O que indica o relato abrangeu o período de um dia na vida dos índios?

Apresentação

Povo resistente, das terras áridas do sertão potiguar, os Caboclos têm se mostrado firmes e determinados na mobilização étnica e política no RN. Sua história é marcada pelo enfrentamento cotidiano com problemas decorrentes das constantes estiagens e pela dificuldade em acessar faixas de terras para o efetivo desenvolvimento de atividades agrícolas, pastoris, pesqueiras. Os Caboclos têm canalizado seus esforços na luta pelo reconhecimento de seus direitos como povo indígena, a partir da manutenção das famílias em seu território e por meio de sua organização política.

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Denominação

O uso do nome “Caboclos” como autodesignação pelos indígenas de Assu indica uma forma de se referir a uma distintividade social e cultural em relação à população circundante e a uma identificação histórica e parental com as famílias, tidas como “diferentes”, que viveram na região às margens do rio Paraú.

A distintividade dos Caboclos em relação aos moradores dos sítios que estão no seu entorno aparece, dentre outros aspectos, por um termo de classificação. Eles eram e são chamados pelos não-índios de “Tapuias”. Tal classificação deve-se à concepção de que eles possuem características físicas e determinadas práticas e valores sociais singulares que os diferenciam das demais pessoas que estão no seu entorno.

Dentre as características acionadas para reconhecimento da singularidade dos caboclos podemos citar a baixa estatura, os pés chatos que “mais parecia um bolão” e o “nariz labrojeiro”, mulheres “abalofadas”, de cabelos pretos e longos e isso faz com que o modo de ser caboclo seja reconhecido e destacado. No tocante às práticas e valores sociais, são mencionados os seus hábitos alimentares, suas práticas matrimoniais (casamentos endogâmicos, preferência por primos) e a liberalidade sexual das mulheres. Ao serem classificados como “Tapuios”, recai sobre a identificação dos caboclos uma forma de depreciação que indica uma especificidade e uma certa ideia de inferioridade. Com isso, estabelece-se uma fronteira (étnica) entre a comunidade e as demais localidades de seu entorno, reverberando em atitudes depreciativas, em rixas e desconfianças.

Já o termo “Caboclo” é usado pelos próprios moradores da comunidade para se referir a sua origem indígena, a qual decorre “Caboquinha pega a casco de cavalo”. O nome Caboclo foi incorporado como apelido pelos mais velhos. Como afirma Antonio Luiz Lopes, conhecido como Zamba:

Somos identificado como índio por isso. Nós trouxemos esse nome [de caboclo] do início, da geração, de lá pra cá, uns acha que a gente é tapuia, outra que a gente era turco, mas não tem nome de tribo de índio; somos tudo caboclo mesmo por causa da “caboquinha da mata”.

A caboquinha Luíza, tida como a “mãe veia caboca”, foi a “que semeou tudo aqui” (Antonio Neto), constituindo uma família diferente, cuja marca distintiva é o “sangue de caboclo”. É esta a diferença que próprios caboclos e o não-caboclos residentes no entorno da comunidade demarcam com bastante ênfase. Quer dizer, ser caboclo é ser de uma família originada de uma cabocla, conferindo-lhe nome aos seus descendentes.

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Localização e histórico da ocupação

A aldeia Caboclos de Assu está localizada entre os municípios potiguares de Assu e Paraú. Essa localização guarda estreita relação com os processos históricos identificados no período colonial, marcados pela interiorização da colonização, por meio da fronteira de expansão pastoril e pelos intensos conflitos de resistência indígena à expansão colonial nos séculos XVII e XVIII.

O modelo econômico adotado pelos portugueses era a cana-de-açúcar desenvolvida no litoral, restando à introdução da atividade pastoril como saída econômica para exploração do interior. Para tanto, necessitaria de terras em grande extensão para desenvolver economicamente e demograficamente a Capitania, bem como implantar definitivamente a posse do Rio Grande povoando, especialmente, o interior.

A partir de 1680 as doações de sesmarias vão se intensificar, incomodando os índios que residiam ao longo dos rios. As próprias características do semiárido nordestino, tais como, escassez d’água e vegetação rasteira e cactácea, determinariam a rápida dispersão dos criadores de gado por todos os campos do Rio Grande e a consequente expansão econômica do sertão interiorano. Foram criados alguns núcleos em torno dos quais encontraríamos um curral, algumas palhoças para as famílias de vaqueiros. Os currais se espalhavam também rapidamente ao longo dos riachos comprometendo a posse do território por parte dos índios.

A criação de gado despontava como principal atividade econômica capaz de assegurar a subsistência da colônia, que já começara a prosperar com a cana-de-açúcar, seguida do aumento significativo da população não-indígena. O gado e também os cavalos passaram a constituir animais para corte como para prover animais de montaria e de tração. Vale salientar que a pecuária já havia sido desenvolvida no interior da capitania pelos holandeses, decorrente da qualidade do solo não ser favorável ao cultivo da cana de açúcar e a necessidade de suprir as demandas do litoral de Pernambuco; foram também os holandeses que iniciaram a extração do sal no rio Açu e, posteriormente, ampliada pelos portugueses.

A fronteira de expansão pastoril implantada naquele momento não era simplesmente buscar e frear índios como as bandeiras, mas ocupar efetivamente a terra, não sendo do interesse do colono o concurso do índio como mão-de-obra. As consequências são contundentes ou mesmo trágicas para os índios, uma vez que havia uma ameaça frontal à posse efetiva do território, implicando na privação de atividades de subsistência importantes como a caça e a pesca e na perda significativa do território decorrente da fixação de curraleiros e do gado criado solto. Os índios constituíam barreiras à expansão da pecuária.

A ocupação da terra para o desenvolvimento da pecuária e o uso da mão-de-obra leva a entender o levante de índios sertanejos tapuia chamado de “Guerra dos Bárbaros”, “Guerra do Açu” ou “Confederação Cariri” como palco marcado por relações conflituosas de poder. Ou seja, paralelamente à guerra com os índios, tinha-se uma guerra intensa entre os próprios colonizadores e desbravadores dos sertões. O governo português conseguiu equilibrar os interesses dos agentes colonizadores envolvidos na ocupação do sertão, tomando posições mais firmes com os colonos e indígenas quando o conflito já estava ao fim e as terras asseguradas. O conflito entre o paulista e mestre-de-campo Manuel Álvares de Moraes Navarro com o sesmeiro e Capitão-mor do Rio Grande, Bernardo Vieira de Melo, fundador do arraial no Açu, e de posse da maioria das terras dessa região, denota as disputas pelo poder entre Mestres-de-campo e Capitães-mores, nas quais se acrescenta ainda as reivindicações de sesmarias feitas pelos moradores, que se achavam os verdadeiros conquistadores das terras.

A má distribuição das terras permitiu a existência de imensos latifúndios desocupados, impactando diretamente os índios que residiam na região. A lei de 9 de janeiro de 1697, que impedia a doação de sesmaria, não tinha efeito retroativo e, portanto, não pôs fim ao latifundiarismo existentes no Rio Grande. As sesmarias, que já haviam sido doadas antes de 1697, estavam garantidas e, consequentemente, os latifúndios foram assegurados.

Há nos registros históricos a concessão das seguintes sesmarias nessa região para:

1. Domingos de Azevedo do Vale: “A sesmaria localizava-se na ribeira do Assu, abrangendo uma parte, correspondente a uma légua e meia, da data do sargento-mor Bento Teixeira Ribeiro e seu socio Manuel Neto da Cunha, concedida pelo capitao-mor Andre Nogueira (da Costa), em 06/09/1710, no riacho chamado Parau (RN 0094), que foi prescrita por nunca ter sido povoadas e encontrar-se devoluta. As terras requeridas avancavam do dito riacho até confrontar com as terras do próprio suplicante, Domingos de Azevedo do Vale (RN 0922), com tres leguas de comprimento - uma legua e meia das referidas terras prescritas e uma legua e meia de terras devolutas - e, de largura, meia legua para cada banda do riacho Parau. (REQUERIMENTO de Domingos de Azevedo do Vale ao rei [D. João V] pedindo confirmacao de carta de sesmaria de terras no riacho Parau, na ribeira do Acu, doadas pelo capitao-mor Luis Ferreira Freire. AHU-RN, Cx. 3, D. 218.). O sesmeiro recebeu duas concessões: uma no riacho Parau, em 1719 (RN 0922); e uma no sitio Rabo de Bugia, em 1735 (RN 0409). Em ambas as cartas (RN 0922 e RN 0409), segundo informa os documentos, não aparecem a ocupação, nem onde o sesmeiro morava

2. Carlos de Azevedo [do Vale]. A sesmaria requerida possuía três léguas de comprimento com uma legua de largura, no riacho do Parau, na ribeira do Assu, confrontando com as terras de Bento Teixeira Ribeiro, conhecidas como Beldroegas, e confrontando com as vargens das caraubas do riacho Parau, o qual desaguava no rio Assu (REQUERIMENTO do coronel Carlos de Azevedo [do Vale] ao rei [D. Joao V] pedindo confirmacao de carta de sesmaria de terras, no Riacho Parau, na Ribeira do Acu, doadas pelo capitao mor Joao de Teive Barreto e Menezes. AHU-RN, Cx. 3, D. 222). O sesmeiro recebeu três concessões: uma no rio Pium, em 1711 (RN 0099); uma no riacho do Parau, em 1735 (RN 0924); e uma no riacho de Gaspar Lopes, em 1737 (RN 0930).

3. Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti. A sesmaria estava localizada no perímetro: "Ribeira do Açu, RIACHO PARAÚ, sobras três léguas pegando da Lagoa Jabotá, entre a Serra do Macaco e o Serrote do Riacho, Pedra Lisa, Riacho Salgado, e pelo Riacho de Beldroega acima, buscando a Serra de JOÃO DO VALE, Olho-dagua São José e os três Boqueirões que saem para o Rio do Açu". Blogspot - ROGÉRIO PARAÚ.

Foram nessas sesmarias que se tornaram latifúndios em torno do rio Paraú que os Caboclos de Açu se mantiveram há pelo menos seis gerações. No relato de idosos, foram indicados diversos movimentos migratórios como indicadores da fixação da primeira família na área em que atualmente residem. Dois movimentos migratórios apresentam significados históricos e culturais importantes para a compreensão de tal: o primeiro compreendeu deslocamentos das ribeiras do Rio Upanema, devido, as expulsões promovidas por ocupantes das terras e, o segundo, por expulsões e destruições de casas e roças dos indígenas na Serra da Cepilhadeira, atual Serra de João do Vale. Para essa situação, há na tradição oral o registro de “grandes queimadas” que fizeram com que os índios abandonassem suas casas e os que ficaram foram perseguidos e eram facilmente encontrados e escravizados pelos fazendeiros, pois eram “selvagens”.

Na tradição oral do grupo, o casal fundador da comunidade Antônio Francisco e Luiza, além de outros índios que habitavam a ribeira do Rio Upanema e/ou regiões serranas próximas à ribeira do Açu, foram expulsos de suas aldeias por supostos donos de terra. Fala-se que Antônio Francisco, apesar de ser considerado “civilizado” é originário da região de Upanema, onde residia com sua família, que também era indígena, e Luíza da região da Serra de João do Vale. As narrativas que dão conta da “tapuia selvagem” e o “caçador/vaqueiro civilizado” explicitam uma acepção na qual a ênfase nos componentes “naturais” da “índia tapuia” supõe uma alteridade radical que recai, de um lado, ao que é classificado como Tapuio (Luíza) – que compreende os índios selvagens) – e como Tupi (Antônio Francisco) – que abrange os índios civilizados.

Sobre o casal fundador, as narrativas apontam que Luíza era uma “tapuia braba” ou uma “caboquinha da mata” que foi perseguida, capturada e domesticada por um vaqueiro, de nome Antônio Francisco, “a dente de cachorro” e a “casco de cavalo”. É em torno dessa captura que os Caboclos de Açu estão demarcando sua especificidade étnica e sua origem indígena. A “tapuia” ou “caboquinha” vivia dentro de “furnas” (uma espécie de caverna) e foi capturada por um “civilizado” que foi o responsável por sua domesticação; os mais velhos apontam a furna da Gargantinha, localizada numa das fazendas da região, como local da captura; em alguns lajeiros existentes próximos à furna e noutros locais das fazendas, é comum encontrar, segundo alguns caboclos “pilões” nas pedras, onde eram preparadas as refeições, sendo indicados, como a furna, como marcas da presença indígena na região.

Além de ser um lugar de esconderijo, a furna acima referida foi um local utilizado pelos índios como “rancho”. A “furna dos índios”, como é também chamada a furna da Gargantinha, servia como espaço de descanso nas longas e cansativas caminhadas dos índios que procuravam acessar as matas fechadas, as serras e a “caatinga” no intuito de caçar e coletar frutos e plantas comestíveis como alguns tipos de cactos; na Serra do Coronel ou do Olho D’Água mais próxima à comunidade, há dois grandes e antigos cajueiros, que foram plantados pelos índios, próximo a um olho d’água. Na região da “caatinga”, que se situa hoje próximo à BR 304 (que liga Natal à Mossoró), os índios chegavam a permanecer por um período mais longo no intuito de desenvolver atividades agrícolas, especialmente, nos períodos de maior estiagem, por esta região possuir água favorável e o solo mais fértil.

A ocupação das terras por fazendeiros ocorreu a partir de duas formas principais: na primeira, os fazendeiros que, na sua maioria, ostentavam o título de coronel, possuíam forte influência política na região e diziam que aquelas terras eram de sua propriedade. Os fazendeiros também os recrutavam para os trabalhos nas suas terras, especialmente, na edificação de cercas de pedra, na limpeza do mato, na abertura de estradas, dentre outros. A relação de dependência dos índios aumentava à medida que os fazendeiros dispunham de mercearia e eram descontados os valores que deveriam ser pagos pelo trabalho nas compras de gêneros alimentícios; era também comum o trabalho ser trocado por “prato de comida”. E na segunda forma de ocupação, pessoas que se diziam parentes dos indígenas aproveitaram a situação de agonizante de donos de terras e demandavam o direito de herança dos bens.

A despeito destas ocupações, os Caboclos de Açu se mantiveram no local onde atualmente residem, resistindo às condições desvantajosas de trabalho, seja nas atividades agrícolas e pesqueiras, uma vez que tudo que ainda é produzido e pescado tem que ser dividido com os fazendeiros, seja nos trabalhos realizados para estes, considerando que não havia pagamentos em moeda corrente, mas troca por “prato de comida” e por produtos que o próprio fazendeiro comercializava em sua mercearia.

Na tradição oral dos Caboclos, para a delimitação das fazendas foi utilizado o trabalho braçal dos próprios caboclos. As cercas de pedras muito comuns no território são indicadores importantes do uso desse trabalho na configuração das fazendas e na organização e divisão dos espaços.

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Organização social e política

A aldeia dos Caboclos é formada por descendentes de um tronco comum, o do casal Antônio Francisco e Luiza, constituindo, na visão dos indígenas, “a grande família de caboclo” gerada por uma “cabocla”. O casal teve 04 (quatro) filhos (Pedro Caboclo, José Caboclo, João Caboclo e Antonio Turco) e 05 (cinco) filhas (Joana, Maria, Cândida, Júlia e Damásia).

Em 2019, a aldeia contava com a seguinte população:

POPULAÇÃO
Indígena Não indígena
Famílias Pessoas Famílias Pessoas
40 96 06 33
Fonte: Adriano Lopes (liderança local)

Em um levantamento genealógico realizado nos anos de 2011 e 2013 pelos pesquisadores José Glebson Vieira e Jailma Nunes Oliveira, a população indígena era composta por 37 famílias indígenas e 115 pessoas. Aproximadamente 90% demarcavam vínculo parental com três filhos de casal Antonio Francisco e Luíza: “Pedro Caboclo”, “Zé Caboclo” e “João Caboclo”, os quais constituem os “troncos velhos”, sendo chamados de bisavós, avós, pai e mãe. Os demais 10% dos moradores que os reconhecem como “ascendentes próximos”, sendo chamados de bisavós, avós, pai e mãe. Os 10% restantes apontam para o vínculo genealógico com as irmãs “Cândida Cabocla”, “Antonia” e “Maria Cabocla”, igualmente filhas do casal fundador e reconhecidas como “troncos velhos”.

Entre os indígenas, há uma preferência matrimonial por primos, com parentes próximos, casamento avuncular (com tio e sobrinha, tia e sobrinho) e conjunto de irmãos com conjuntos de irmãs, relação entre enteados, dentre outros arranjos.

A distribuição das casas obedece uma lógica de parentesco, notadamente a partir da constituição de grupos domésticos composto por um casal mais velho e em seu entorno, os/as filhos/as casados/as levantam suas casas. A área onde as residências estão erguidas pertence a própria comunidade, graças a aquisição por parte da Prefeitura Municipal de Assu e a doação à Associação Comunitária Caboclos. Já as áreas de produção agrícola, extrativismo, caça e pesca são de fazendas. Apesar disso, os usos de áreas para cultivo e outras atividades produtivas têm se mantido de forma contínua, cuja ocupação replica a organização da aldeia, quer dizer, cada família pertencente a um grupo doméstico trabalha em determinada área: em geral, trabalham juntos, pai, filhos/as solteiros/as e casados/as (com seus/as respectivos/as cônjuges), netos/as, sobrinhos/as de primeiro grau.

A organização política dos Caboclos guarda estreita relação com sua organização social. O casal fundador, Antonio Francisco e Luíza, exercia a liderança política, por ser o “tronco principal”, promovendo mediação das famílias junto aos fazendeiros, para o acesso a determinadas áreas a serem cultivadas, aos açudes para a prática da pesca, como também os envolviam em compadrio. Desde então, configurou-se uma histórica e persistente relação de patronagem a que as famílias dos Caboclos estavam/estão envolvidas ou implicadas, a partir de relações patrão/morador: como trabalhadores na própria fazenda, depois por arrendamento (meação). O patrão é o dono da terra, na qual se dá o direito de poderem usufruir economicamente, mas sendo realizado algumas obrigações, como por exemplo, trabalho nas terras de forma gratuita, pagamento de meação. Essa relação se sustenta por uma série de práticas e valores, como aquelas envolvidas, nas expectativas mútuas, nos valores e em um simbolismo expresso até mesmo nos laços de compadrio.

Após a morte do casal fundador, a liderança passou a ser exercida pelos/as filhos/as do casal que se mantiveram na aldeia. Foram eles/as: Pedro Caboclo, João Caboclo, José Caboclo, Maria, Cândida e Joana; duas filhas e um filho do casal migraram da aldeia para cidades potiguares como Mossoró, Riachuelo, Itajá, dentre outras. Porém, a maior família na aldeia, era de Pedro Caboclo, resultado de quatro uniões matrimoniais, o que lhe conferiu maior destaque na aldeia. O sucessor de Pedro Caboclo foi seu filho Luiz (conhecido como Luiz de Pedro), que também constituiu uma numerosa família resultado de três uniões matrimoniais e que dela saiu a liderança que participou da mobilização étnico-política no Rio Grande do Norte, que foi Luiz Francisco da Silva Filho (conhecido como Luiz do Carmo).

Luiz do Carmo, filho de Luiz de Pedro, neto de Pedro Caboclo e bisneto do casal foi um dos fundadores da Associação Comunitária do Caboclo no início dos anos de 2000. É por meio da Associação Comunitária que sua liderança teve maior visibilidade e legitimação, face ao Estado, mas sobretudo, junto a mobilização de comunidades rurais que estava se iniciando quanto ao reconhecimento étnico no RN. Luiz foi o representante da comunidade junto às instituições públicas e organizações indígenas como APOINME, até ser sucedido por Antonio Adriano Lopes, filho de seu irmão (Antonio Lopes), portanto, tataraneto (filho do filho do filho) do casal fundador, que até hoje é o representante dos Caboclos.

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Ambiente, situação territorial e atividades produtivas

Os Caboclos de Açu habitam uma região semiárida entre as cidades de Paraú e Assu. A caatinga predominante é a Hiperxerófila que se caracteriza por uma vegetação de caráter mais seco, com abundância de cactácea e plantas de porte mais baixo; outras espécies também são encontradas como jurema-preta, mufumbo, marmeleiro, xique-xique e mandacaru, além da palmeira carnaúba; pequenas áreas são cultivadas com milho e feijão.

Trata-se de uma área não preservada decorrente do desenvolvimento da pecuária tanto pelos fazendeiros quanto por alguns moradores da comunidade. Em toda a extensão, as terras são destinadas, prioritariamente para a criação de animais (bovinos, ovinos e caprinos), não sendo preservadas inclusive as margens do rio e dos riachos. O desmatamento tem impactado diretamente o rio e os riachos uma vez que sem as matas ciliares observa-se o aumento do nível de erosão e do assoreamento das águas. As matas existentes estão cada vez mais atingidas pela ação de desmatamento, decorrente da comercialização da madeira destinada às fábricas de cerâmica; vale salientar que há na região do Vale do Açu o Polo Cerâmico Açu & Itajá que concentra uma quantidade significativa de estabelecimentos fabris e que tem demandado significativamente o corte indiscriminado de madeira que é fonte de combustível para os fornos das fábricas.

Outros dois fatores contribuem para a degradação da região. O primeiro decorre da concentração dos melhores solos nas mãos de poucos, forçando o uso de outras terras, marginais, gerando degradação ambiental, e o segundo devido à instabilidade climática, principalmente com relação à forma irregular com que as chuvas se distribuem na região, tanto temporal como espacialmente.

As famílias da aldeia ocupam faixas de terras transmitidas por herança ou de posse coletiva por pertencer a Associação Comunitária. As terras de herança foram de Pedro Caboclo que adquiriu uma faixa de terras que cruza de leste a oeste o rio Paraú e o Açude do Riacho, chegando até o pé da Serrota e foi transmitida para alguns de seus filhos, que ainda hoje mantém o domínio. A Associação Comunitária adquiriu uma área pequena onde se encontram algumas residências e, posteriormente, recebeu a doação de uma área estimada em 12,78 hectares pela Prefeitura de Açu, na qual está a maioria das residências da aldeia.

As faixas de terras que pertencem a algumas famílias indígenas por herança e as da Associação Comunitária são quase que exclusivamente para a moradia. As primeiras apresentam maior potencial para atividades agrícolas e também pastoris. Já nas terras da Associação há áreas pequenas por trás de algumas residências, que não oferecem condições para a produção agrícola de modo satisfatório, já que o solo é pedregoso, com fragmentos de rochas na superfície, e é rico em minerais, mas pobre em matéria orgânica devido às características da região. Nesses espaços, as famílias ocupam com a criação de aves, como galinha, guiné, também de suínos e caprinos.

As outras famílias desenvolvem atividades agrícolas em terras de fazendas próximas, as quais oferecem melhores condições de trabalho devido à proximidade com o rio Paraú, e com açudes. O rio não é perene, apresentando cheias apenas quando se observa uma quadra chuvosa significativa, que vai de janeiro a maio. A vazão de água do rio aumenta à medida que o Açude da Beldroega, que fica à montante, sangra, propiciando ainda mais a pesca e a abertura de roçados às suas margens que ficam dentro de fazendas. Além do rio Paraú, os açudes existentes no entorno da aldeia também são utilizados pelas famílias para a atividade pesqueira. Alguns açudes estão localizados nas fazendas e para o uso, os/as pescadores/as repartem o pescado com o fazendeiro, tal como se faz com a produção agrícola, cujo pagamento é realizado sob a forma de meação.

Além da pecuária extensiva de bois e bodes, da pesca artesanal, da agricultura extensiva de subsistência, algumas famílias desenvolvem o extrativismo de palha de carnaúba para produção de utensílios e outros objetos de uso doméstico e comercial, de semente de oiticica para produção de óleo e de xique-xique destinado à alimentação dos animais. O artesanato da palha da carnaúba tem se destacado como fonte de renda alternativa para as famílias, num esforço de convivência com o semiárido. Trata-se de uma atividade secundária que se vincula ao plantio, a pesca, a criação de bovinos e caprinos e ao extrativismo.

Provavelmente, o desenvolvimento secundário da atividade relativa à carnaúba decorre do fato das pessoas adquirir a matéria prima por meio de compra, tornando mais dispendiosa a produção e, consequentemente, a comercialização. Ao mesmo tempo, a restrição à matéria prima limita o aproveitamento da própria carnaúba, já que não se tem o registro da retirada da cera, da exploração do pó produzido após a secagem das palhas, nem do uso dos frutos, que são ricos em nutrientes, para ração animal e para a extração de óleo comestível, bem como da utilização das raízes para uso medicinal.

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Articulações no Movimento Indígena

A participação de três representantes dos Caboclos numa audiência pública em 2005 em Natal foi um marco na mobilização política da comunidade no RN. O evento contou com a presença de representantes das comunidades dos Eleutérios do Catu e Mendonça do Amarelão. Intitulando-se como “índios emergentes” (expressão utilizada por eles) do Rio Grande do Norte reivindicaram o reconhecimento de sua especificidade étnica e cultural e, por conseguinte, a garantia de políticas públicas diferenciadas. Sob a forma de um abaixo-assinado, os indígenas presentes ao evento demandaram aos deputados estaduais e aos representantes da FUNAI, do Ministério Público Federal (MPF), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Governo do Estado e da Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia CAI/ABA o reconhecimento e o desenvolvimento de ações diferenciadas.

A participação das três comunidades neste evento teve uma importância simbólica, não apenas para os representantes indígenas que ali estavam, mas também, para o cenário estadual e regional. Do ponto de vista dos próprios índios, as demandas por seu reconhecimento implicaram uma maior visibilidade à situação de resistência, na medida em que fatores históricos específicos foram (e são) acionados para demarcar a ascendência indígena como os vínculos com os antigos aldeamentos e as “vilas de índios”, e referências aos antepassados indígenas a partir de narrativas que enfatizam processos de expulsões, reocupações de áreas, migrações e violência que implicaram a perda do controle dos seus territórios e da submissão a grandes proprietários.

Para o cenário estadual e regional, a “emergência” das três comunidades indígenas subverteu o discurso oficial - que era respaldado pela historiografia – que sugeria a extinção ou o desaparecimento dos indígenas no Estado desde o período colonial. A “Guerra dos Bárbaros”, “Guerra do Açu” ou “Confederação Cariri” é vista como o principal acontecimento que pôs fim aos índios no Estado junto com a ocupação extensiva do sertão. Por ser uma guerra justa, os sobreviventes foram obrigados a trabalhar como escravos em canaviais ou nas missões religiosas. Na metade do século XVIII, compartilhou-se a ideia de que os índios já se encontravam dominados nos aldeamentos, sofrendo as consequências da perda do seu território.

Desde então, lideranças e outros indígenas da aldeia têm participado das atividades e mobilizações do movimento indígena, como as audiências públicas, assembleias indígenas dos povos do Rio Grande do Norte, assembleias de mulheres e jovens indígenas, dentre outros. A liderança da aldeia integra a Articulação dos Povos Indígenas do RN (AIRN) criada em 2017.

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Autor

José Glebson Vieira

Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN.

Referências

AZEVEDO, Pietra. INDÍGENAS DO RN: A RESISTÊNCIA DA CULTURA NATIVA NA ATUALIDADE. Anais do II Simpósio Interdisciplinar de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas, 2014, Mossoró/RN. Mossoró: UERN/BC, 2014. v. 1. p. 554-561.

OLIVEIRA, Jailma N. V. 'Ser índio' e 'ser caboclo' potiguar: história indígena e o processo identitário na comunidade dos Caboclos do Assú. Mneme (Caicó. Online), v. 15, p. 166-190, 2014.

OLIVEIRA, Jailma Nunes Viana; VIEIRA, José Glebson. Identidade indígena, memória e territorialização: a construção do “ser índio” na comunidade dos Caboclos de Açu/RN. In: Anais do XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste e Pré- Alas Brasil, Teresina/PI. 2012. v.1. p. 1-16.

OLIVEIRA, Jailma Nunes Viana; VIEIRA, José Glebson. Memórias da emergência indígena: parentesco, etno-história e identidade na Comunidade dos Caboclos do Riacho de Açu-RN. Anais do VIII Salão de Iniciação Científica da UERN. Mossoró: Edições UERN, 2012. v.1. p. 528-534.

SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização do Assu colonial 1680-1720. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História, Natal, RN, 2015.

VIEIRA, José Glebson. A presença indígena no Rio Grande do Norte. In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany. (Org.). Povos Indígenas no Brasil 2006-2010. 1.ed.São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011, v. 1, p. 508-509.

VIEIRA, José Glebson. Qualificação de reivindicação: Comunidade Caboclos de Açu - Rio Grande do Norte. Brasília: FUNAI, 2013 (mimeo).

VIEIRA, José Glebson; KOS, C. V. N. M. Invisibilidade, resistência e reconhecimento indígena. In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany. (Org.). Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016. 1ed.São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017, v. 1, p. 519-522.

Como referenciar

O que indica que o relato abrange o período de um dia na vida dos índios?

Resposta verificada por especialistas. O que indica que o relato abrangeu o período de um dia na vida dos índios é a forma simples como vivem. Trechos do texto que comprovam a resposta: "não existe sinal de celular, internet nem smartphones."

O que é o que é relatado no texto?

Narrar ou expor de modo oral ou escrito; realizar a narração de: relatou o crime ao delegado; relatou à reitoria a briga dos estudantes.

Como você acha que os indígenas passaram a se sentir?

Os indígenas até se dispuseram a ajudar os portugueses, e foi o que fizeram durante a extração do pau-brasil, trabalharam junto aos que os colonizariam muito em breve, mas que ainda não deixavam isso muito claro, pois não conheciam a riqueza daquelas terras, desse modo, os indígenas só passariam a se sentir mal com o ...