Qual a relação da concentração de terra no Brasil e os conflitos no campo?

  • 1 A Comissão Pastoral da Terra é uma instituição da Igreja Católica criada em 1975. Desde 1986 ela do (...)

1Segundo a CPT - Comissão Pastoral da Terra1, em 2017 ocorreram no Brasil 1.431 conflitos no campo envolvendo 708.520 pessoas e 37.019.114 hectares. Parte dos conflitos originou violências contra a pessoa. Em 2017 foram 71 assassinatos, 120 tentativas de assassinatos, 2 mortos em consequência, 226 ameaças de morte, 6 torturados, 263 presos e 137 agredidos.

  • 2 Posseiro é quem se apossa de uma porção de terra, geralmente pública, e não possui a propriedade le (...)
  • 3 Os grileiros são grandes posseiros que falsificam documentos para legalizar suas posses. O termo gr (...)
  • 4 Quilombolas são os membros dos quilombos, que são comunidades rurais formadas por negros que fugira (...)

2A violência é cometida pelos grandes possuidores de terra (grandes posseiros2, grileiros3, fazendeiros, empresários) e até pela polícia durante o cumprimento de ordens judiciais de despejo. Os alvos são os pobres e oprimidos do campo (camponeses, sem-terra, indígenas, quilombolas4, pequenos posseiros, dentre outros).

Gráfico 1

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Qual a relação da concentração de terra no Brasil e os conflitos no campo?

  • 5 Ver: GIRARDI, Eduardo Paulon. Atlas da Questão Agrária Brasileira. www.atlasbrasilagrario.com.br

4O Brasil possui 8,5 milhões km2 e a sua estrutura fundiária está dentre as mais concentradas do mundo. O Índice de Gini para a terra no país figura acima de 0,8005 - uma grande concentração. O Censo Agropecuário 2017 contou 5 milhões de estabelecimentos agropecuários que perfazem 350,2 milhões de hectares. Desses, os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares são 1% dos estabelecimentos e concentram 47,5% das terras. Por outro lado, há um grande número de estabelecimentos cuja área é extremamente pequena: aqueles com menos de 5 hectares, mesmo sendo 37,3% dos estabelecimentos, ocupam somente 0,98% da área. Os produtores sem área específica eram 76.671 em 2017.

5Dos 350 milhões de hectares dos estabelecimentos agropecuários, 63,4 (18%) milhões são de lavouras, 158,6 (45%) milhões de pastagens, 101,6 (29%) milhões de matas e florestas e 26,6 (8%) milhões são de outros usos.

Tabela 1

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Qual a relação da concentração de terra no Brasil e os conflitos no campo?

7Como explicar tão intensa disputa por terras com violência contra pobres do campo em um país continental; com níveis de concentração de terra elevadíssimos; onde os estabelecimentos agropecuários perfazem 350,2 milhões de hectares, a agricultura utiliza apenas 18% dessa área e a pastagem extensiva domina 45% das terras; um país em que a taxa de urbanização é alta e a população rural é de apenas 15,6% (29,8 milhões de pessoas)? Tentaremos dar uma resposta breve neste texto.

8O Brasil é caracterizado por uma forte desigualdade social, concentração de renda e patrimônio e altos índices de violência e pobreza. Esses fenômenos são causa e efeito, respectivamente. Essa estrutura tem origem na formação social, econômica e territorial brasileira, cuja raiz primeira é a forma concentrada como as terras passaram (e ainda passam) do domínio público ao domínio privado.

  • 6 Embora haja novos elementos da questão agrária que possuem relação com os conflitos e violências no (...)

9A violência no campo brasileiro não deve ser entendida como uma continuação da violência nas cidades. Suas causas são diferentes, embora tenham a mesma origem histórica/estrutural. Os conflitos e a violência no campo no Brasil têm relação com a permanência da questão agrária. Para entender os conflitos e violências no campo brasileiro temos como referência neste artigo os elementos da questão agrária tradicional6, quais sejam: a desintegração do campesinato; a concentração da terra e do poder político e econômico de quem a detém; e a necessidade de uma efetiva e estrutural democratização do acesso à terra (reforma agrária) para otimizar a produção, o mercado interno e o trabalho no país, com o objetivo de desenvolver o próprio capitalismo. A solução de tais problemas no século XIX e até na primeira metade do século XX teria certamente dado rumos diferentes ao país, mas infelizmente a conservadora elite brasileira não permitiu.

Figura 1 Violência no campo

Qual a relação da concentração de terra no Brasil e os conflitos no campo?

  • 7 Ver: MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2010.

10- O primeiro impedimento de resolução da questão agrária ocorreu em 1850, quando foi promulgada a Lei de Terras brasileira. A lei tinha como objetivo impedir o acesso à terra aos escravos que seriam iminentemente libertos (1888) e principalmente aos imigrantes europeus que chegariam para substituí-los nas lavouras de café. Em um país de trabalho livre a terra teria que ser cativa7, pois o contrário permitiria que os imigrantes não se submetessem ao trabalho assalariado, e sim formassem unidades camponesas.

  • 8 Ver: OSORIO SILVA, Ligia. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Unicamp, (...)

11- A Lei de Terras de 1850 tornou propriedade privada todas as terras concedidas pela coroa portuguesa até 1822 (independência do Brasil) e também aquelas terras que foram apossadas entre a independência e 1850. Contudo, na metade do século XIX, apenas uma pequena parte das terras que formam hoje o território brasileiro tinha sido concedida ou apossada. A corrupção, a grilagem e a influência na elaboração das legislações agrárias que seguiram a Lei de Terras de 1850 possibilitaram a continuação da transferência das terras públicas para o domínio privado de forma concentrada, privilegiando os latifundiários8.

12Em 1891 passou do Governo Federal para os Governos Estaduais a decisão sobre a forma como as terras públicas seriam privatizadas. Com isso, um processo clientelista foi estabelecido e os pobres do campo foram alvo de violências e controle dos poderosos locais, mais uma vez impedidos de ter acesso à terra. Este processo clientelista teve forte influência durante o período da República Velha (1889-1930).

13Os sem-terra e os pequenos posseiros não dispunham de poder econômico e político para terem suas demandas atendidas. Quando se apossavam de terras públicas, por vezes eram expulsos por grileiros. A propriedade camponesa só se desenvolveu de forma periférica e relutante na formação agrária brasileira – embora importante, pois desde o Brasil colônia até hoje é responsável pelo abastecimento interno. A exceção ocorreu apenas em partes dos estados do Sul do país, onde o Estado promoveu a ocupação com base na propriedade camponesa.

  • 9 Ver: STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: o debate tradicional – 1500-1960. vol. 1. Sã (...)

14Impedida a democratização do acesso à terra no século XIX e início do século XX, as discussões sobre a necessidade da reforma agrária foram amplas e ganharam muita força nas décadas de 1950 e 1960. Para além de propostas de referência socialista, também haviam os defensores da sua necessidade para próprio desenvolvimento do capitalismo no Brasil, além de ser uma questão de democracia e de justiça social9. Na década de 1940 surgem as Ligas Camponesas, sob influência do Partido Comunista Brasileiro. As Ligas foram a primeira forma articulada de luta pela reforma agrária realizada por movimentos sociais no país.

15A reforma agrária era uma das reformas de base propostas pelo Presidente João Goulart que, em março de 1964, anunciou o início dessas reformas. No dia 31 daquele mesmo mês ocorreu o golpe civil-militar, que pôs fim às Ligas Camponesas e calou a parte progressista da sociedade brasileira até a década de 1980.

16A Ditadura Militar (1964-1985) não realizou a reforma agrária, mas sim promoveu uma modernização conservadora da agricultura brasileira, com a manutenção da concentração da terra nas regiões de ocupação antiga do país e a abertura da fronteira agropecuária na Amazônia e nos Cerrados (Norte e Centro-Oeste), cujas terras foram apropriadas também de forma concentrada. Aí formou-se um importante foco dos conflitos campo que permanece até hoje.

17A luta pela terra estruturada em movimentos sociais só foi possível novamente na década de 1980 e sua expressão mais notável é o surgimento, no início daquela década, do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o que incentivou o surgimento de vários outros movimentos com o mesmo objetivo: a realização da reforma agrária.

  • 10 O artigo 186 da Constituição Federal do Brasil diz que: “A função social é cumprida quando a propri (...)

18Ao final da ditadura, a reforma agrária esteve presente durante a elaboração da nova Constituição Federal, promulgada em 1988. Contudo, a forma final como o tema foi disposto não permitiu avanços importantes, já que a realização da reforma agrária ficou vinculada ao pagamento aos que tivessem suas terras desapropriadas para este fim. Constitucionalmente, as terras susceptíveis à desapropriação para a reforma agrária são aquelas improdutivas ou que não cumprem a sua função social10.

19As terras que ainda eram públicas poderiam ser utilizadas para a criação de assentamentos rurais, mas no final da década de 1980 essas terras estavam principalmente na Amazônia, o que diminuía as possibilidades de criar estabelecimentos familiares prósperos. Mesmo assim, grande parte da política de assentamentos rurais nas últimas três décadas ocorreu na Amazônia. Já as terras em regiões antigas estavam todas ocupadas e de alguma forma já eram propriedade privada, necessitando ser compradas pelo Estado, cujos recursos são escassos.

20Assim, mesmo que prevista na Constituição, a realização de uma reforma agrária ampla estava limitada ao orçamento público: eis então a última estratégia para que a reforma agrária estruturante não fosse novamente realizada. Restou, portanto, a política de assentamentos rurais desenvolvidas desde então, e que é feita apenas sob grande pressão dos movimentos sociais. Embora importante, a política de assentamentos rurais não teve relevância estrutural.

  • 11 DATALUTA – Banco de Dados da Luta Pela Terra. www.fct.unesp.br/nera

21O principal instrumento de luta dos movimentos sociais é a ocupação de terras susceptíveis à reforma agrária por serem improdutivas, não cumprirem a função social ou então por terem documentação falsa/questionável (provavelmente terras griladas). Segundo o DATALUTA – Banco de Dados da Luta Pela Terra11, entre 1988 e 2017 foram realizadas no Brasil 9.929 ocupações de terra com a participação de 1.362.576 famílias. No ano de 2017 foram 181 ocupações realizadas por 20.596 famílias.

22Além das ocupações de terra os movimentos sociais realizam vários tipos de manifestações para exigir outros elementos além do acesso à terra. Entre 2000 e 2017 foram realizadas 13.356 manifestações com a participação de 78.445.764 pessoas. No ano de 2017 participaram dessas manifestações 396.691 pessoas.

  • 12 Ver: I) MITIDIERO JÚNIOR, Marcos; FELICIANO, Carlos Alberto. A violência no campo brasileiro em tem (...)

23O grupo que sofre o maior número de violência é dos camponeses, formado por pequenos posseiros e sem-terra. Os dados da CPT mostram que em 2017 foram assassinados 46 deles, outros 67 foram alvo de tentativas de assassinato e 113 foram ameaçados de morte. Vale ressaltar que no ano de 2017 ocorreram cinco massacres que foram responsáveis por 31 dos 71 assassinatos naquele ano. Desde 2015 há um aumento da violência no campo, em especial no número de assassinatos (2014->36; 2015->50; 2016->61; 2017->71 assassinatos). Algumas análises12 mostram que em períodos de transição política importante há uma tendência de aumento da violência no campo por parte dos grandes possuidores de terra.

24As terras indígenas já demarcadas sofrem constante invasões de grileiros e madeireiros e os povos indígenas que demandam o reconhecimento de novas terras sofrem forte violência, visto que grande parte dessas terras reivindicadas estão sob domínio de grandes possuidores. Trata-se de uma importante fonte de conflitos no campo. Em 2017 a CPT registrou 5 assassinatos, 16 ameaças de morte e 26 tentativas de assassinatos de indígenas. Da mesma forma que os indígenas, os quilombolas reivindicam o reconhecimento e delimitação de suas terras tradicionais, o que gera conflitos e faz com que sejam alvo de violência. Em 2017 foram assassinados 11 quilombolas, 4 outros sofreram tentativas de assassinato e mais 34 foram ameaçados de morte.

  • 13 Ver: THÉRY, Hervé et al. Atlas do Trabalho Escravo no Brasil. 2009. https://www.amazonia.org.br/wp- (...)
  • 14 Cálculos realizados por: PLASSAT, Xavier. Trabalho escravo: a queda de braço. Texto publicado no Ca (...)

25Outro tipo alarmante de violência que a CPT registra é o trabalho escravo13. Trata-se de mais uma forma de violência que demonstra a mentalidade que permeia aqueles que possuem poder político e econômico que emana da terra. Em 1995 o Estado brasileiro reconheceu o problema e desde então tem realizado ações para o combate, com a libertação de trabalhadores. Os trabalhadores são provenientes de regiões pobres, sem emprego e são escravizados para a realização de atividades pesadas no campo ou na cidade. De acordo com a CPT, entre 2011 e 2017 foram libertados pelo Ministério do Trabalho 7.955 trabalhadores escravizados no campo brasileiro, sendo 386 deles no ano de 201714.

26Para concluir, vou ater-me ao acesso à terra, embora a questão agrária tenha numerosas dimensões. Infelizmente o Brasil perdeu as grandes janelas históricas para promover uma formação agrária mais democrática ou para realizar uma reforma agrária estrutural que tivessem reflexos muito positivos na construção de um país melhor. Contudo, ainda hoje há muito que pode ser feito no campo brasileiro e que contribuiria para a melhoria na vida de todos, do campo e da cidade.

27O primeiro passo seria dar acesso à terra àqueles que querem nela trabalhar, produzir e morar. A ponta do iceberg são as 20.596 famílias que participaram de ocupações de terra em 2017; os 1,8 milhão de estabelecimentos agropecuários com menos de 5 hectares (muito pouca terra); e os 76.671 produtores que não possuem terras específicas para realizar suas atividades que foram contabilizados no Censo Agropecuário de 2017. Contudo, dar acesso à terra para essas famílias na forma constitucional, que exige o pagamento das terras desapropriadas, é praticamente impossível por questões de orçamento. Por outro lado, fazer algo diferente disso resultaria em um barril de pólvora.

28Um segundo passo é fornecer meios para que os que já estão na terra possam aí permanecer dignamente. Trata-se uma oportunidade que poucos países do mundo ainda podem ter. Isso ajuda a resolver problemas como o da criação de emprego, cujos incentivos governamentais para a criação nas cidades certamente não são mais baratos do que os gastos que haveria para criá-los no campo.

29Essas medidas não são opostas com manter o Brasil como uma potência agrícola e tudo isso pode ser feito sem avançarmos sobre terras indígenas, quilombolas ou sobre as florestas. Há muita terra subutilizada (a pastagem como é manejada no Brasil é uma forma). O avanço sobre as florestas e terras indígenas não são mais do que estratégias de produção de novas fazendas/terras para vendê-las no futuro. É a continuação da apropriação privada concentradora de terras.

30Para que resolver os conflitos no campo brasileiro é necessário que a elite do país entenda que mudanças agrárias estruturais são boas para todos. Contudo, infelizmente é quase certo que nada disso irá mudar, pelo menos no curto prazo. Os conflitos e a violência no campo brasileiro continuarão. Resolver a questão agrária ainda é fundamental para o desenvolvimento do Brasil, embora a cada dia o país perca um pouco dessa oportunidade.

Por que a questão da terra no Brasil leva o conflito?

A maioria tem sua causa ligada a grandes projetos, como barragens, ferrovias, rodovias, parques eólicos, e mineração. Mas o que mais marca o ano de 2010 nesse quesito é o crescimento do número de assassinatos em conflitos no campo: 34 assassinatos, um número 30% maior que em 2009, quando foram registrados 26.

Qual a relação entre a concentração fundiária e os conflitos no campo?

O Brasil sustenta historicamente uma grave concentração fundiária no campo e na cidade. O índice Gini – medida de desigualdade – aponta o quanto a concentração de terras no país é assustadora. Numa escala de 0 a 1 (em que o mais próximo a 0 significa menor a desigualdade), temos um índice de 0,820.

Quais são os principais conflitos de terra no Brasil?

A Amazônia foi palco de 52% dos conflitos por terra no Brasil em 2021. Sozinha, a região tem 62% do número de famílias atingidas. Além disso, 97% das áreas de conflitos - quase 69 milhões de hectares - estão no bioma amazônico.

Qual a relação entre a estrutura fundiária brasileira e os conflitos no campo explique?

Essa concentração fundiária contribui para o agravamento dos problemas no campo, visto que a maior parte das terras, muitas vezes improdutivas, encontra-se concentrada na mão de poucos proprietários, o que aumenta a quantidade de pessoas sem acesso à terra, intensificando, assim, os conflitos causados pela disputa por ...