Livro sob o mesmo céu

Capítulo 49

Depois de ter contado tudo à Jessie, pensei que ela fosse ter uma conversa séria com sua irmã imediatamente, mas não foi bem isso o que aconteceu.

Na segunda-feira, quando voltei a encontrar Jen, ela não disse nada que desse a entender que Jessie e ela tivessem conversado no último fim de semana.

Naquela tarde, James e Jolene também estavam na casa, e Jen tentou ao máximo fazer com que não nos encontrássemos. Ela quase conseguiu. Mas, quando eu já estava prestes a ir embora, James veio me cumprimentar.

Enquanto eu e ele falávamos algo sobre uma partida de basquete, Jen estava logo atrás do ombro de seu pai, me encarando, os olhos arregalados, um ar de preocupação. Na mesma hora eu soube que ela não tinha contado aos seus pais.

A primeira coisa que fiz quando voltei ao campus foi ligar para Jessie.

— Você não conversou com Jen? — perguntei assim que ela atendeu.

—  Não.

— E vai deixar assim, sem fazer nada?

— Mas é claro que não! Vou falar com ela, mas ainda não sei como. Pensei que seria melhor se fosse pessoalmente.

— É, tem razão — concordei, porque realmente soava como uma ideia melhor.

— Eu e ela vamos ter essa conversa quando eu chegar aí.

— Certo. Falando nisso... Quando você chega? A que horas posso te pegar no aeroporto? — perguntei ansioso.

— Na verdade você não precisa se preocupar com isso. Nós vamos viajar de carro.

— O quê? Você tem noção da distância entre Daytona Beach e Nova York?

— Acontece que eu tenho sim — respondeu cheia de si. — São exatamente 1032 milhas, ou 1656 quilômetros, que vamos fazer em um percurso de dois dias e uma noite, com uma parada turística em Washington DC e outra na Virgínia, para visitar os campos de batalha da guerra civil. Depois ainda vamos passar dirigindo por Jacksonville, Saint Augustine e Palm Coast até, finalmente, chegarmos à Daytona Beach. Vai ser uma viagem épica!

— É... Parece muito legal. Mas tome cuidado dirigindo pela estrada, OK?

— Relaxa. É o Andrea quem vai dirigir a maior parte do trajeto.

Depois de Jessie ter me relembrado que aquele italiano viajaria com ela, eu só quis desligar logo o telefone.

Chegado o final de semana que marcava o início do recesso de primavera, resolvi ir para Manalapan e ficar um tempo com minha família, já que Jessie só chegaria na segunda-feira.

Mal tinha entrado pelos portões da mansão Gemini, e Meggie já veio ao meu encontro. Quando abri a porta para descer do carro ela saltou para dentro, caindo no meu colo. Ela estava usando seu maiô cor-de-rosa e sua touca de natação.

— Você está toda molhada! — falei tentando me desvencilhar do abraço dela.

— Eu estava na piscina. — me abraçou de qualquer forma.

— A essa hora da noite?

— Era na piscina aquecida — esclareceu.

— E cadê a mamãe? — perguntei enquanto descíamos do carro.

— Viajou com o Zane. Eles só voltam na quarta-feira.

— De novo? E te deixaram sozinha aqui?

— Mas é claro que não! Eu agora tenho a companhia da Alana, não se lembra?

De fato eu não me lembrava. Mas fiquei envergonhado de assumir.

— Claro que me lembro da Alana! — blefei.

Mas logo me veio à mente, Alana era uma jovem porto-riquenha a quem Pickford e minha mãe haviam recentemente recebido como Au Pair — um tipo de babá intercambista que oferecia serviços como cuidar de Megan, levá-la e buscá-la na escola, brincar com ela, ajudar com os deveres de casa e coisas assim; em troca Alana recebia estadia na mansão principal junto da família, um carro para realizar suas atividades externas como ir à escola onde estudava inglês, ou ir às compras, e recebia também um pequeno pagamento para cobrir suas despesas. — A boa notícia era que Meggie e Alana pareciam estar se dando muito bem.

Nós entramos na casa e encontramos a garota em desespero, com uma toalha nas mãos, aparentemente procurando por Megan. Quando nos viu, disparou a falar em espanhol:

— ¿Niña, dónde estabas? Te busqué por todas partes. ¡No se puede desaparecer de esa manera! ¡Me quedé demasiado preocupada!

Meggie e eu nos entreolhamos, sem entender nada do que ela estava dizendo. Finalmente, Alana se concentrou e tentou falar nossa língua:

— Você sumiu. Não pode sumir!

— Desculpa. Meu irmão chegou — Meggie apontou com o polegar para mim.

— Hola — Alana disse, acenando.

— Oi — acenei também.

Em seguida, ela enrolou Megan na toalha, e as duas foram se trocar. Encontrei Rebecca no jardim, o que era de se estranhar, já que ela costumava estar no trabalho naquele horário. Mas, mais estranho ainda, foi a forma como a encontrei: sentada na grama, sob uma das magnólias do jardim, encarando alguns arbustos.

— O que está fazendo? — perguntei.

— Levando Anne-Sophie Pic para um passeio. Ela é um bichinho aquático, mas também gosta de dar uma volta por aí de vez em quando.

Só então vi a pequena tartaruga verde-musgo caminhando lentamente por entre as folhas caídas no chão.

— Becca, você não devia estar no trabalho? — chequei meu relógio para me certificar de que já eram quase oito da noite.

— Você não devia ter ido buscar sua namoradinha? — respondeu com outra pergunta e eu senti uma certa aspereza em sua voz.

— Já te falei que ela vem de carro com os amigos dela.

— E eu já te falei que não quero mais trabalhar naquele lugar.

— Eu não te entendo. Pensei que amasse seu trabalho.

— Eu amo cozinhar. Amo mesmo! Mas o que eu odeio é ter uma dúzia de homens machistas questionando tudo o que eu faço na cozinha, sem acreditar que eu me tornei sous-chef por esforço próprio.

— Espera aí, existe machismo na cozinha? — perguntei tão surpreso quanto indignado.

— Mas é claro que sim! Por que você acha que a verdadeira Anne-Sophie Pic é a única chef mulher premiada na França? Ou você pensou que ela era a única cozinheira naquele lugar?

— Calma, eu só estava perguntando. Eu só não imaginei que... bem... que os cozinheiros pudessem ser machistas — segurei o impulso de um pequeno riso que me adveio após ter dito aquilo em voz alta, o que não pareceu ter agradado Rebecca em nada!

— Isso é porque você também é um machista! Mas é um machista leigo, que não entende muito de cozinha profissional e só tem a errônea e preconceituosa ideia de que cozinha é lugar de mulher!

Ai! Depois de ser chamado de machista, ignorante e preconceituoso na mesma conversa, decidi que era hora de encerrar o assunto. Rebecca claramente não estava a fim de papo naquele dia. Deixei-a em paz com sua tartaruga e me afastei.

Entrei na mansão e me encontrei novamente com Meggie e Alana. Elas sugeriram que fôssemos assistir a um filme na TV. Sentamos os três em um mesmo sofá retrátil, que mais parecia uma cama. O filme mal tinha começado quando Rebecca apareceu e parou de pé ao meu lado, com ar de arrependida.

— Me desculpe por ter sido grossa com você. É que não estou em um bom dia.

Desviei meus olhos da TV por um momento e notei que ela estava vestida para sair.

— Aonde você vai? — perguntei, ignorando suas desculpas.

— Trabalhar.

— Pensei que não quisesse ir.

— E não quero mesmo.

— Ué, então não vá. Fique aqui com a gente.

— Shhhhh! — fez Megan, com um dedo sobre a boca e o outro apontando para a TV. — Tem gente tentando assistir o filme!

Rebecca se virou e saiu da sala. Eu me levantei e a segui.

— Você não precisa ir trabalhar se não quiser. Deixe aqueles machistas se virarem sem você só por um dia. Vão implorar que você volte!

Ela sorriu. Um sorriso tímido e meio amarelo, mas já era alguma coisa.

— Esse não era exatamente o meu sonho, sabe? Trabalhar em uma cozinha industrial, replicando pratos famosos e servindo pessoas em grande quantidade... É tudo como se fosse uma grande linha de montagem de uma fábrica. — suspirou. — O que eu queria mesmo era abrir meu próprio bistrô em Montreal, ou talvez até em Paris. Ter só mais um ou dois funcionários e fazer comida boa para uma clientela exclusiva. Esse era o meu sonho... Isso, e talvez fazer o meu próprio livro de receitas um dia. Mas, em algum, momento acabei me perdendo.

— Você ainda pode ir atrás do seu sonho. Por que não?! Você está com quantos... 20, 21 anos?

— Eu tenho 25 — ela me olhou impaciente.

— Ainda assim, é nova demais para desistir de sonhar! Por que não faz o que quer? Seu pai tem dinheiro suficiente para comprar um bistrô famoso de Paris só para você.

— Mas aí seria uma realização do meu pai, não minha — ela olhou para o chão. — Você não entende.

— Entendo sim — eu a abracei e, com um movimento sutil, retirei a bolsa de seu ombro. — E não vou deixar que você vá estragar seu sonho com aqueles machistas nem mais um dia! Nós podemos ficar aqui esta noite e pedir comida japonesa.

— Pensei que você tivesse dito que não gosta de comida japonesa — Rebecca ergueu os olhos e voltou a me encarar.

— E não gosto mesmo. Mas gosto de você, e você gosta de comida japonesa. Então vamos pedir. Você não precisa cozinhar hoje.

Finalmente ela deu um largo e sincero sorriso, me abraçando de volta.

— Você é incrível!

— Eu sei.

Depois que nossa comida japonesa chegou, levamos também para Megan e Alana que ainda viam o filme em silêncio, exceto pelo som do colete terapêutico de Meggie, que ecoava pela sala. A TV estava no último volume para competir com o barulhento colete, mas, mesmo assim, colocamos legendas em espanhol, para ajudar Alana que ainda tinha alguma dificuldade com a língua.

Assistimos um filme após o outro, até que a maioria já tivesse pegado no sono. Quando só eu ainda estava lutando bravamente para permanecer acordado, recebi uma mensagem de Jessie. Tinha uma foto dela com os amigos em um hotel de beira de estrada.

"Vamos passar a noite aqui. Boa noite, Sammy."

Adormeci antes mesmo de desligar o celular.