Qual metáfora teatral O sociólogo Erving Goffman usa para descrever como apresentamos nosso eu no dia a dia?

Qual metáfora teatral O sociólogo Erving Goffman usa para descrever como apresentamos nosso eu no dia a dia?

Quem realmente sou? Sou a mesma pessoa de quando nasci? Sou o mesmo colega de escola? Sou o cara chato do trabalho? Sou o romântico piegas? Sou o capitalista selvagem bem-vestido? Sou o palhaço da roda de mate? Sou o palestrante autoridade em minha área?  Sou o atrasado nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos? Sou o filho de fulano, sobrinho de beltrano? Sou o bacharel em ciências esquecidas?– papéis que servem a qualquer um, definem o ser (self), mas quem realmente sou?

O sociólogo canadense Erving Goffman (1922 –1982) encontrou essas respostas na dramaturgia. Sua impressionante obra A representação do eu na vida cotidiana (1956) remete às linhas da peça Como gostais de Shakespeare sobre as sete idades do homem para a metáfora do teatro social:

O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo: sete atos, sete idades.

Na primeira, no braço da ama grita e baba o infante.

O escolar lamuriento, após, com a mala, de rosto matinal, como serpente se arrasta para a escola, a contragosto.

O amante vem depois, fornalha acesa, celebrando em balda dolorida as sobrancelhas da mulher amada.

A seguir, estadeia-se o soldado, cheio de juras feitas sem propósito, com barba de leopardo, mui zeloso nos pontos de honra, a questionar sem causa, que falaz glória busca até mesmo na boca dos canhões.

Segue-se o juiz, com o ventre bem forrado de cevados capões, olhar severo, barba cuidada, impando de sentenças de casos da prática; desta arte seu papel representa.

A sexta idade em mangas pantalonas, tremelica, óculos no nariz, bolsa de lado, calças da mocidade bem poupadas, mundo amplo em demasia para pernas tão mirradas; a voz virial e forte, que ao falsete infantil voltou de novo; chia e sopra ao cantar.

A última cena, remate desta história aventurosa, é mero olvido, uma segunda infância, falha de vista, dentes, gosto e tudo.[1]

Para Goffman, a interação de um indivíduo com os outros determina qual papel atuar. Esse papel transcende as fases da vida, sendoantes papéis cotidianos. São rituais sociais, etiquetas, conversações fáticas ligam indivíduos que respondem às expectativas recíprocas. Mesmo quando falo sobre alguém, revelo muito sobre mim: meu conhecimento, os caminhos de como o adquiri, minhas intenções (explícitas ou não) da razão para tocar em tal assunto, como quero ser entendido e tratado.

Nesse complexo teatro, Goffman salienta como nos policiamos com a gestão da imagem (impression management). Imagine um primeiro encontro: ambos tentam parecer relaxados, seguros de si e mostrarem seu melhor lado. Para isso usamos veículos de sinais: roupas chiques, reuniões em palco-restaurante da moda, conversas que assumimos que o outro entenderá como divertidas e inteligentes.

As expressões de surpresa, aprovação, ironia, desgosto à medida que interagimos formam a opinião alheia sobre nós. E temos consciência disso. Por isso, gerenciamos nossa fala, ponderamos nossos gestos e monitoramos nossas reações. “Futebol americano?! Amo assistir o superbowl!” Mas por dentro: “ai, tomara que não me pergunte nada sobre times ou regras, nunca entendi esse esporte. Espero que o assunto morra logo”.

Pode parecer maquiavélico, mas segundo Goffman toda nossa atuação é para atingir nossos objetivos, bem como para construir uma autopercepção coerente para a sociedade e, dessa forma, nos conformar com suas normas. Consequentemente, nessa performance evitamos momentos embaraçosos.

Goffman distingue palco de bastidores. Se no contexto dos cenários o professor tem a sala de aula, o pregador o púlpito, o réu o banco do juízo, o figurino também constrói o papel: o jaleco, a toga, o uniforme prisional. Cada um sabe o que fazer nessas situações, como se comportar e espera que outros no palco também cumpram seu papel. Seria inusitado o professor abrir uma marmita durante a aula, o pregador sentar nos degraus para jogar no celular, o réu aproveitar o microfone de depoimento para fazer um show de stand up comedy. No palco, apresentamos o personagem mais conveniente.

Nos bastidores relaxamos. Usamos roupas de mendigo em casa, somos “autênticos”, compartilhamos comentários maldosos com quem realmente temos intimidade. Nos bastidores remoemos nossas desculpas para diminuir nossas responsabilidades em atuações faltosas ou buscamos justificação para validar nossos atos como se bons fossem. Nesse espaço fabricamos uma representação para fora. Arrumamos nela nossos trajes, maquiagem e figurinos. Ensaiamos nossa performance para evitar gafes ou passos em falsos, que descubram nossas imperfeições. Devemos atuar de modo mais verossímil possível.

Troca de favores, apresentações de si que não condizem com a realidade, puxa-saquismo e autolouvor seriam estratégias para aumentar o ego. Vivemos nos monitorando e somente para poucos abrimos boa parte de nossas intimidades. Com essas táticas conseguimos conviver com diferenças, ascender em status, ter reconhecimento social e aceitar o que não podemos mudar.

Diante de nós está a plateia, digamos, outro nome para a sociedade fora de nós e de nossas interações imediatas. Com essa circunspecção dramatúrgica nos preparamos para uma entrevista de emprego, para pedir alguém em casamento, para reclamar com o vizinho do barulho.

Os limiares, as regiões fronteiriças e as situações de inversão de papéis permitem atuar com outro eu.

Sendo o sujeito o centro do conhecimento, o próprio ato de conhecer é limitado pelo contexto situacional e pela interação social. Assim, não há uma clara divisão entre as racionalidades científica e a cotidiana. Esse entendimento é a base para a epistemologia de Goffman. Em sua análise de quadros e sociologia da vida cotidiana propõe examinar os quadros (frames) da organização cognitiva das nossas experiências. Assim, esses quadros formados pela experiência cotidiana moldam os entendimentos a respeito do mundo — como o localizamos, percebemos, identificamos, descrevemos e interpretamos. Todavia, embora os quadros referenciais sejam compartilhados nos confins de uma dada sociedade e cultura, há instâncias de sociedades que não consegue integrar esse compartilhamento, como as sociedades norte-americanas.

Diante de tantas variações das personalidades que assumimos (lembrem-se, persona era a máscara dos atores do teatro grego e romano), Goffman conclui que não há um verdadeiro eu: somos resultados da interação com outros e da imagem que fazemos de nós mesmos.

Ao remover todas as máscaras, desprovidos de todos os papéis nada somos, pois resultamos da interação social.

LEGADO

Dessa ideia delineou-se a corrente do interacionismo simbólico em sociologia ao assimilar conceitos da Escola de Chicago e de George H. Mead. Na antropologia, vemos influências de Goffman, em uma perspectiva microinteracionista nas abordagens transacionalista de Fredrik Barth e a antropologia simbólica de Turner e Geertz. Também as ideias de Goffman influenciaram a teoria da personalidade em psicologia e a teoria do self em filosofia. A teoria da estruturação de Giddens emprega a agência do ator na construção da estrutura social da realidade.

A dramaturgia social de Goffman é semelhante à teoria das representações sociais do psicólogo franco-romeno Serge Moscovici (1928 —2014). Em contraste com Moscovici, a análise de dramaturgia valoriza o sujeito na situação social, como teatraliza a vida. Por outro lado, Moscovici enfatiza o caráter de expressão coletiva na representação social, retomando o coletivismo sociológico de Durkheim.

Na criminologia, relações públicas, teoria da comunicação e psiquiatria as ideias de Goffman fizeram seus ecos.

TEORIA DO ETIQUETAMENTO

Nesse balanço entre o eu e a teatralização do cotidiano, mais tarde Goffman analisaria o estigma não limitado à dicotomia entre normais e estigmatizados, mas como um processo social onde no mínimo dois sujeitos assumem esses papéis. Em contrapartida há símbolos de prestígio. Assim, o criminoso só existe face aqueles que o julgam. O louco somente quando rotulado assim. Com isso, Goffman e depois Howard Becker consolidaram a teoria do etiquetamento (labelling approach). Basta “colar” uma etiqueta na pessoa que ela será vista e julgada por todos que reconhecem e atribuem significados a essa etiqueta. Mudar isso é difícil: fica o estigma.

Na reabilitação de indivíduos em instituições totais – prisões, reformatórios, hospícios e conventos (termo reminiscente de Foucault) – arrancam do indivíduo muito de sua capacidade de decisão. Sua escolha será em função das normas das instituições: quando acordar, com quem e como interagir, como se expressar. Ocorre a mortificação da identidade do indivíduo, reduzindo seus direitos civis à liberdade, à locomoção e à expressão. A violência, arbitrariedade e humilhação quebram o indivíduo a uma pessoa obediente. Rapam-lhe a cabeça, alteram suas roupas, retiram-lhe seus pertences – com a alteração simbólica de sua aparência pessoal, mortifica-se o indivíduo.

A mortificação do indivíduo contradiz com o ideal de reabilitação do apenado, do doente mental ou do desviante comportamental. Não estará pronto para viver em sociedade. Pior, ainda carregará o estigma de ex-institucionalizado. Isso explica as reincidências.

Todavia, há formas de resistência. Ao cumprir seu papel, o interno consegue manter sua personalidade ao acomodar-se à rotina e localizar em quem confiar e de quem manter distância. Como desidentificadores, símbolos que quebram a imagem forjada e apresentam uma forma positiva de si são usados dentro desse palco, para a própria sanidade psicossocial do ator. Por fim, o estigma molda o próprio “eu”.

SAIBA MAIS

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1983. Original:  The presentation of self in everyday life. Edinburgh: University of Edinburgh, 1956.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987. Original. Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates. New York: Doubleday Anchor, 1961

GOFFMAN, Erving. Encounters: two studies in the sociology of interaction. Indianapolis: Bobbs–Merrill, 1961

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.  Em inglês Stigma: notes on the management of spoiled identity. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice–Hall, 1963.

GOFFMAN, Erving. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981

GOFFMAN, Erving. Frame analysis: an essay on the organization of experience. New York: Harper and Row, 1974.

GOFFMAN, Erving. Gender advertisements. New York: Harper and Row, 1979.

GOFFMAN, Erving. Interaction ritual: essays on face–to–face behavior. New York: Doubleday Anchor, 1967.

GOFFMAN, Erving. Relations in public: microstudies of the public order. New York: Basic Books, 1971.

GOFFMAN, Erving. Strategic interaction. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1969

MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1978.

NOTA

[1] Fala de Jaques, Ato 2, cena 7 de Como gostais, para ler o original em inglês

All the world’s a stage

And all the men and women merely players.

They have their exits and their entrances;

And one man in his time plays many parts,

His acts being seven ages;

At first the infant, mewling and puking in the nurses arms;

And then the whining schoolboy with his satchel

 And shining morning face creeping like a snail

Unwillingly to school;

And then the lover, sighing like a furnace with a woeful ballad

Made to his mistress’ eyebrow.

And then the soldier….

And the justice….

The sixth age shifts into the lean and slippered pantaloon

With spectacles on nose and pouch on side

His youthful hose, well saved, a world too wide

For his shrunk shank, and his big manly voice

Turning again toward childish treble

Pipes and whistles in his sound.

Last scene of all, that ends this strange eventful history,

In second childishness and mere oblivion

Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything.

O quê Erving Goffman fala sobre a representação do eu na vida cotidiana?

De acordo com Goffman, o ator social tem a habilidade de escolher seu palco e sua peça, assim como o figurino que ele usará para cada público. O objetivo principal do ator é manter sua coerência e se ajustar de acordo com a situação. Isso é feito, principalmente, com a interação dos outros atores.

Qual é a relação entre a obra de Goffman a representação do eu na vida cotidiana e a peça de Shakespeare Como gostais?

Sua impressionante obra A representação do eu na vida cotidiana (1956) remete às linhas da peça Como gostais de Shakespeare sobre as sete idades do homem para a metáfora do teatro social: O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem.

Quais os papéis principais que realizam uma representação Segundo Goffman?

Segundo Goffman, numa representação social estão presentes três papéis principais: aqueles que representam, aqueles para quem se representa e os estranhos, que nem participam do espetáculo nem o observam. Segundo o autor, quem possui informação destruidora a respeito do espetáculo? Os estranhos. Todos os envolvidos.

Como o sociólogo Erving Goffman entende que a interação social é realizada?

A teoria da ação social, por Erving Goffman Esta interação que cada indivíduo realiza com seu ambiente o incentiva a buscar a definição de cada situação com o objetivo de conseguir controlá-la. Desta forma, tentamos gerir as impressões que os outros vão formar sobre nós.