por inteiramente estranhos aos pais e à famílias destes", precisava o Código de Seabra.

Esta situação perdurou até que o Código de Seabra foi substituído, em Junho de 1967, pelo "código Varela" - assim conhecido por ter sido redigido por uma equipa liderada por Antunes Varela, jurista e ministro da Justiça, durante o Estado Novo. Pouco depois, a alteração à Concordata em 1975 abriria definitivamente as portas ao divórcio para os milhares de casais que, tendo casado catolicamente, estavam impedidos de o fazer. Foi um passo de gigante para reduzir o número de filhos tidos até então como adulterinos, ou seja, nascidos de uma relação que aos olhos da lei era adúltera.

Então, como agora, a paternidade presumia-se em relação ao marido da mãe. Nos casos de filiação fora do casamento e de registo da criança sem indicação do nome do pai, competiria ao MP averiguar oficiosamente a sua identidade. No caso de o pretenso progenitor confirmar a paternidade, é lavrado termo de perfilhação. Quando negar ou recusar a confirmação de paternidade, os tribunais ordenam a submissão a um exame científico. Quanto a excepções, duas: se mãe e pretenso pai fossem parentes ou afins em linha recta e se tivessem decorridos dois anos sobre a data de nascimento.

Porque não faltaram presumíveis pais a aproveitarem o prazo apertado para protelar o decurso da acção - e assim se desobrigarem de perfilhar determinada criança -, "os prazos foram progressivamente alargados". O próprio Supremo Tribunal de Justiça sentenciava, em 2010, que "o direito de conhecer a identidade biológica é imprescritível".

Se hoje continuam a ser registadas tantas crianças sem nome do pai, e recorde-se que só em 2011 foram 538 (618, em 2010), as culpas têm de ser repartidas com muitas mulheres. É que são cada vez mais as que, chamadas ao MP, recusam apontar o nome do pai. "Entre as classes mais altas e letradas, admito que, porque as relações tendem a ser mais paritárias, é mais frequente o pai da criança assumir-se como tal e aceitar registá-la como sua, sem passar pelo tribunal.

Entre as que, desta classe, chegam ao Ministério Público, muitas não respondem ou recusam apontar presumíveis pais, ou porque são mulheres sós e foram a Espanha e engravidaram com recurso a uma qualquer técnica de procriação medicamente assistida, ou por outra razão qualquer; mas o resultado é que, sem presumíveis pais, a averiguação de paternidade não segue e o teste não chega a ser feito", descreve Helena Machado.

"Aparecem cada vez mais mães que não querem saber dos pais para nada. Querem ter uma criança e não dão satisfação a ninguém. Esta realidade está a aumentar e vai continuar a aumentar", confirma Alípio Ribeiro à revista 2. Para o procurador, a paternidade vai desligar-se cada vez mais do fenómeno da procriação para se tornar num "fenómeno social e cultural". Isto é: "O que vai permanecer ligado a essa ideia de procriação é a tal identidade genética, que, no meu entender, deve continuar a ser salvaguardada, mesmo contra a vontade dos pais biológicos. Mas penso que a paternidade vai surgir cada vez mais como um fenómeno social e cultural, ou seja, pai será aquele que cuida e que educa."

Nesse sentido, "a lei tem vindo a ser ultrapassada pela realidade". Quanto à recusa da mulher de indicar presumíveis pais perante um delegado do MP, Alípio Ribeiro diz-nos: "Penso que esta é a grande liberdade das mulheres. A grande vingança."

Por mais avançadas que se tornem as técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), por mais consensuais que se tornem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o investigador do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, António Amorim, insiste na ideia de que as mulheres não deveriam poder recusar-se a nomear o pai dos seus filhos. "É óbvio que as tecnologias permitem sofisticar os crimes e uma mulher sozinha, mesmo que proibida de o fazer cá, pode ir a Espanha engravidar por via da PMA, mas isso não significa que deixe de ser crime. Argumentar que, como é mais fácil violar a lei agora, com as inseminações artificiais e coisas do género, então a lei é que deve ser mudada parece-me patológico: ou concordamos com a bondade da lei ou não. E, na minha opinião pessoal, a associação a uma única pessoa de um parentesco que, não só biologicamente mas socialmente deve ser repartido, é um retrocesso e não um progresso."

Ainda António Amorim: "A paternidade, nos termos do contrato social em vigor, não obriga à coabitação, esgota-se nisto: a criança, no seu registo de nascimento, fica ligada a um pai e a uma mãe. A mulher pode não querer porque, uma vez definida a paternidade, o homem adquire deveres mas também direitos sobre essa criança, mas a mulher não deve esquecer que está a decidir pelo seu filho e que, mesmo negando-lhe o direito à identidade biológica da parte do pai, este pode, quando atingir a maioridade, desencadear a sua própria acção de investigação da paternidade. Esses casos são uma minoria casuística, diria mesmo que até patológicos, mas lamento que, tanto quanto sei, até agora nenhuma mãe tenha sido chateada perante a lei por não divulgar a identidade do presumível pai ou dos presumíveis pais do seu filho."

Devia haver aqui procedimentos sancionatórios? "Se para todos os outros há, se quando uma testemunha falta a uma audiência há, como é que se justifica esta excepção?"

Do mesmo modo, e ainda em defesa do direito da criança a conhecer a sua identidade biológica, António Amorim diz que gostava de ver jurisprudência definida quanto ao que acontece aos pais que, mesmo instados pelo MP, recusam submeter-se à prova do ADN. "Há despachos contraditórios sobre isso. Na medida em que estes testes nem são muito intrusivos - um depoimento perante terceiros é mais invasivo da intimidade - e considerando ainda que os testes são feitos em circunstâncias que em princípio não envolvem nenhum escândalo público, julgo que a sua realização deveria ser tornada obrigatória", preconiza. A este propósito, Alípio Ribeiro sustenta que a regra, face à recusa do presumido pai, é fazer uma inversão do ónus da prova, ou seja, "funciona contra ele, porque a melhor maneira de ele provar que não é o pai da criança é sujeitar-se ao exame".

Portugal não é o único país da Europa a contemplar estas acções oficiosas de paternidade, mas torna-se atípico, segundo António Amorim, por ser o único a adiantar os custos dessa pesquisa. "Nos outros países da Europa, é a mãe que tem de se mexer se quiser nomear o pai da sua criança, portanto, ela é que tem de gastar o dinheiro, o que significa que as mães com menos possibilidades se encontram claramente discriminadas", explica, para assumir o receio de que, "por causa de problemas casuisticamente irrelevantes, se fazer desinteressar o Estado do assunto". "Significaria isso que muitas mulheres com poucas posses ficarão com o seu filho inteiramente a cargo. E convém não esquecer, já agora, que uma fracção dos pais que passam por estes testes de ADN fica hesitante quanto à paternidade mas até está disposta a assumi-la assim que dissipadas as dúvidas."

Não fosse então esta "ingerência" do Estado, seriam muitos mais os filhos de pais incógnitos. Por isso, por mais deficiências que possa apresentar o sistema, António Amorim defende a sua continuidade.

Quanto à incapacidade de obrigar estes "pais à força" a envolverem-se financeira e afectivamente na vida daquela criança, nada a fazer. "O Estado não pode mudar a cabeça das pessoas. Se um fulano não quer assumir a paternidade, não assume, mesmo que tenha sido obrigado a ter o seu nome no registo daquela criança. Quando muito, o Estado pode contribuir para que ele contribua para os aspectos económicos da educação, mas mesmo essa capacidade, se ele não tiver rendimentos que possam ser cativados, é muito limitada", diz Amorim. Em suma: "Estamos a pedir a Lua. Não se pode obrigar ninguém a gostar de ser pai."

Alípio Ribeiro concorda. "É evidente que a lei pode dizer a uma criança "tens um pai", mas não pode impor a afectividade, do mesmo modo que não pode impedir que as relações entre pais e filhos se deteriorem numa situação de divórcio. O que está ao alcance da lei é garantir a uma criança o direito de chegar à escola e dizer ao professor: "O meu pai é o Manuel Joaquim. Pode não me ligar absolutamente nada, mas é o meu pai"."

É mais ou menos esse o futuro que A., com uma acção de averiguação oficiosa a decorrer num tribunal de Vila Nova de Gaia, vislumbra para o seu filho, com dois meses de idade. "Quem tomou a decisão de ter o bebé fui eu, logo não posso obrigar o pai a estar presente na vida dele", contou à revista 2. O que ela pode fazer: obrigar o pai a fazer constar o seu nome no Bilhete de Identidade do seu filho. "Quando os miúdos na escola perguntarem ao meu filho "Quem é o teu pai?", quero que ele seja capaz de responder."

O bebé nasceu de uma relação adúltera - o pai é casado com outra mulher de quem tem dois filhos. "Ele queria que eu abortasse e eu fui contra a vontade dele. Deixou de me falar. Durante a gravidez, falámos três ou quatro vezes por telefone, com ele a dizer-me que não queria o bebé e que nunca o iria assumir." Quando o processo chegou ao Ministério Público, o pai voluntariou-se para estar presente. Vai agora submeter-se ao teste de ADN para dissipar dúvidas. "O bebé tem dois meses e ele ainda não o viu. Tive-o contra a sua vontade, mas não o fiz sozinha, não fui a nenhum banco de esperma para engravidar, por isso preferia que ele tivesse estado presente quando o fui registar. Felizmente, não tenho necessidade de o obrigar a comparticipar nas despesas; em relação à sua presença na vida do meu filho, preferia que assim fosse, mas não o posso obrigar."

A presença do pai pode continuar a ser uma incógnita, o nome não.

Nota: Os casos concretos de Tomás, Tiago, Fernando, Sameiro e Sónia são apresentados sob nome fictício e foram retirados do artigo académico Da vontade de saber à verdade conhecida, publicado em 2012 por Helena Machado, Ana Brandão e Alessandra Faria, no livro Testes de Paternidade - Ciência, ética e sociedade, coordenado por Helena Machado e Susana Silva (Humus, V. Nova Famalicão)

É crime esconder paternidade?

Bom, logo de início, já respondemos: mentir sobre a paternidade não é crime, entretanto, a conduta gera efeitos na esfera cível. Ou seja, mentir ou omitir informações sobre a paternidade pode gerar condenação de reparação civil, com o pagamento de indenização ao sujeito enganado.

Quais são os direitos do pai durante a gravidez?

Para acompanhar consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez da esposa ou companheira, o futuro pai tem direito a até dois dias de afastamento remunerado, segundo a Lei 13.257/16. Além disso, pode faltar um dia de trabalho por ano para acompanhar o filho até seis anos de idade.

Quando a mãe esconde o filho do pai?

Caso seja desrespeitada a decisão do juiz, e o pai ou mãe estejam impedindo o outro genitor de ter contato com o filho, poderá ser fixada multa diária por descumprimento ou mesmo busca e apreensão do filho no dia que seria dada a visita.

Estou grávida e não quero ter contato com o pai?

O Projeto de Lei 2287/21 considera como atos de alienação parental impedir o genitor de acompanhar o pré-natal e o nascimento de seu filho e também obstruir o acesso a informações médicas sobre a gestação e demais necessidades da genitora durante a gravidez.