É vedada a denominada desconsideração inversa da personalidade jurídica no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro?

31/08/17 | por | Doutrina | 7 comentários

A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO À LUZ DO NOVO CPC

Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas

Maria Eugênia Nassim Slattery

SUMÁRIO: Introdução. 1 Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios. 2 Desconsideração da Personalidade Jurídica; 2.1 Aquisição da Personalidade Jurídica; 2.2 Conceito de Personalidade Jurídica; 2.3 Origem Histórica; 2.4 Objetivo Final; 2.5 Pressuposto de Admissibilidade. 3 Desconsideração da Personalidade Jurídica no Ordenamento Brasileiro; 3.1 A Teoria Menor e a Teoria Maior. 4 A Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica da Empresa; 4.1 Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça; 4.2 Decisão Emblemática sobre a Desconsideração Inversa. 5 O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil. Considerações Finais. Referências.

Introdução  

O presente artigo tem por objetivo compreender como os Tribunais Superiores têm se posicionado em relação à desconsideração inversa da personalidade jurídica das empresas em razão de atos perpetrados pelos sócios, que transferem patrimônio para a sociedade com o simples intuito de não quitar suas dívidas particulares com terceiros.

Importante notar que, enquanto a desconsideração da personalidade jurídica é disciplinada pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa não possuía regulamentação legal expressa até o advento do novo Código de Processo Civil, que trouxe em seu bojo menção expressa do instituto no seu art. 133, § 2º.

Conquanto inexistissem normas específicas, o Superior Tribunal de Justiça já admitia a subespécie da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, concluindo, a partir de uma interpretação do art. 50 do Código Civil de 2002, pela possibilidade de desconsideração inversa da personalidade da pessoa jurídica.

Não é de se espantar que a jurisprudência evolua mais rapidamente do que a legislação, visando coibir práticas abusivas e acompanhar as mudanças contemporâneas que ocorrem na sociedade de forma cada vez mais célere. Afinal, a sociedade é complexa.

É nesse contexto que o presente artigo busca compreender o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça nas situações supracitadas, a fim de coibir a prática ilegal e fraudulenta abusando do nome e da autonomia da própria sociedade em questão.

1 Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios       

Dada a importância das sociedades responsáveis pela circulação de riqueza na economia, a legislação busca ressalvar os bens particulares dos sócios em relação às dívidas da sociedade, prevendo sua responsabilidade subsidiária. É nesse sentido a disposição expressa do CC/02:

“Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.”

A doutrina afirma que a personalização da responsabilidade dos sócios da sociedade empresária é subsidiária, sendo equivalente a dizer que, enquanto não esgotado o patrimônio social da sociedade, não poderá ser de forma alguma atingidos os bens do sócio para a satisfação de dívidas da sociedade.

Tal instituto legal de responsabilização funda-se na necessidade de proteção ao patrimônio particular do sócio, sob pena de grave desestímulo à abertura de novos empreendimentos, além da possibilidade de acarretar instabilidade e insegurança jurídica no mercado econômico.

2 Desconsideração da Personalidade Jurídica        

2.1 Aquisição da Personalidade Jurídica

É conhecimento notório que a personalidade da pessoa jurídica na seara do direito é vista como ficção jurídica com aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres.

Nesse sentido, Venosa (2003, p. 160) extrapola o conceito apresentado e diz que “a personalidade não é exatamente um direito: é um conceito básico sobre o qual se apoiam os direitos“.

Não obstante, a doutrina discorda quando se tem como referência a existência da personalidade jurídica das empresas, notadamente, como sujeito de direitos, como bem assenta Tomazette (2013, p. 222):

“A empresa não possui personalidade jurídica nem pode possuí-la e, consequentemente, não pode ser entendida como sujeito de direito, pois ela é a atividade econômica que se contrapõe ao titular dela, isto é, ao exercente daquela atividade.”

Este, porém, não é o entendimento majoritário na doutrina, já que autores renomados como Rubens Requião e Marcelo Bertoldi entendem que a empresa é sujeito de direitos e, por isso, consequentemente, possui personalidade jurídica para o pleno exercício de suas atividades.

Portanto, partindo-se dos conceitos elucidados, a empresa passa a adquirir sua personalidade jurídica, quando esta, nos termos da norma do art. 45 do Código Civil, realiza seu registro junto ao órgão competente. Assim:

“Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.” (grifo nosso)

Dessa forma, pode-se dizer que, ao ser criada, a sociedade adquire uma personalidade própria e autônoma, permitindo a separação de seus bens com os bens de seus sócios e administradores.

2.2 Conceito de Personalidade Jurídica       

Constituída a sociedade nos termos legais exigidos, esta passa a ter sua autonomia e personalidade, que vão aquém as dos seus sócios e administradores, já que os acervos patrimoniais são distintos e não se confundem.

No entanto, tal personalidade da sociedade, muitas vezes, é utilizada para fins diversos do seu objeto social, na qual seus administradores e sócios excedem os limites legais, fazendo uso dessa autonomia da sociedade como forma de burlar a lei e desviar da finalidade para qual a sociedade fora criada.

Diante desse contexto, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido o instrumento necessário para proteger a autonomia e a personalidade das sociedades que sofrem a consequência da má gestão e da má-fé de seus sócios e/ou administradores.

Nestes termos é que se criou o presente instrumento jurídico, capaz de desconsiderar a personalidade da sociedade em questão para que os reais responsáveis sejam identificados e os atos impróprios, por eles realizados, não causem prejuízo a terceiros ou à sociedade.

Suzy Cavalcante Koury (2003, p. 86) descreve brilhantemente o conceito para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica:

“(…) a disregard douctrine consiste em subestimar os feitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.”

Por fim, cediço compreender que tal teoria não busca despersonalizar a sociedade em si, anulando, consequentemente, os efeitos por ela praticados. O que ocorre é um evento específico e excepcional, no qual sua personalidade é superada para atingir os responsáveis, sejam eles sócios ou administradores da sociedade.

2.3 Origem Histórica        

A partir do século XIX, buscou-se coibir o abuso da personalidade por meio de manifestações jurídicas contra a má-fé e a má utilização da empresa pelos seus sócios. Desde então, diversos países, como a Itália e a Alemanha, desenvolveram teorias a fim de desvirtuar o uso nocivo da sociedade.

O primeiro registro da disregard doctrine refere-se ao caso Solomon v. Solomon & Co., julgado pela House of Lords, na Inglaterra, no ano de 1897 (GOMES, 2011).

Paola Cristina Rios Pereira Fernandes (2016) discorre que

“a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ganhou o cenário mundial com o caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd., julgado em 1897 pela House of Lords, na Inglaterra, com relatoria do Lord Macnaughten. O caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd. versava a respeito da situação de um comerciante britânico que fundou uma nova pessoa jurídica, tendo seu quadro societário composto por ele mesmo, sua esposa e seus filhos, reservando para si 20.000 ações, enquanto que os demais sócios detinham apenas uma ação cada um. Vale ressaltar que Aaron Salomon integralizou suas 20.000 cotas por meio do seu estabelecimento comercial, no qual já exercia a mercância sob a forma de firma individual, sendo certo que neste caso, embora tenha sido evidenciada a fraude perpetrada por Aaron Salomon, os credores de sua firma individual viram a garantia patrimonial prejudicada, em face do esvaziamento de seu patrimônio e em prol da nova pessoa jurídica fundada com sua esposa e filhos.

Dentro desta perspectiva, muito embora tenha sido evidenciada a fraude cometida por Aaron Salomon, a House of Lords reconheceu a diferenciação patrimonial entre a companhia e os sócios, não identificando nenhum vício na constituição da nova empresa, razão pela qual não prosperou, nesta oportunidade, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.           

A desconsideração da personalidade jurídica é fruto da utilização irregular da pessoa jurídica, evidenciada pela gestão fraudulenta ou pela confusão patrimonial.”

Destaca-se que o juiz singular reconheceu a presença da fraude e Aaron Salomon foi responsabilizado pelo pagamento aos credores.

Contudo, a decisão do juiz monocrático foi reformada pela Corte, sob a argumentação de que, tendo sido validamente constituída, a sociedade era regular, o que impediria que se desconsiderasse a personalidade jurídica. A resistência calcada no frágil óbice legal e extremamente formalista aos poucos foi caindo e a doutrina veio sendo amplamente aplicada pelos Tribunais da Inglaterra. Georgia Russowsky Raad (2016) bem analisa as duas decisões:

“Em 1895, a Corte Britânica recebeu o caso para então decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica na empresa Aaron Salomon Ltda. É neste ponto que se abre o campo de discussão e análise do que foi decidido tanto pela Corte de Apelação quanto pela House of Lords, hoje Suprema Corte de Justiça britânica.      

A Corte de Apelação, ao analisar o caso, manteve sua atenção sobre as intenções do legislador e do empresário, que incorporou sua empresa com seus seis sócios que não apresentavam bona fide e independência. A respeitada juíza Lindley LJ deixou claro que o Companies Act 1862 foi usado com o propósito diferente da intenção dos legisladores, conforme suas palavras: ‘O esquema do Sr. Aaron Salomon é um instrumento para fraudar credores’. Assim, os votos da Corte de Apelação decidiram por autorizar a desconsideração da pessoa jurídica e buscar os bens pessoais do Sr. Salomon para saldar as dívidas com credores, fundamentando que a Corte lutou para encontrar um remédio legal para basear sua visão de abuso da lei.

Porém, em 1897, o caso foi para a House of Lords. Dada a relevância do caso para o direito empresarial, vale lembrar que estamos falando de um julgamento do século XIX, que ainda hoje rege os princípios estruturantes da desconsideração da personalidade jurídica na common law.    

Destaca-se que, enquanto a Corte de Apelação voltou sua atenção para a intenção do legislador ao criar a regra que o Sr. Salomon teria infringido, a House of Lords desconstruiu esta ideia, assegurando a aplicação restrita da norma legal. A Corte Suprema confirmou que a incorporação criaria uma nova realidade fática, e que, se possibilitada esta pela norma, fazer negócios neste formato não resultaria em infração e muito menos em alguma injustiça para terceiros, conforme afirma Lord Halsbury, um dos juízes da Corte, sobre os terceiros de boa-fé: ‘they only have themselves to blame for their misfortune’.”

No Brasil, a teoria da desconsideração de personalidade jurídica foi desenvolvida e difundida pelo professor Rubens Requião, por volta de 1960, aplicada por analogia ao art. 135 do Código Tributário Nacional, até quando foram editadas as leis, como o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, a Lei de Infrações à Ordem Econômica, no art. 18, e, por fim, a Lei dos Crimes Praticados contra o Meio Ambiente, art. 4º das respectivas Leis (GOMES, 2011).

2.4 Objetivo Final  

No dia a dia, os sócios e administradores da sociedade empresária podem agir com excesso de poder ou má-fé, indo contra os ordenamentos legais preexistentes e, até mesmo, o contrato social da respectiva sociedade.

Em tais situações, excepcionadas pela legislação em vigor, é que se aplica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Comprovado o excesso de poder ou má-fé para adimplir obrigações para com seus credores, pode ser temporariamente suspenso o véu da personalidade da sociedade, objetivando alcançar os bens dos representantes da pessoa jurídica.

No entanto, a desconsideração da personalidade jurídica deverá somente ser aplicada aos casos previstos em lei, não sendo utilizada de forma genérica e obtusa. Por isso mesmo, diante da má utilização da pessoa jurídica, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica serve como uma segurança aos terceiros credores, buscando protegê-los sempre quando possível, buscando, de uma forma justa, corrigir o abuso praticado pelas pessoas que por trás da sociedade se escondem.

Se não bastasse, a teoria da penetração, como também é conhecida no meio acadêmico, busca a proteção não somente dos terceiros interessados, mas da própria sociedade, que se vê prejudicada pela atitude abusiva dos seus administradores ou sócios.

Assim, confere-se ao Judiciário poder suficiente para descaracterizar a separação de bens particulares dos administradores ou sócios, transferindo-lhes a responsabilidade pelos prejuízos sofridos pela sociedade contra seus credores, que poderão requerer a desconsideração da personalidade jurídica sempre que houver má-fé ou abuso da personalidade e da autonomia desta.

2.5 Pressuposto de Admissibilidade  

Como é sabido, conforme dispõe o art. 985 do Código Civil, após os atos constitutivos serem registrados no órgão devido, a sociedade passa a obter personalidade e autonomia.

A incomunicabilidade, por suposto, entre os bens dos administradores e/ou sócios passa a se distinguir dos bens da sociedade, que responderá por todos os compromissos assumidos com seu nome, caso haja inadimplemento de suas obrigações. Dessa forma:

“As sociedades empresárias, quando constituídas na forma limitada ou anônima, trazem como princípio básico a autonomia patrimonial, de maneira que o patrimônio da empresa existe separadamente do patrimônio de seus sócios e acionistas, ou seja, a sociedade empresária possui patrimônio próprio, que, em regra, será o único responsável por eventuais débitos.” (PRIMON, 2016)

Por isso mesmo, quando os sócios e administradores abusam de alguma forma da personalidade da empresa, utilizando injustamente do seu nome, a legislação construiu mecanismos para que a responsabilidade recaia sobre os responsáveis.

Assim, a legislação criou hipóteses em que há a responsabilização dos sócios e administradores em diversos tipos de sociedades.

Na sociedade limitada, conforme Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 82), o sócio responde de duas formas, como é possível observar:

“Na primeira, quando participar de deliberação social infringente da lei ou do contrato social (CC, art. 1.080). É caso de responsabilidade por ato ilícito, em que não há nenhuma limitação. Enquanto o patrimônio do sócio responsável pelo ilícito suportar, pode-se cobrar dele a indenização pelo prejuízo sofrido pela sociedade, por credores ou pela comunhão.

Na segunda, o sócio responde solidariamente com os demais pela integralização do capital social (CC, art. 1.052). Aqui, a responsabilidade independe do ilícito. Se o contrato social contempla cláusula estabelecendo que o capital subscrito ainda não está totalmente integralizado, a massa falida pode demandar a integralização de qualquer um dos sócios. É a ação de integralização, que a lei anterior, ao contrário da atual, disciplinava em dispositivo específico.”

Na Eireli e nas sociedades de responsabilidade limitada, os sócios respondem pelo patrimônio que somente faz parte da pessoa jurídica, isto é, aqueles que correspondem a elementos da atividade empresarial (LEONEL; MOTTA, 2014).

Esta denominação (limitada) visa proteger, blindar, os bens patrimoniais dos sócios para que não sejam atingidos ao que concerne à satisfação de obrigações da empresa.

Quando se fala na responsabilização do administrador da sociedade, o autor enfatiza que, quando se tem descumprido o art. 1.011 do Código Civil, isto é, o dever de diligência, e afetar de qualquer forma negativa a sociedade, responderá subjetivamente pelos prejuízos causados quando administrador.

Isso significa dizer que o administrador não responderá em hipótese alguma de forma objetiva. Somente após comprovada a culpa do agente causador correspondente ao dano é que haverá a responsabilização.

Já em relação às sociedades anônimas, a legislação busca responsabilizar os atos praticados em abuso de poder ou prática de ilícito na condução dos atos negociais (CAMPOS, 2011).

Diferentemente da sociedade limitada, a sociedade anônima, por haver a prática de ilícito, seja no exercício do poder de controle, quando praticado por acionista controlador, ou na condução dos atos negociais, quando administrador, a responsabilidade será subjetiva, em que somente deverá comprovar o nexo causal entre o dano e o sujeito para haver responsabilização.

Nesses casos, haverá, no entanto, a responsabilização direta dos sócios ou administradores, na qual a autonomia e a personalidade da empresa se mantêm intactas, diferentemente no caso da desconsideração da personalidade jurídica, a qual atinge, temporariamente, os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações, mantendo-se, posteriormente, a forma autônoma e distinta da personalidade dos seus sócios e administradores. Conforme destaca Suzy Elisabeth Cavalcante Koury (2003, s/p):

“Realmente, é apropriado deixar bem clara a distinção entre despersonalização e desconsideração da personalidade jurídica. Na primeira, visa-se à anulação da personalidade jurídica, fazendo-se desaparecer a pessoa jurídica como sujeito autônomo por lhe faltarem condições de existência, como nos casos de invalidade do contrato social ou de dissolução de sociedades. Na segunda, o que se pretende é desconsiderar a forma da pessoa jurídica, no caso particular, sem negar a personalidade de maneira geral.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica necessita de alguns pressupostos para ser aplicada, motivo pelo qual algumas decisões têm gerado um embate entre operadores do direito.

A teoria, portanto, só poderia ser utilizada nos casos em que a sociedade é legalmente constituída (GOMES, 2011), pelo que se deduz que não se cogita a possibilidade de aplicação da disregard doctrine em caso de sociedades irregulares (sociedades em comum). Isso ocorre pelo simples motivo de que nessas sociedades em comum, previstas pelo art. 986 do Código Civil, a responsabilidade dos seus sócios se daria de forma ilimitada, não tendo que se falar em desconsideração da personalidade jurídica.

Ademais, importante destacar que entre os pressupostos destacados há que se comprovar má administração, fraude, confusão patrimonial, abuso de direito, desvio de personalidade, cada um conforme a área do direito em questão.

3 Desconsideração da Personalidade Jurídica no Ordenamento Brasileiro 

No Brasil, o início da aplicação teve como embrião os estudos do professor Rubens Requião, por volta de 1960.

Apesar de o Código Civil de 1916 não abordar a disregard doctrine, tem-se que a teoria foi se desenvolvendo lentamente, por meio de entendimentos jurisprudenciais, que determinavam a responsabilização aos sócios e administradores, em face de abuso da personalidade jurídica da empresa.

Assim, Rubens Requião, a partir da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a qual batizou de teoria da penetração, buscou responsabilizar o sócio quando constatado que a autonomia da personalidade jurídica da empresa fora utilizada de maneira contrária ao seu estatuto social.

  1. A Teoria Menor e a Teoria Maior

Existem, no Brasil, duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica, a qual teve origem na disregard doctrine, nos Estados Unidos. A primeira, denominada como teoria maior, subdivide-se em objetiva e subjetiva; a segunda denomina-se teoria menor.

A teoria maior subjetiva foi a que prevaleceu, primeiramente, no campo jurídico brasileiro, presente no art. 50 do Código Civil, necessitando haver, para tal aplicação, o desvio de finalidade pelo uso abusivo da empresa, isto é, fraudulento. Veja-se, pois:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” (BRASIL, 2002, s/p)

Outra vertente, chamada de teoria maior subjetiva, implica a existência de confusão patrimonial por parte de seus sócios e da empresa.

A teoria menor, por sua vez, não exige a comprovação do abuso do direito ou a confusão patrimonial, bastando, somente, que o consumidor – credor – consiga demonstrar em juízo não haver a empresa bens suficientes para adimplir a obrigação e saldar a dívida. Como se pode perceber, esta teoria é muito mais benéfica aos credores e sua aplicabilidade está presente no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, § 5º.

Para se compreender melhor, veja-se um trecho do acórdão proferido pela Ministra Nancy Andrighi, que contorna e, ao mesmo tempo, dá corpo à teoria menor:

“A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no direito do consumidor e no direito ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. (…) A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28 do CDC, porquanto a incidência deste dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” (STJ, REsp 279.273, Relª Minª Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 29.03.04)

No entanto, apesar da maior abrangência pela teoria menor, não será ela aplicada em qualquer contexto, sobretudo porque se apresenta como uma exceção no nosso ordenamento jurídico, utilizada nos direitos trabalhista, do consumidor e tributário.

4 A Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica da Empresa          

A desconsideração inversa da personalidade jurídica surgiu, assim como a sua predecessora, a partir da ceara jurisprudencial e doutrinária, tomando como base de inspiração a doutrina norte-americana, haja vista a inexistência de amparo na legislação brasileira.

Seguindo a linha de extensão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, sua concessão, nas Cortes brasileiras e nos Tribunais Superiores, tem como suporte o art. 50 do Código Civil, baseado na teoria maior, a saber, o desvio de finalidade e confusão patrimonial, além do dolo e da fraude.

Quanto à modalidade inversa da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, verifica-se que o direito brasileiro não se absteve e escolheu abraçar fontes que trouxessem maior segurança jurídica para o cenário empresarial. Afinal, o que seria, portanto, a modalidade inversa da respectiva teoria?

Cuida-se de instituto de aplicação judicial, pelo qual há o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, por meio da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, com o objetivo de atingir o patrimônio do ente coletivo, desviado pelos seus membros. Responsabiliza-se, pois, a pessoa jurídica por obrigações adquiridas pelos seus sócios-controladores, de modo a não invalidar a personalidade jurídica. Nesse sentido, Sandri e Oliveira (2013, p. 8), in verbis:

“A utilização da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, do mesmo modo que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, não tem como objetivo a invalidação da personalidade jurídica, mas somente a afirmação da impotência para determinado ato, sendo que aquela possui os mesmos pressupostos e requisitos desta.”

A ideia trazida pela teoria inversa é justamente combater o uso indevido da personalidade da empresa pelos seus sócios, o que pode ser observado, como supramencionado, na situação em que esse esvazia seu patrimônio pessoal para integralizar o patrimônio social da sociedade para não responder por dívidas e obrigações. Portanto:

“A conveniência do instituto surge se o devedor esvazia o seu patrimônio, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica da qual é sócio. É artimanha comum, por exemplo, aos cônjuges ardilosos que, antecipando-se ao divórcio, retiram do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, alocando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, pulverizando assim os bens deslocados.                       

Em tais circunstâncias, pode o juiz desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, alcançando bens que estão em seu próprio nome, entretanto, para responder por dívidas que não são suas, e sim de um ou mais de seus sócios.” (FERRIANI, 2016)

Assim, torna-se possível a aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa, a partir da interpretação do art. 50 do Código Civil de 2002, pelo qual se atinge os bens da sociedade, em razão das dívidas adquiridas pelo sócio controlador, desde que estejam preenchidos os requisitos trazidos pela legislação.

Em tais circunstâncias, o juiz concede uma ordem legal autorizando que a autonomia patrimonial da empresa seja desconsiderada, alcançando seus próprios bens, para responder por dívidas e obrigações efetuadas por seus sócios. Consoante Rafael Fernandes Primon (2016):

“Trata-se, na verdade, de mecanismo de efetivação do princípio do resultado da tutela executiva, bem como a ocorrência da devida responsabilização civil pelas dívidas contraídas, garantindo, assim, mais uma medida para proteção ao credor quando constatadas medidas abusivas do devedor.                 

Notadamente, o direito evolui no caso concreto de maneira mais veloz do que a legislação, visando coibir práticas abusivas, na verdade, contra o desenvolvimento da economia brasileira, assim, relativizando-se, quando preenchidos requisitos que veremos a seguir, ao máximo a autonomia tanto das pessoas jurídicas quanto das pessoas físicas.“

Por óbvio, a utilização do instituto não deverá ser feita de maneira leviana, exigindo especial cautela do juiz, configurando-se como medida excepcional. A desconsideração só poderá ser efetuada pelo juiz, a requerimento das partes ou do Ministério Público, quando em desconformidade com o art. 50 do Código Civil, e no caso da prova de insolvência estiverem claramente demonstrados os requisitos da teoria subjetiva da desconsideração da personalidade jurídica ou da teoria objetiva.

Fábio Konder Comparato (2016) foi um dos predecessores nos assuntos da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, senão vejamos:

“Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte no negócio, obriga o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto.”

Vê-se, portanto, que, em regra, não poderá haver a responsabilização da sociedade em face de obrigações assumidas, de forma particular, pelos seus sócios, haja vista que, legalmente, os bens da sociedade fazem parte do patrimônio autônomo da pessoa jurídica. Todavia, tal regra não subsiste quando demonstrada a transferência de bens particulares para a sociedade, com o intuito de prejudicar terceiros.

Percebe-se, portanto, que a desconsideração do véu da sociedade, de modo inverso, implicaria a aplicação de mais uma medida objetivando coibir fraudes contra credores e terceiros “que, lançando mão dos princípios sensíveis à constituição da pessoa jurídica, transferem seu patrimônio para a pessoa jurídica por ele controlada” (RANGEL, 2016).

Ademais, para Tauã Lima Verdan Rangel (2016), caso não demonstrada a transferência de bens do patrimônio particular do sócio devedor, exsurge evidente que, na condição de sócio de fato da sociedade ou do grupo de sociedades, estar-se-ia retirando da sociedade o necessário para manutenção da pessoa jurídica existente.

Além do mais, imprescindível a análise dos entendimentos jurisprudenciais sedimentados emanados pelos Tribunais de Justiça, “porquanto, ao se manifestarem sobre situações concretas, amoldam as normas genéricas e abstratas, bem como traçam linhas diretivas a serem observadas” (RANGEL, 2016). Assim, colhem-se os seguintes:

“Decisão

Trata-se de agravo nos próprios autos (CPC, art. 544), interposto contra decisão que inadmitiu recurso especial sob os seguintes fundamentos (e-STJ, fls. 179/181): (a) inexistência de obscuridade, contradição ou omissão no acórdão recorrido; e (b) incidência da Súmula nº 7/STJ.                

O acórdão recorrido tem a seguinte ementa (e-STJ, fl. 108):

‘AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. GRUPO ECONÔMICO. POSSIBILIDADE. A desconsideração da personalidade jurídica, por se tratar de medida excepcional, requer a demonstração do desvio de finalidade, caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou a confusão patrimonial, demonstrada pela inexistência de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. Havendo prova no sentido de que ocorre confusão patrimonial entre os bens das empresas integrantes do mesmo grupo econômico, deve-se autorizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica.’

Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ, fls. 130/138). Nas razões do recurso especial (e-STJ, fls. 145/158), fundado no art. 105, III, a e c, da CF, o recorrente aduziu violação dos arts. 535 e 458 do CPC, pois a rejeição de seus aclaratórios teria acarretado negativa de prestação jurisdicional, não tendo o TJDFT se manifestado especialmente sobre o suporte fático para preenchimento dos requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica (CC/02, art. 50) e a respeito da norma que determina seja a execução feita da maneira menos gravosa ao devedor (CPC, art. 620).       

Acrescentou ter havido falta de critério ao se aplicar o art. 50 do CC/02, haja vista a desconsideração da personalidade jurídica requerer, para sua aplicação, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, situações que não se teriam caracterizado no caso concreto.

No agravo (e-STJ, fls. 187/201), afirmam presentes todos os requisitos para admissão do recurso especial.       

Contraminuta apresentada pelo recorrido (e-STJ, fls. 204/210).                  

É o relatório.            

Decido.         

Quanto à tese da negativa de prestação jurisdicional, decorrente da rejeição dos aclaratórios, cumpre dizer, primeiramente, que a matéria relativa ao art. 620 do CPC foi submetida ao Tribunal de origem, pela primeira vez, nos embargos de declaração. Assim, como o tema não foi aventado no agravo de instrumento anterior, não estava mesmo o Tribunal obrigado a se manifestar sobre ele.          

No que respeita ao art. 50 do CC/02, a desconsideração da personalidade foi o único assunto tratado no acórdão impugnado.         

Descabido, portanto, cogitar de omissão sanável por embargos de declaração, que não se prestam para impugnar eventual insuficiência do acervo probatório.          

No mais, verifica-se que o Tribunal de origem decidiu a matéria de forma fundamentada, ainda que as conclusões tenham sido contrárias aos interesses da recorrente. O julgador não fica compelido a analisar todos os argumentos invocados pela parte, desde que tenha encontrado motivação satisfatória para dirimir o litígio, não se identificando omissão, contradição ou obscuridade no acórdão impugnado. No mesmo sentido:                  

‘PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APRECIAÇÃO DE TODAS AS QUESTÕES RELEVANTES DA LIDE PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 535 DO CPC. REAVALIAÇÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 7/STJ. DECISÃO MANTIDA

  1. Inexiste afronta ao art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido analisou todas as questões pertinentes para a solução da lide. O fato de a decisão ser contrária aos interesses da parte recorrente não configura negativa de prestação jurisdicional.

(…)     

  1. Agravo regimental a que se nega provimento.’ (AgRg no AREsp 409.072/RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, j. 25.02.2014, DJe 05.03.2014)           

Em relação aos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, o colegiado de segunda instância pronunciou-se da seguinte forma (e-STJ, fls. 112/113):   

‘Na presente hipótese, tudo leva a crer que ocorreu o esgotamento do patrimônio da ré/agravante, dado o resultado das diligências frustradas comprovadas nos autos. E a decisão agravada expressamente consignou situação de confusão patrimonial que autoriza o deferimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica da ré/agravante. Confira-se: ‘Sobre o caso em tela, alguns pontos em especial chamam a atenção deste juízo. O primeiro deles se deve ao fato de uma sociedade empresarial do porte da executada não possuir qualquer saldo positivo em suas contas bancárias, conforme extratos de pesquisa Bacen Jud às fls. 595-599 e 668-671. Ainda, conclui-se das diligências empreendidas pela parte exequente, às fls. 698-710, que a parte executada não possui nenhum imóvel sequer que não esteja gravado com ônus real, por meio de hipotecas, bem como que não seja objeto de diversas penhoras judiciais, o que torna inviável sua utilização para fins de saldar os débitos existentes. Por fim, todos os mandados de penhora expedidos no decorrer dos autos restaram infrutíferos, eis que não lograram êxito em localizar renda da parte executada, em que pese continuar em plena atividade. Com tudo isso, chega-se ao seguinte dilema: como a sociedade empresarial, ora executada, se mantém em funcionamento?’.                

Com efeito, pelos documentos juntados aos autos, verifica-se que a executada/agravante, apesar de não ter nenhum saldo positivo em conta bancária, não possuir nenhum imóvel livre de hipoteca ou penhoras judiciais e não possuir renda passível de penhora, ainda assim, continua exercendo sua atividade de transporte público de passageiros.                    

Ora, o comércio praticado pela executada/agravante é de grande porte, não se podendo presumir sequer a possibilidade da manutenção do funcionamento da empresa sem acesso a nenhuma fonte de renda ou bens móveis e imóveis.    

(…)     

Assim, estando evidente a ocorrência de confusão patrimonial com as demais empresas do grupo econômico, deve-se autorizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica. (…)’        

Havendo o Tribunal de origem concluído, com base na prova dos autos, pela caracterização de confusão patrimonial, não é possível afirmar o contrário sem reexaminar fatos e provas, o que veda a Súmula nº 7/STJ. A propósito: 

‘AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. VIOLAÇÃO DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INDEFERIMENTO PELA CORTE A QUO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. INVERSÃO DO JULGADO. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. 2. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

  1. A Corte local verificou, através do exame fático-probatório dos autos, que os requisitos autorizadores para a desconsideração da personalidade jurídica dos agravados não estavam presentes no caso.

Dessa forma, a inversão do julgado esbarra no óbice do Enunciado nº 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

  1. Agravo regimental a que se nega provimento.’ (AgRg no AREsp 596.007/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 18.12.2014, DJe 05.02.2015)

‘PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APRECIAÇÃO DE TODAS AS QUESTÕES RELEVANTES DA LIDE PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 535 DO CPC. REAVALIAÇÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 7/STJ. DECISÃO MANTIDA

(…)                 

  1. O recurso especial não comporta o exame de questões que impliquem incursão no contexto fático-probatório dos autos, a teor do que dispõe a Súmula nº 7 do STJ. 3. No caso concreto, a análise das razões apresentadas pelos recorrentes quanto à ausência de requisitos para se decretar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa demandaria o revolvimento de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial.
  2. Agravo regimental a que se nega provimento.’ (AgRg no AREsp 473.873/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, j. 03.04.2014, DJe 25.04.2014)

Diante do exposto, nego provimento ao agravo, nos termos do art. 544, § 4º, II, a, do CPC.     

Publique-se e intimem-se.” (STJ, AREsp 653.915, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, DJe 03.03.2015)

Da mesma forma que a separação das personalidades dos sócios e da pessoa jurídica foi criada para gerar maior segurança jurídica no cenário jurídico, estabelecendo responsabilidades e autonomias diversas, por outro lado, tal delimitação possibilitou a utilização da personalidade da pessoa jurídica da empresa para fins indevidos, sendo instrumento de fraude, buscando prejudicar determinados credores.

Foi nesse contexto que surgiu a teoria inversa da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, como forma de atingir o obstáculo criado para o adimplemento dos credores. Afasta-se a autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizar a pessoa jurídica, atingindo o patrimônio social indevidamente constituído por determinado sócio e, consequentemente, o sócio devedor, pelas obrigações adquiridas por este.

Assim, mesmo que a consequência da sua aplicação seja inversa à da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, ambas possuem o mesmo objetivo de buscar coibir o uso indevido do ente societário e de sua personalidade pelos seus sócios.

4.1 Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça      

Em relação à jurisprudência, desde 2010, nossos Tribunais Superiores têm enfrentado a questão da desconsideração inversa da personalidade jurídica, delineando as hipóteses de abrangência de sua incidência.

Por oportuno, analisam-se os seguintes julgados do STJ, in verbis:

“DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. Discute-se, no REsp, se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a chamada desconsideração da personalidade jurídica inversa. Destacou a Ministra-Relatora, em princípio, que, a par de divergências doutrinárias, este Superior Tribunal sedimentou o entendimento de ser possível a desconstituição da personalidade jurídica dentro do processo de execução ou falimentar, independentemente de ação própria. Por outro lado, expõe que, da análise do art. 50 do CC/02, depreende-se que o ordenamento jurídico pátrio adotou a chamada teoria maior da desconsideração, segundo a qual se exige, além da prova de insolvência, a demonstração ou de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). Também explica que a interpretação literal do referido artigo, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade, e não o inverso, não deve prevalecer. Anota, após essas considerações, que a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir, então, o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações de seus sócios ou administradores. Assim, observa que o citado dispositivo, sob a ótica de uma interpretação teleológica, legitima a inferência de ser possível a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa, que encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Dessa forma, a finalidade maior da disregard doctrine contida no preceito legal em comento é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Ressalta que, diante da desconsideração da personalidade jurídica inversa, com os efeitos sobre o patrimônio do ente societário, os sócios ou administradores possuem legitimidade para defesa de seus direitos mediante a interposição dos recursos tidos por cabíveis, sem ofensa ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. No entanto, a Ministra-Relatora assinala que o juiz só poderá decidir por essa medida excepcional quando forem atendidos todos os pressupostos relacionados à fraude ou a abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. No caso dos autos, tanto o juiz como o Tribunal a quo entenderam haver confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente. Nesse contexto, a Turma negou provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 279.273/SP, DJ 29.03.04; REsp 970.635/SP, DJe 01.12.09; e REsp 693.235/MT, DJe 30.11.09.” (REsp 948.117/MS, Relª Minª Nancy Andrighi, j. 22.06.2010)

E ainda:

“DIREITO CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA PARA REQUERER DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DE PERSONALIDADE JURÍDICA. Se o sócio controlador de sociedade empresária transferir parte de seus bens à pessoa jurídica controlada com o intuito de fraudar partilha em dissolução de união estável, a companheira prejudicada, ainda que integre a sociedade empresária na condição de sócia minoritária, terá legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica de modo a resguardar sua meação. Inicialmente, ressalte-se que a Terceira Turma do STJ já decidiu pela possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica – que se caracteriza pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio -, em razão de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02 (REsp 948.117/MS, DJe 03.08.2010). Quanto à legitimidade para atuar como parte no processo, por possuir, em regra, vinculação com o direito material, é conferida, na maioria das vezes, somente aos titulares da relação de direito material. Dessa forma, a legitimidade para requerer a desconsideração é atribuída, em regra, ao familiar que tenha sido lesado, titular do direito material perseguido, consoante a regra segundo a qual ‘ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei’ (art. 6º do CPC). Nota-se, nesse contexto, que a legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade não decorre da condição de sócia, mas, sim, da condição de companheira do sócio controlador acusado de cometer abuso de direito com o intuito de fraudar a partilha. Além do mais, embora a companheira que se considera lesada também seja sócia, seria muito difícil a ela, quando não impossível, investigar os bens da empresa e garantir que eles não seriam indevidamente dissipados antes da conclusão da partilha, haja vista a condição de sócia minoritária.” (REsp 1.236.916/RS, Relª Minª Nancy Andrighi, j. 22.10.2013)

Nesses votos emitidos pela Ministra Nancy Andrighi, resta esclarecido que cabe ao juiz agir com o devido poder de cautela, sobretudo quando da aplicação da forma inversa, já que a segurança jurídica intrínseca ao caso de criação de novos empreendimentos e a separação da autonomia patrimonial entre o capital social da empresa e o dos sócios são fundamentais. Assim:

“A Ministra Nancy Andrighi explica a desconsideração inversa num contexto no qual o sócio desvirtuoso, cujo patrimônio tenha transferido para a pessoa jurídica com o intuito de gerar uma confusão patrimonial, se livra de consequências jurídicas sobre seus atos ilegais.” (SANDRI; OLIVEIRA, 2013, p. 9)

Apesar de recente a jurisprudência supracitada, a não utilização da respectiva teoria traria maior insegurança jurídica, sob pena de ver-se acobertado o manto da personalidade jurídica da empresa, conjuntamente com seus bens, para fins de fraudes e ilicitudes de seus sócios.

A excepcionalidade da aplicação da teoria inversa da personalidade da pessoa jurídica permite concluir que, apesar de ser a autonomia patrimonial da sociedade um princípio intrínseco e norteador no direito empresarial brasileiro, não se pode, quando comprovados os requisitos do art. 50 do Código Civil brasileiro, a possibilidade da utilização do instituto criado pela doutrina e pela jurisprudência, de forma fundamentada, sendo aplicada sempre com cautela.

4.2 Decisão Emblemática sobre a Desconsideração Inversa    

A aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica é um instituto amplamente utilizado no ramo do direito de família, especialmente, no ato da desconstituição da sociedade conjugal, em que os sócios, a fim de evitar a partilha de bens ou tê-los penhorados, transferem seus bens para a sociedade.

Caso que causou alvoroço na justiça brasileira foi o do julgamento de Agravo de Instrumento 1.198.103-0/0, interposto contra decisão que indeferiu a desconsideração inversa das empresas CAOA Montadoras de Veículos S/A e Hyundai CAOA do Brasil, presente nos autos de ação de cobrança de honorários advocatícios, in verbis:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença condenatória. Deferimento de penhora on-line de numerário existente em contas bancárias/aplicações do devedor. Frustração da penhora em face da informação da inexistência de saldo nas contas bancárias. Devedor é sócio controlador de sociedades empresárias e considerado o maior revendedor de veículos da América Latina. Pedido de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica para que a penhora recaia em saldos bancários das sociedades empresárias controladas pelo devedor. Indeferimento pelo juiz de primeiro grau. Reconhecimento da possibilidade de se declarar a desconsideração da personalidade jurídica incidentalmente na fase de execução da sentença, não se exigindo ação autônoma, mas observando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Prova de que o sócio devedor é, em rigor, ‘dono’ da sociedade limitada e da sociedade anônima fechada, das quais é o presidente, controlador de fato, e, apesar da participação minoritária de sua esposa, ficam elas caracterizadas como autênticas sociedades unipessoais. Confusão patrimonial entre sócio e sociedades comprovada. Patrimônio particular do sócio controlador constituído de bens que, na prática, mesmo que penhorados, não seriam convertidos em pecúnia para a satisfação do credor. Oferecimento de bens imóveis à penhora, que, por se situarem no Estado da Paraíba, distantes mais de 2.600 km de São Paulo, onde tramita a execução, com nítido escopo de se opor maliciosamente à execução, empregando ardis procrastinatórios, que configura ato atentatório à dignidade da justiça. Agravo provido para deferir a desconsideração inversa da personalidade jurídica das sociedades empresárias indicadas (Limitada e S/A fechada), autorizada a penhora virtual de saldos de contas bancárias.” (TJSP, Agravo de Instrumento 1.198.103-0/0, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Pereira Calças, publ. 10.12.08)

Invocou a recorrente que a doutrina dá respaldo à aplicabilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, notadamente quando o devedor desvia bens para a pessoa jurídica da qual é o controlador e continua a se utilizar deles, em que pese serem de propriedade da sociedade controlada. Enfatizou a confusão entre os patrimônios do agravado Carlos Alberto de Oliveira Andrade e as sociedades Hyundai CAOA do Brasil Ltda. e CAOA Montadora de Veículos S/A, sendo este o fundamento central do pedido de constrição.

Em grau de recurso, o Desembargador Pereira Calças proferiu seu voto no sentido de que o único bem que o executado possuía na comarca de São Paulo era repleto de garantias hipotecárias das empresas. O magistrado destaca que

“o agravado, Carlos Alberto de Oliveira Andrade, é reconhecido pela imprensa (portanto, fato público e notório) como o maior revendedor de veículos da América Latina. Inobstante tal situação, em sua declaração de bens perante a Receita Federal, por ele mesmo apresentada às fls. 355/361, não consta nenhum automóvel ou qualquer tipo de veículo de sua propriedade. É de se perguntar: é crível que o maior revendedor de veículos da América Latina não tenha nenhum automóvel (mesmo que não fosse das marcas que representa) para seu uso pessoal e familiar?” (TJSP, Agravo de Instrumento 1.198.103-0/0, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Pereira Calças, publ. 10.12.08)

Nesse passo, o Relator julgou como notório o fato de que o executado não possuía contas pessoais, usando o dinheiro das empresas como se seu fosse, havendo, assim, confusão patrimonial. Frisou Pereira Calças que, mesmo sendo notoriamente milionário, na fase de cumprimento de sentença, após o pedido de penhora on-line do sócio devedor, foi observado que não havia nenhum valor depositado nas contas-correntes do executado.

Observou, ainda, que o fato de a estrutura organizacional do grupo CAOA ter natureza de sociedades unipessoais com 99,99% de participação de Carlos Alberto de Oliveira Andrade (CAOA) demonstra que o empresário esvaziou todo seu patrimônio pessoal, transferindo-o para o grupo. Nestes termos, restou configurada a confusão patrimonial, conforme denota o art. 50 do Código Civil.

Conforme mencionado anteriormente, a aplicação inversa pode ser observada e comumente aplicada no campo do direito de família, que utiliza da sociedade como um refúgio dos bens particulares nos casos de partilha ou penhora de bens para pensão alimentícia. Conforme Fábio Ulhoa Coelho (1999, p. 45):

“A desconsideração invertida ampara, de forma especial, os direitos de família. Na desconstituição do vínculo de casamento ou união estável, a partilha dos bens comuns pode resultar fraudada. Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome da pessoa jurídica sob o seu controle, eles não integram, sob o ponto de vista formal, a massa familiar. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor.         

Nesse condão, para se ver livre e dispensado de prestar contas da circulação dos bens comuns, o cônjuge transfere todo e qualquer patrimônio para o rol de bens da pessoa jurídica que é administrada por ele, facilitando o trânsito do parceiro empresário. Seguindo a mesma linha, o cônjuge, preocupado com a partilha judicial, retira-se da sociedade às vésperas do intento separatório, transferindo a sua participação para outro sócio. Após a separação judicial, ele retorna à empresa e à livre-administração dos bens que eram comuns ao casal.   

Diante dessas práticas ilícitas, o magistrado pode desconsiderar, no âmbito da sentença judicial, lançada no processo de separação ou de dissolução de união estável, as alterações contratuais que transferiram ou reduziram a participação social do cônjuge empresário, voltando, assim, ao estado anterior da flagrante apropriação da meação do cônjuge despojado. Estando, pois, autorizada a partilha conjugal diante da aplicação da desconsideração inversa.”

Nesse sentido está a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na qual o entendimento é claro a respeito da aplicação inversa da desconsideração da personalidade sempre que o cônjuge se utiliza da sociedade a fim de burlar a meação.

5 O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil           

Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, algumas discussões que permeavam a aplicação do instituto por nossos Tribunais ficaram completamente superadas.

Em primeiro plano, observa-se que, nos termos do art. 133 do NCPC, o incidente de desconsideração da personalidade será instaurado a pedido da parte, sendo certo que o Ministério Público também terá legitimidade de agir, como parte ou como custos legis.

A nova legislação determina, ainda, no art. 134 do NCPC, que “o incidente da desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial” (BRASIL, 2015). Ademais, consta no § 2º que “dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica” (BRASIL, 2015).

O referido dispositivo elide a ideia de que o procedimento da desconsideração sempre se dará em ação autônoma, haja vista o próprio legislador mencionar que não haverá incidente se, na peça inaugural, a parte tiver pleiteado a incidência do instituto. Dessa forma,

“o debate dar-se-á no ventre do processo em que debatida a questão principal, mas como o objetivo é a simplificação (marca do NCPC), nada obsta que, no caso concreto, possa o juiz deliberar pela autuação apartada, se assim recomendar a organização do incidente ou se houver justificativa para que o processo prossiga no trato das questões principais, sobretudo se existirem outros pedidos, eventualmente cumulados, que não se relacionem com o tema incidental.” (MACEDO; MIGLIAVACCA, 2015, p. 143)

Vê-se, portanto, a preocupação do legislador com a celeridade, ante a desnecessidade de se ajuizar ação autônoma para se efetivar o pedido de desconsideração da pessoa jurídica, se a mesma for requerida na petição inicial.

Importante salientar, ainda, que o art. 134, caput e § 2º, do NCPC admite o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, a qualquer tempo e em qualquer fase do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença ou na execução de título executivo extrajudicial, em formato de incidente processual, hipótese que a sua instauração suspende o processo principal (art. 134, § 3º, do NCPC).

Há de se salientar que, para instauração do referido incidente, necessário se faz a comprovação dos pressupostos materiais da teoria maior ou menor da desconsideração da personalidade jurídica.

Registra-se que o NCPC reconhece e estabelece a possibilidade de se realizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Não obstante a tese favorável à desconsideração inversa já fosse amplamente aceita pelo Poder Judiciário, a redação do Novo Código de Processo Civil põe fim a qualquer dúvida quanto ao instituto, deixando evidente a possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações assumidas de forma abusiva por seu sócio.

Outra inovação do NCPC que merece destaque é a impossibilidade de a desconsideração ocorrer por iniciativa própria do juiz. O diploma legal prescreve, de forma clara e categórica, que a desconsideração somente pode ocorrer mediante requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber, devendo, ainda, somente ser decidida após a citação do sócio ou da pessoa jurídica (no caso de desconsideração inversa), a quem será reservado o direito de se manifestar acerca do pedido e requerer a produção de provas no prazo de 15 dias.

Por fim, o NCPC define que a decisão que defere ou indefere o pedido de desconsideração é uma decisão interlocutória, recorrível, por meio de agravo de instrumento no prazo de 15 dias.

Considerações Finais     

Restou demonstrado, no presente artigo, que a desconsideração inversa da personalidade jurídica consiste na possibilidade de afastamento, temporário e excepcional, da autonomia patrimonial da sociedade em relação ao sócio que perpetrou atos em desfavor de seus credores particulares. Desconsidera-se, portanto, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação particular contraída e imputada ao seu sócio ou representante.

A qualificação “inversa” refere-se à mudança do polo de interesse na aplicação da disregard doctrine. Enquanto na modalidade de desconsideração “clássica” visa-se atingir o patrimônio do sócio por conta de atos abusivos e fraudulentos praticados pela sociedade, na acepção inversa persegue-se o patrimônio social da empresa em face de atos praticados pelos sócios ou por representantes da sociedade.

No cenário econômico e empresarial hodierno, a busca pela execução de tutelas jurisdicionais não cumpridas vem crescendo a cada dia. Considerando-se esse contexto, preocupados em manter a atividade empresarial em crescimento, percebeu-se que alguns empresários decidem se escusar de suas obrigações particulares para com seus credores, exaurindo seu patrimônio pessoal por meio de transferência para a sociedade empresária.

É nesse cenário que se denota a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade, em que figuram no polo passivo empresas e grupos econômicos, como também seus sócios e administradores.

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica inversa justifica-se nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à disregard doctrine, pela qual se veda o abuso da personalidade jurídica, seja por meio de desvio de finalidade, seja pela confusão patrimonial (art. 50 do CC/02).

Comprovada a fraude pela transferência de bens para uma pessoa jurídica, levanta-se o véu da personalidade, para atingir os bens da sociedade, para pagamento de credores dos sócios.

Interessante notar que, com o advento do Novo CPC, dúvidas em relação à aplicação da desconsideração inversa ficaram completamente superadas. Não obstante amplamente aceito pelo Poder Judiciário, o instituto foi expressamente incluído no diploma processual, no § 2º do art. 133, restando inequívoca a possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações assumidas de forma abusiva por seu sócio.

Demonstrou-se que, nos termos do NCPC, não há necessidade de se ajuizar ação autônoma para se efetivar o pedido de desconsideração da pessoa jurídica, podendo ocorrer por meio de um incidente processual, a qualquer momento e em qualquer fase do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença ou na execução de título executivo extrajudicial ou requerida na petição inicial.

Viu-se que o Novo Código de Processo Civil pôs fim também à discussão acerca da possibilidade de a desconsideração ocorrer por iniciativa própria do juiz, prescrevendo que a desconsideração deve ocorrer mediante requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber, devendo ser decidida após a citação do sócio ou da pessoa jurídica (no caso de desconsideração inversa). Fica reservado o direito de defesa e produção de provas no prazo de 15 dias.

Não há dúvidas, portanto, da possibilidade de aplicação excepcional da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, sendo certo que o novo Codex processual brasileiro buscou, de forma louvável, garantir o contraditório, preocupando-se com a segurança patrimonial dos sócios, buscando mitigar a aplicação desarrazoada do instituto pelo Poder Judiciário.

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É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica?

A desconsideração inversa ou invertida torna possível responsabilizar a empresa pelas dívidas contraídas por seus sócios e tem como requisito o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (CPC, art. 133, § 2º; CC, art. 50).

Não está previsto no ordenamento jurídico a desconsideração inversa da personalidade jurídica da pessoa jurídica?

A aplicação inversa da desconsideração da personalidade jurídica não era prevista na lei material, mas foi doutrinária e jurisprudencialmente construída, na qual, como se pressupõe pelo seu título, afasta-se a autonomia patrimonial da sociedade empresária, com o fito de responder pelas obrigações adquiridas pelos seus ...

Quando não cabe a desconsideração da personalidade jurídica?

Não configura desvio de finalidade justificador de desconsideração da personalidade jurídica e penhora de bens pessoais do sócio para a satisfação de obrigações contraídas em nome da pessoa jurídica o fato de não terem sido encontrados bens passíveis de penhora em nome da empresa devedora.”

O que é personalidade jurídica inversa?

A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações ...