Qual foi a principal motivação para a implantação de ferrovias no Brasil no final do século XIX?

Introdução

  • 1 A pandemia de COVID-19 ou pandemia de coronavírus, é uma condição epidêmica na qual a doença causad (...)

1A pandemia de COVID-191 expôs as contradições da lógica capitalista ao atacar todas as bases de sustentação de Estado de bem-estar social que de tempos em tempos se anunciava, mas que nunca se efetivou no Brasil. No quadro nacional, que se engendra em uma tendência mundial neoliberalizante, « historicamente específica, desenvolvida de maneira desigual, híbrida e padronizada de reestruturação regulatória disciplinada pelo mercado » (BRENNER, PECK, THEODORE, 2012, p. 18), o que se nota cada vez mais é precarização, intensificação da exploração da força de trabalho e expropriações dos mais variados tipos.

2A questão ambiental pede atenção, posto que a relação de trabalho envolvendo humanos e natureza, metabolismo na obra marxiana (MARX, 2013), intensivou-se de tal modo que não se sustenta. Vivenciamos um quadro econômico perturbador, com a exacerbação de um interregno político no qual o governo federal, de postura obscurantista e anticienticificista, conduz o país em uma crise sanitária sem precedentes. Até a escrita deste artigo, mais de 500 vidas foram ceifadas no Brasil. Este fenômeno merece atenção e contribuições dos distintos campos científicos, acadêmicos e sociais, para entendermos quais elementos, ideários, modelos de sociedade, agentes e geometrias de poder nos levaram a tamanha catástrofe.

3A conjuntura pandêmica revela questões importantes para esta pesquisa, pois permite comparações que auxiliam na identificação e no entendimento dos processos relacionados ao capitalismo, ao neoliberalismo e às ferrovias brasileiras. Se pensarmos no capitalismo como algo sempre acelerado, rápido, veloz – como por muito tempo ficou simbolizado na imagística das ferrovias e dos trens (HOBSBAWM, 1977) – a pandemia inicialmente parecia um freio no sistema, pois algumas atividades foram interrompidas, suspensas, postergadas, ainda que temporariamente. No entanto, capitalismo e neoliberalismo se encontram consolidados espacialmente e socialmente – assim como as ferrovias brasileiras – e dão sinais de que não houve freio nos processos de exploração, concentração e centralização de capital. Nesse ínterim, a infraestrutura ferroviária acompanha e estrutura tais processos.

4Sendo o modo de produção e reprodução das condições materiais mais abrangente no mundo, a história da humanidade mostra que o capitalismo se perpetua e se fortalece através dos séculos, apesar de todas as suas contradições. A crítica que surgiu na obra marxiana já o descrevia como uma complexa relação social, com conflitos que se intensificam no processo de revolucionamento dos meios técnicos, como no caso do advento das ferrovias. Nesse sentido, o que se verifica na atualidade e pode ser observado nas ferrovias brasileiras é que, com a instauração de uma ordem neoliberal, os processos tomaram outras proporções e velocidades. A desigualdade que avança de modo desenfreado em meio à pandemia vai em ritmo de ferrovia.

5Pelo mundo afora, as ferrovias foram acionadas na logística de combate ao coronavírus, geridas de forma aliada aos interesses sociais em diversos aspectos. Devido a características como maior capacidade, segurança, pontualidade, menor índice de acidentes e boa eficiência energética, o modal ferroviário tem sido essencial para suprir necessidades básicas das populações como alimentação, medicamentos, equipamentos hospitalares e sanitários em lugares como Espanha, Índia e Rússia (UIC, 2020). As ferrovias têm sido essenciais nestes países principalmente no que se refere à pontualidade frente a tantas emergências no setor de saúde. No entanto, no Brasil a realidade é diferente. O modal ferroviário brasileiro, que de acordo com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), caracteriza-se « por sua capacidade de transportar grandes volumes, com elevada eficiência energética, principalmente em casos de deslocamentos a médias e grandes distâncias, com maior segurança em relação ao modal rodoviário, menor índice de acidentes e de incidência de furtos e roubos » (ANTT, 2018, p. 65), segue sendo utilizado da mesma forma que nos anos anteriores, em uma dinâmica tão desenfreada que permite a analogia com o próprio capital.

  • 2 « A indústria do transporte e da comunicação, que vende mudança de localização, é diretamente produ (...)

6Por isso, apresentamos uma crítica acerca da produção de transporte2 nas ferrovias brasileiras e sobre a conformação dos territórios que abrangem, distinguindo temporalmente a conjuntura pandêmica e trazendo aspectos históricos requeridos para a sua compreensão. Analisamos o modelo hegemônico da produção de transporte nestas ferrovias para compreendermos os meios de constituição e perpetuação deste modelo. Enfocamos aquelas que produzem mais toneladas úteis tracionadas na atualidade em virtude da lida com o minério de ferro: A Estrada de Ferro Carajás (EFC) e a Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), concedidas à Vale S.A.; e a Malha Regional Sudeste (MRS), concedida à MRS Logística S.A.

7Com perspectiva multidisciplinar, consideramos para a produção dessa pesquisa a confluência entre o objeto empírico e objeto teórico. Esta confluência pode ser descrita pelo conceito de neoextrativismo que, além descrever e explicar, detém caráter de denúncia e poder mobilizador, remetendo às assimetrias observadas no contexto latino-americano desde a colonização e ao acirramento de uma lógica de despossessão relacionada a modelos insustentáveis de desenvolvimento (SVAMPA, 2019).

  • 3 Evento que aconteceu em março de 2021. Ver webpage <https://seminariopovosnatureza.org/>.

8A pandemia, que favoreceu vários entraves em termos de observação, tornou-se também oportunidade. Encontramos meios de investigação de forma remota e, assim, constituiu-se o objeto empírico. Acompanhamos mobilizações protagonizadas por redes e organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Articulação Internacional das Atingidas e dos Atingidos pela Vale (AIAAV) e sobretudo a Rede Justiça nos Trilhos (JnT), que contesta a atuação de empresas do setor da mineração e o seu inegável atrelamento ao setor ferroviário. Como uma rede, a JnT tem atuação consolidada nacionalmente e promove constantemente a interface com a abordagem acadêmica sobre as lutas e mobilizações – o que se verificou recentemente no Seminário Internacional sobre Direitos Humanos e Empresas. Povos, Comunidades, Natureza: Insurgências frente ao extrativismo predatório3– organizado pela JnT, pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e pelo Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão (GEDMMA/UFMA). Por outro lado, para encontrar o objeto teórico, apoiamo-nos no que « Marx chamaria de método de descenso – partimos da realidade imediata ao nosso redor e buscamos, cada vez mais profundamente, os conceitos fundamentais dessa realidade » (HARVEY, 2013, p. 19). Com esses conceitos fundamentais, pudemos fazer o caminho de retorno – o método de ascenso – com uma visão que nos permitiu interpretar a inserção do objeto de pesquisa no mundo através de conceitos, noções e expressões condizentes.

9« Não se entendem as partes sem o entendimento do todo, e esse entendimento passa, hoje, pela economia política » (SANTOS, 1994, p. 119). Considerando esta passagem, a construção do objeto teórico é feita a partir do prisma do materialismo histórico e dialético, que nos é útil para observar criticamente o revolucionamento dos meios técnicos e enfatizar os papéis atribuídos às ferrovias nas relações capitalistas e neoliberais no Brasil. Consideramos a literatura marxista sobre a produção capitalista do espaço e as infraestruturas, nos fundamentamos em autores que se propuseram a pensar em uma perspectiva crítica e não a-histórica. Com isso almejamos contribuir para a compreensão das condicionantes na conformação dos territórios no processo de acumulação de capital relacionado às ferrovias no Brasil. Tal abordagem teórico-metodológica nos oferece fundamentos para a compreensão de todo um percurso histórico, bem como para a abordagem da atualidade.

10Este artigo está compartimentado em quatro capítulos além desta introdução e das considerações finais. Em Coqueluches ferroviárias partimos de uma abordagem histórico-estrutural, objetivando a abordagem das primeiras relações que estruturam as geometrias de poder em torno de algumas ferrovias brasileiras. Em Trens de carga como serviços essenciais apresentamos os principais questionamentos e a problemática desta pesquisa, abordando a catástrofe vivida no Brasil em meio à pandemia de COVID-19 e sua relação – ou falta de – com os trens de carga enquanto serviços essenciais. Em Pandemia: um freio no sistema? nos debruçamos sobre experiências e conflitos relacionados ao setor de mineração no século XXI e indagamos sobre o rumo dos acontecimentos no porvir. Por fim, em As renovações do espectro neoliberal apresentamos indícios de que a pandemia não constitui um freio no sistema, tendo como base a análise das políticas públicas em vigor e o seu papel na garantia da ordem neoliberal. Apesar de manterem uma certa autonomia entre si, os capítulos têm um fio condutor pensado para a investigação da relação causa-consequência presente no modelo hegemônico da produção de transporte nas ferrovias brasileiras.

Coqueluches ferroviárias

11Partimos da constituição histórica da infraestrutura ferroviária brasileira para chegarmos a compreensão dos princípios hegemônicos de sua conformação na atualidade. As primeiras relações de poder em torno de algumas ferrovias possuem longa data. Compreendê-las é essencial.

12O advento das ferrovias deu-se na Inglaterra no final do século XVIII e início do século XIX, atendendo a demandas industriais e, em seguida, abarcando outros usos. Em poucas décadas, as ferrovias se estabeleceram nos principais centros daquela época, período caracterizado como Revolução Industrial, e se difundiram pelo mundo. Emolduradas pelo capitalismo e com o revolucionamento técnico dos meios de produção, as « coqueluches ferroviárias » (HOBSBAWN, 1977, p. 62), constituíram um período de especulação aparentemente irracional que foi determinante para a transformação das condições materiais de produção e, consequentemente, para a conformação dos territórios. Ao passo que transformavam as noções humanas de espaço, tempo e velocidade, as ferrovias revelavam de modo tangível as transformações das sociedades. Assim, tornaram-se um dos principais símbolos daquele período, sendo « o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular » (HOBSBAWM, 1977, p. 61).

13Ao serem implantadas, as ferrovias contribuíram para constituição e perpetuação de um desarranjo social caracterizado justamente na distinção entre o erudito e o popular. Foi, inclusive, ao observar este desarranjo que Marx teorizou e ilustrou o modo de produção capitalista (MARX, 2013), através da observação e análise do processo na Europa, particularmente na Inglaterra. Da mesma forma, foi ao observar as contradições decorrentes do capital que Berman concebeu a modernidade como um conjunto de experiências paradoxais que « nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição (...) um universo no qual, como disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar » (BERMAN, 1986, p. 24).

14Esse processo de ruptura do qual as ferrovias fizeram parte não ficaria restrito à Europa. « Mal tinham as ferrovias provado ser tecnicamente viáveis e lucrativas na Inglaterra (por volta de 1825-30) e planos para sua construção já eram feitos na maioria dos países do mundo ocidental, embora sua execução fosse geralmente retardada » (HOBSBAWM, 1977, p. 61). Este foi o caso do Brasil, onde a implantação das primeiras ferrovias data dos anos 1850, em um processo parecido com aquele observado na Europa por Marx e Hobsbawm. É certo que as ferrovias na Europa e no Brasil foram implantadas em contextos díspares, mas o desarranjo social e as contradições pontuadas anteriormente têm similaridades no contexto brasileiro.

15Não obstante, devido às peculiaridades, o Brasil apresentou outras questões por sua constituição capitalista tardia, periférica e dependente, e do seu papel primário-exportador em uma divisão internacional do trabalho e da produção – consequência de seu passado colonial. A Revolução Industrial – e as ferrovias – refletiram-se do outro lado do oceano por força de um processo civilizatório, no qual o Brasil passou da condição de feitoria colonial portuguesa à condição de país aspirante ao comando de seu próprio destino (RIBEIRO, 1978). Neste processo conturbado, que envolveu a distinção de classes sociais, o Estado brasileiro estava pautado num liberalismo econômico clássico e num progressismo – a princípio, meramente tecnológico – que resultaram na incorporação do modo de produção capitalista simultaneamente à implantação de boa parte de sua infraestrutura ferroviária. As relações de produção nas quais o Brasil se engajou, com sua economia baseada essencialmente na exportação de produtos primários, não teria sido possível sem a implementação de uma infraestrutura ferroviária. Portanto, depreendemos que o Brasil assim como outros lugares ao redor do mundo, viveu o seu momento de coqueluche ferroviária, época na qual muitas ferrovias não só foram idealizadas e implantadas, mas tiveram um papel fundamental em articulações políticas e suas congruências econômicas, na constituição espacial dos principais centros urbanos brasileiros e subúrbios, e na conformação territorial propriamente dita.

  • 4 A MRS corresponde às anteriores i) Estrada de Ferro Dom Pedro II – com seções inauguradas entre 185 (...)

16A partir dos anos 1850, e intensivamente entre os anos 1870 e 1920 (BARAT, 1978), houve a maior expansão do sistema ferroviário brasileiro – a coqueluche ferroviária brasileira. Data daquela época a implantação da maior parte da atual Malha Regional Sudeste4 cujo traçado esteve relacionado à cultura do café na região do Vale do Paraíba – a princípio, em território fluminense e, logo em seguida, paulista. Tal extensão ferroviária consolidou-se espacialmente e socialmente ainda no século XIX como um forte condicionante do território da região Sudeste.

17Na sequência do que se nota no histórico da MRS e algumas outras malhas, o Brasil parece ter ficado com algumas sequelas que de tempos em tempos voltam a aflorar. Isso pode ser observado no histórico da Estrada de Ferro Vitória a Minas, que foi idealizada ainda no século XIX e teve sua primeira seção inaugurada no início do século XX. Por conta das modificações de traçado, que seguiam oscilações econômicas e interesses políticos que reverberavam de uma dependência externa, a EFVM consolidou-se apenas no final do século XX, em um processo dispendioso que acompanhou tendências econômicas relacionadas à produção de produtos primários – a princípio do café e, logo em seguida, da extração de minério no Vale do Rio Doce, na região do Quadrilátero Ferrífero, Minas Gerais.

18No ensejo do último quartel do século XX, sequelas podem ser observadas na conformação de outras ferrovias: a Estrada de Ferro Carajás inaugurada em 1985 e a Ferrovia do Aço inaugurada oficialmente em 1989. A EFC é parte de um projeto maior gestado durante a Ditadura Militar – o Projeto Grande Carajás – idealizado assim que foram descobertas as reservas de minério de ferro na Serra do Carajás, Pará. Consolidou-se como um elemento crucial na configuração espacial e na conformação dos territórios que abrange, desde o sudeste paraense até o litoral maranhense, tendo sido inclusive duplicada recentemente, entre 2010 e 2018. Tal ampliação deu-se mediante a implantação do Projeto S11D que, entre outros objetivos, visou i) a abertura de uma nova mina; ii) a construção de uma planta de beneficiamento a seco; iii) a construção do Ramal Ferroviário do Sudeste do Pará, da Rodovia em Canaã dos Carajás e a expansão do Terminal Portuário de Ponta da Madeira – tendo como motivo principal a elevação da produção de minério de ferro (FAUSTINO, FURTADO, 2013). Já a Ferrovia do Aço era idealizada desde meados do século XX, em virtude da crescente demanda de transporte de minério entre a região do Quadrilátero Ferrífero e a Usina da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda. Inclusive, atualmente a malha da Ferrovia do Aço integra a MRS. Considerando o quadro brasileiro no final do século passado, vemos que estas ferrovias são testemunhas do fim da era nacional-desenvolvimentista e do fortalecimento neoliberal no Brasil.

19Certamente, muito do que se nota na atualidade é consequência da mundialização do capital e das crises e rodadas de neoliberalização (BRANDÃO, 2017) que mostram como as privatizações, a internacionalização da economia, a destruição de postos de trabalho, de direitos e de garantia – fatores observados no setor ferroviário – contribuem para um Brasil cada vez mais desigual. Estes são processos imprescindíveis para a concretização e perpetuação do modo de produção capitalista, pois « somente no mercado mundial o dinheiro funciona plenamente como a mercadoria cuja forma natural é, ao mesmo tempo, a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano in abstracto »(MARX, 2013, p. 284). E com o neoliberalismo, espectro que « se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo » (HARVEY, 2008, p. 13), o capital logrou persistir mesmo com todas as crises e colapsos, assim como a lógica do transporte operado nas ferrovias brasileiras.

20Construções, ampliações, adaptações e reorientações das ferrovias brasileiras nas últimas décadas evidenciam questões fundamentais para compreender a commoditificação da produção do que quer que seja, em outras palavras, a padronização produtiva para ser negociada no mercado mundial. Nesse sentido, nada foi tão categórico quanto a instituição do Programa Nacional de Desestatização, nos anos 1990, e o direcionamento dado à infraestrutura ferroviária brasileira nesse programa: as ferrovias foram entregues pelo Estado à iniciativa privada através de longos contratos de concessão que perduram até a atualidade. Em função de tais marcos regulatórios, estão em vigência mais de uma dúzia de contratos de concessão e subconcessão para empresas especializadas em logística e transporte de produtos primários e está em andamento a expansão da malha ferroviária visando uma melhor integração das regiões produtoras aos portos (ANTT, 2020).

21Com isso, a Malha Regional Sudeste foi concedida à empresa MRS Logística S.A., em 1996, em um contrato de 30 anos que concedeu mais de 1.600 quilômetros de estrada de ferro; e as ferrovias Estrada de Ferro Carajás, com cerca de 980 quilômetros, e Estrada de Ferro Vitória a Minas, com cerca de 895 quilômetros, foram concedidas à empresa Vale S.A., em 1997, em contratos também de 30 anos. Um panorama das ferrovias concedidas com destaque para a EFC, a MRS e a EFVM pode ser observado a seguir.

Figura 01 – Mapa das ferrovias concedidas (adaptado)

Qual foi a principal motivação para a implantação de ferrovias no Brasil no final do século XIX?

Fonte: MInfra (2019)

22Estas ferrovias abrangem, respectivamente, quase trinta municípios e mais de 100 comunidades quilombolas e indígenas no Pará e no Maranhão; mais de sessenta municípios mineiros, fluminenses e paulistas; e mais de quarenta municípios entre Minas Gerais e Espírito Santo, incluindo o território do povo Krenak no Vale do Rio Doce.

23Portanto, um olhar certeiro sobre as ferrovias brasileiras observa o seu persistente papel de não integração física e articulação territorial, mas de escoamento da produção primário-exportadora do Brasil – país que se insere no quadro mundial como um dos principais exportadores de commodities. Em grande medida, tal produção étransportada por ferrovias desde as regiões interioranas de produção até as regiões costeiras, para exportação. Com isso, é possível compreender que através da concessão das ferrovias brasileiras foi conferido às concessionárias um maior poder sobre os seus territórios de abrangência. Já havia sido constatado que a privatização dos setores responsáveis pela infraestrutura tem como consequência a privatização dos processos de planejamento e de controle territorial (VAINER, 2007) e, no caso da infraestrutura ferroviária, isto se nota em muitos aspectos. Ao identificarmos a consolidação deste caráter operacional nas ferrovias brasileiras, que se mantém hegemônico ao longo das rodadas da neoliberalização, constatamos o poder e a influência que determinados agentes – empresas, sociedades anônimas – têm sobre os locais de abrangência das ferrovias, configurando coerências estruturadas no espaço (HARVEY, 2005).

  • 5 Recentemente e após longos processos judiciais, houve a instituição legal de repasses e compensação (...)

24Conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as concessões ferroviárias no Brasil apresentaram resultados positivos em investimentos e produção no início do presente século. Por outro lado, as ferrovias tornaram-se « apenas um meio de transporte eficiente para as commodities agrícolas e minerais negociadas pelo país, produzidas ou extraídas em áreas tradicionais ou em novas fronteiras de monocultura » (IPEA, 2010, p. 04), sendo o desenvolvimento socioeconômico nas regiões por onde passam considerado irrelevante. Esta constatação confere com o que regulamenta a Lei Complementar n.º 87/1996 (Lei Kandir), outra medida dos anos 1990, que isenta o pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre as exportações de produtos primários, como commodities agrícolas e minerais. Em virtude de tal Lei, estados brasileiros deixam de arrecadar um montante significativo a cada ano, o que impulsiona as desigualdades5.

25Com isso, depreendemos que, se por um lado o transporte operado atualmente nas ferrovias brasileiras constitui uma fonte de riquezas, por outro, tem contribuído para a perpetuação e aprofundamento das desigualdades, visto que tais riquezas permanecem concentradas. E considerando que a competição territorial por trás das relações do cotidiano tem suma importância no processo de acumulação de capital, entendemos que tais desigualdades constituem-se no espaço configurando um quadro de desenvolvimento geográfico desigual (HARVEY, 2006; SMITH, 1988).

No uso geopolítico do território, a descartabilidade (de territórios, pessoas, instituições etc.) foi a marca maior da experiência brasileira de rápido crescimento econômico. Assim, é importante entender as formas através das quais a expansão e apropriação territoriais, a natureza de extensividade da acumulação, o privilégio da órbita da circulação dos capitais e o controle inabalável da propriedade (rural e urbana) fundiária foram funcionais às equações políticas e econômicas férreas que se estruturam no país ao longo de sua história. Analisar a natureza da hegemonia das cúpulas políticas mercantis territoriais que dominam o Brasil, que são sedimentados na terra, possuem apego patrimonialista orgânico com a terra-propriedade, são praticantes de atividades econômicas itinerantes, com destaque para a agricultura (Furtado, 1972 e Cano, 2007), a extração mineral, a apropriação privada perene do território, em contínua « fuga para a frente » (Tavares, 1999), tendo à disposição abundantes terras, força de trabalho, recursos naturais, infra-estrutura estatal, subsídios públicos etc (BRANDÃO, 2010, p. 56).

26Tendo isso em vista, argumentamos que no conjunto destas problemáticas, ao qual Svampa se refere como neoextrativismo, o capital financeiro cumpre um papel fundamental nas operações de extração de matérias-primas e na intensificação da exploração da natureza, assim como a variação dos preços das commodities nas bolsas de valores, mas também a organização da logística para a circulação do capital (SVAMPA, 2019). Por isso, depreendemos que a problemática em torno das ferrovias brasileiras indica veementemente o papel da logística como ciência que permite ao capital romper e controlar fronteiras e territórios em função de sua ânsia impetuosa de circulação, bem como discrimina os principais motivos pelos quais a despossessão é um dos artifícios mais comuns de acumulação dentro de uma lógica de desenvolvimento que se mostra insustentável.

27Como será visto a seguir, o panorama das ferrovias brasileiras em meio à pandemia de coronavírus mostra que o Brasil ainda está lidando com sequelas das coqueluches ferroviárias. O que vemos na atualidade são apenas aspectos complementares de uma nova razão do mundo, que estruturam e organizam não apenas a ação dos governantes, mas a própria conduta dos governados, através da generalização da concorrência como norma e da empresa como modelo de subjetivação (DARDOT & LAVAL, 2016). Tais aspectos têm essência capitalista – mais intensa e desenfreada, podendo ser observados nas organizações empresariais que se beneficiam da infraestrutura ferroviária brasileira e, de modo mais perceptível, na crescente velocidade das composições ferroviárias que trafegam pelo território brasileiro transportando commodities que vão ao mercado mundial.

28No mês de março de 2020 foram notificadas as primeiras mortes de brasileiros em virtude do novo coronavírus, não por acaso, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda com pouco conhecimento sobre o vírus, medidas imediatas foram tomadas por algumas instituições e pelo Governo Federal. De acordo com o Decreto n. 10.282, de 20 de março de 2020 ficaram estabelecidos os serviços considerados essenciais, com o objetivo de « impedir a interrupção de atividades e do fornecimento de insumos e materiais necessários à sobrevivência, saúde, abastecimento e segurança da população » (BRASIL, 2020) e nos meses seguintes foi conferido aos governos estaduais e municipais a autoridade para adotar medidas de distanciamento social conforme as situações mais locais, num entendimento de que todas as esferas de governo são responsáveis pelo gerenciamento da crise – sem desonerar de responsabilidade o Governo Federal.

29Do referido decreto a essencialidade dos « serviços de transporte, armazenamento, entrega e logística de cargas em geral » se manteve em vigor desde a sua publicação, assim como as « atividades de comércio de bens e serviços, incluídas aquelas de alimentação, repouso, limpeza, higiene, comercialização, manutenção e assistência técnica automotivas, de conveniência e congêneres, destinadas a assegurar o transporte e as atividades logísticas de todos os tipos de carga e de pessoas ». O transporte ferroviário de pessoas e de cargas ficou, portanto, caracterizado como serviço essencial. Esta atenção ao setor possuiria, a princípio, certa pertinência ao considerar o transporte de pessoas que prestam serviços essenciais à sociedade, bem como o transporte de itens necessários à sobrevivência da população, como consta no decreto.

30Contudo, o percentual da infraestrutura ferroviária brasileira destinado ao transporte de passageiros é ínfimo e a maior parte das cargas transportadas está longe de ser destinada à população brasileira. Na atualidade, mais de 160 anos após a implantação dos primeiros trilhos, o sistema ferroviário brasileiro possui cerca de 30.000 quilômetros de extensão (CNT, 2020) distribuídos de modo desigual no território, dos quais nem 10% são para o transporte de passageiros. São 29.756 quilômetros de ferrovias utilizadas predominantemente para a produção do transporte de cargas em longas distâncias (ANTT, 2020) e pouco mais de 1.000 quilômetros de trilhos utilizados exclusivamente para o transporte de passageiros em trens urbanos, turísticos e metrôs (ANPTrilhos, 2020), cuja maior parte está concentrada em centros metropolitanos ao longo da costa. Há somente duas linhas regulares para o transporte de pessoas em longas distâncias, que compartilham os trilhos com trens de carga e, por isso, têm poucos horários semanais. Uma dessas linhas está na região Sudeste e faz a rota entre Belo Horizonte e Vitória, pela Estrada de Ferro Vitória a Minas; a outra está nas regiões Norte e Nordeste, entre Pará e Maranhão, e faz a linha Paraupebas a São Luís pela Estrada de Ferro Carajás. Ambas são operadas pela Vale S.A.

31Com isso, verificamos que o percentual da infraestrutura ferroviária brasileira destinada exclusivamente ao transporte de passageiros é apenas cerca de 5% do total. Incluindo as malhas compartilhadas, não se chega nem a 10%. Ou seja, a população brasileira usufrui de uma parte ínfima da infraestrutura ferroviária de seu país. Inferimos que a maior parte das operações nas ferrovias brasileiras durante a pandemia refere-se ao transporte de cargas. Vale a pena, então, distinguirmos qual é a importância das cargas transportadas pelas ferrovias brasileiras neste momento caótico, posto que a essencialidade descrita no decreto refere-se à continuidade das « atividades logísticas de todos os tipos de carga », mas especifica o transporte de « insumos e materiais necessários à sobrevivência, saúde, abastecimento e segurança da população ».

32Direcionando a atenção ao caráter singular do sistema ferroviário brasileiro no que se refere ao seu persistente papel através da história, destacam-se algumas malhas ferroviárias: i) Estrada de Ferro Carajás (EFC) que abrange o território do Pará e do Maranhão, ligando 28 municípios entre o interior paraense e a Ponta da Madeira/Porto do Itaqui, em São Luís; ii) Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), que abrange 42 municípios entre a região metropolitana da capital mineira ao Porto de Tubarão, no Espírito Santo; e iii) Malha Regional Sudeste (MRS), que passa pelos territórios de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, conectando mais de 60 cidades entre o interior mineiro e os litorais fluminense e paulista.

  • 6 São fontes as tabelas de compilação de dados sobre a produção de transporte ferroviário elaboradas (...)

33A abrangência destas ferrovias indica o seu potencial se usadas em benefício da população. No entanto, elas se destacam por serem as mais exploradas atualmente, sobretudo para o transporte de commodities minerais. Relatórios da ANTT nos últimos anos revelam que estas ferrovias lideram a produção do transporte ferroviário em toneladas úteis tracionadas (TU) e em toneladas por quilômetro útil (TKU) no presente século. A EFC lidera o ranking, a MRS aparece em segundo lugar e a EFVM em terceiro. Juntas, estas ferrovias transportaram cerca de 80% da produção de todas as ferrovias brasileiras nos últimos anos e este percentual foi similar em 20206. Em tabelas divulgadas recentemente detalhando as atividades de 2020, com os tipos e quantidades das produções transportadas pelas ferrovias brasileiras, consta o transporte de combustíveis como álcool, gasolina, diesel e carvão mineral; materiais de construção civil; soja e farelo de soja; produtos siderúrgicos; mas, sobretudo, minério de ferro. Do peso de toda a carga transportada pelas ferrovias brasileiras entre 2006 e 2020, 75% refere-se ao transporte de minério de ferro.

34Compreendemos, portanto, que um traço predominante na produção ferroviária brasileira na atualidade é o transporte de minério de ferro do interior do país aos portos, para a exportação, principalmente através do transporte operado nestas malhas. Este é um aspecto que tem condicionado sobremaneira a essencialidade dos trens de carga nas ferrovias brasileiras, em detrimento de um uso mais condizente ao benefício da população brasileira, o que enfatizamos através da concepção de neoextrativismo (SVAMPA, 2019). A produção de transporte operada em 2020 não é novidade. O conjunto de anuários e relatórios da referida Agência mostra que este é o padrão das atividades pelo menos desde o início do presente século, o que é um reflexo do quadro econômico e político mundial no qual a produção primário-exportadora do Brasil se insere. Notamos que, por aspectos históricos e geopolíticos que discriminam o papel do Brasil na economia mundial, as ferrovias brasileiras conformam-se para transportar cargas entre regiões específicas do território, atendendo ao escoamento de certas produções – havendo, portanto, uma especialização funcional.

35Para compreender, é preciso considerar os quadros da economia política na escala mundial nos anos anteriores à concessão das ferrovias, principalmente a partir dos anos 1970, quando acontecia a liberalização da economia chinesa e a adoção do neoliberalismo como diretriz da administração e do pensamento econômico por grande parte dos Estados do mundo (HARVEY, 2008). Nos anos que seguiram, o Brasil intensificou a abertura de sua economia e promoveu a privatização de grandes empresas estatais, como a Companhia Vale do Rio Doce, atual Vale S.A.. Então iniciou-se um processo crucial para o entendimento da essencialidade das ferrovias brasileiras na conjuntura pandêmica, referente a uma geopolítica na qual a China emergiu disputando influência no cenário internacional.

36A China é a principal importadora do minério de ferro brasileiro na atualidade. O produto lhe serve como matéria-prima à indústria siderúrgica, já que o país produz cerca de metade do aço usado em todo o mundo na atualidade. Aquele país consumiu cerca de 60% do minério de ferro que foi exportado a cada ano, em média, pelo Brasil no presente século (ME, 2021). Sendo o Brasil um dos maiores produtores globais de minério de ferro, especialmente pelas atividades da Vale S.A.; sendo o valor de uso do minério de ferro brasileiro reconhecido pelo seu alto teor de ferro; e considerando os interesses da China na importação, encontra-se coerência no fato de que a exportação do produto disparou desde o início do presente século, tendo como seu principal destino a China. De fato, a economia do Brasil se sustentou, nos últimos anos, em grande parte pela forte demanda chinesa por matéria-prima. A forma que a política interna do Brasil encontrou para lidar com os efeitos das últimas crises econômicas relacionou-se ao comércio com aquele país, especialmente no que se refere ao capital excedente (HARVEY, 2012).

37A China consumiu praticamente metade da oferta de minério de ferro do mundo na primeira década do presente século, sendo que boa parte deste minério é de proveniência brasileira. Em 2019, o país consumiu quase 50% do total dos produtos exportados pelo estado do Pará, dos quais cerca de 65% corresponde ao minério de ferro transportado pela EFC. No que se refere à região Sudeste, a China consumiu cerca de 30% do total das exportações de Minas Gerais, onde o minério de ferro transportado pela MRS Logística e pela EFVM corresponde a cerca de 30% do total das exportações do estado (ME, 2021). Com isso, inferimos que « a compreensão das dinâmicas regionais brasileiras, que emerge da reorganização oriunda das mudanças no capitalismo global, passa pelo entendimento do papel da economia chinesa enquanto agente dominante no processo de acumulação e organização dos territórios » (WERNER, 2020, p. 146).

38Como pode ser observado, as ferrovias brasileiras não estão distantes da complexidade destes processos. Pelo contrário, sem o transporte operado nas mesmas, o minério de ferro extraído no Brasil não teria chegado sequer aos portos. Com isso, compreendemos que longe de ser voltado à sobrevivência, saúde, abastecimento e segurança da população brasileira, nos moldes do decreto publicado em virtude da pandemia, a infraestrutura ferroviária brasileira serve majoritariamente ao transporte de produtos primários, principalmente commodities minerais destinadas ao estrangeiro, o que corrobora com a presença no referido decreto das « atividades de lavra, beneficiamento, produção, comercialização, escoamento e suprimento de bens minerais » (BRASIL, 2020), também identificadas como serviços essenciais.

39É esta a essencialidade de grande parte dos trens de carga que trafegam pelas ferrovias brasileiras na atualidade, em meio à pandemia – muito diferente do que tem acontecido em vários países mundo afora, conforme os dados apresentados no relatório RAILsiliência (2020), elaborado pela União Internacional dos Caminhos de Ferro (UIC), que mostra diversas situações ao redor do mundo nas quais a COVID-19 tem sido enfrentada nas ferrovias e com as ferrovias. Além de demonstrar que a pandemia impulsionou o uso da infraestrutura ferroviária como um meio mais seguro, ágil e eficiente para transportar alimentos e equipamentos variados em países como Inglaterra, o relatório mostra que o transporte ferroviário de cargas aumentou especialmente nos trajetos mais longos, na região entre China-Rússia-Letônia-Kaliningrado, ainda que houvesse nesses locais a diminuição relativa de cargas a transportar, reflexo dos lockdowns sobre algumas atividades produtivas.

40Além disso, tal relatório mostra algo impraticável no Brasil: a conversão de trens de alta velocidade em « trens medicalizados » que ocorreu na França. Nestes trens, que foram transformados em enfermarias, foi possível transportar pacientes com COVID-19 em coma induzido do leste do país, onde os hospitais estavam no limite de capacidade, ao oeste do país, onde os hospitais ainda tinham espaço, amenizando a carga sobre as instalações médicas e garantindo melhores cuidados aos pacientes (UIC, 2020). Na Índia ocorreu algo parecido quando o governo resolveu transformar vagões em « salas de isolamento sobre trilhos » logo no início da pandemia. De acordo com o Ministério das Ferrovias do país, em abril de 2021 mais de 4.000 vagões já tinham sido convertidos (FINANCIAL EXPRESS, 2021). E com o aumento dos casos em 2021, o governo da Índia resolveu improvisar os « trens expressos de oxigênio » para enfrentar as emergências, colocando caminhões de oxigênio em vagões de trem para que fossem transportados por todo o país com mais agilidade. Já em maio de 2021, o oxigênio entregue todos os dias pelas ferrovias indianas era capaz de abrandar as emergências em várias cidades do país (INDIA TV NEWS, 2021).

41Um outro exemplo possível em nossa abordagem é a rota de transporte ferroviário China – Europa, que ficou em evidência a partir de junho de 2020, quando um trem enviado da China chegou com suprimentos de combate ao COVID-19 na Espanha. Em agosto de 2020, um trem que saiu de Qingdao, na China, chegou a Madrid carregado de máscaras de proteção. Tendo em vista as emergências da Espanha naquele momento, percorreu a distância recorde de 14.133 quilômetros e, por este feito, a rota percorrida ficou conhecida como « ruta de las mascarillas » (EL PAÍS, 2021).

42Por fim, mas não menos importante, podemos evidenciar o uso das ferrovias durante a pandemia na Rússia. Naquele país, além de as ferrovias serem amplamente utilizadas para o transporte de cargas em geral durante a pandemia, muitas delas voltadas ao bem estar da população, também utilizou-se os vagões de trem nos planos de imunização da população. No « comboio médico » Academician Fiodor Uglov, os vagões são equipados como salas de espera e enfermarias tendo, inclusive, salas para a aplicação de vacinas como a Sputnik V, a primeira vacina contra COVID-19 registrada no mundo (PÚBLICO, 2021).

Pandemia: um freio no sistema?

  • 7 Na realidade, muitos pensavam, na Europa e nos Estados Unidos, que a crise financeira soara as bada (...)

43Ainda que os anos 1990 sejam considerados um marco da instituição da neoliberalização no Brasil, é preciso evidenciar que no presente século o Brasil já passou por diferentes crises rodadas de neoliberalização, que lançaram mão de dispositivos, mecanismos e instrumentos bastante diferenciados de experimentações re-regulatórias, com variadas repercussões (BRANDÃO, 2017). A partir da crise de 2008, alguns decretaram o fim do neoliberalismo e investigaram o que seria da sociedade após a neoliberalização7. Contudo, longe de provocar o enfraquecimento das políticas neoliberais, tal crise conduziu ao seu fortalecimento na forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vez mais ativos na promoção da lógica da concorrência dos mercados financeiros (DARDOT & LAVAL, 2016). Na atualidade, o neoliberalismo predomina orientando internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, além disso, a configuração dos territórios, o que afeta cotidianamente a vida de muitas pessoas.

44Em decorrência dos impactos das suas atividades nos territórios onde atua, a Vale S.A. foi motivo da criação, em 2010, da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, composta por movimentos sociais, organizações e centrais sindicais, incluindo populações de comunidades atingidas e trabalhadores. Em 2012, a empresa foi eleita a pior do mundo no Public Eye Awards (FAUSTINO, FURTADO, 2013). Em 2020, foi imputada no 45º Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), onde foi apresentado um relatório que diz que a empresa teve conduta criminosa e imprudente no caso de Brumadinho, e que violou uma série de direitos na região do Quadrilátero Ferrífero e em Piquiá de Baixo, no corredor Carajás (ONU, 2020). Contudo, nada disto foi capaz de frear suas atividades.

45Após a tragédia que aconteceu no município mineiro de Mariana, em 5 de novembro de 2015, confabulou-se um possível freio nas atividades de mineração e, por conseguinte, na produção de transporte pelas ferrovias. O rompimento da barragem denominada « Fundão », que acomodava rejeitos da extração do minério de ferro feita pela Samarco, empresa formada pela Vale S.A. em parceria com uma empresa estrangeira, afetou toda a sua região, atingindo 35 municípios. Milhões de metros cúbicos de lama tóxica foram despejados num percurso de centenas de quilômetros de rios, 19 pessoas morreram e mais de mil famílias ficaram desabrigadas. Os distritos Bento Rodrigues e Paracatu foram completamente destruídos (LASCHEFSKI, 2019).

46Algum tempo depois, com a tragédia-crime ocorrida em Brumadinho, outro município mineiro, em 25 janeiro de 2019, ensaiou-se um possível freio. No lamentável episódio, o rompimento da barragem da mina « Córrego do Feijão » matou mais de 250 pessoas e a contaminação por lama tóxica se estendeu por mais centenas de quilômetros de rios (LASCHEFSKI, 2019). Com isso, os articuladores do mercado do minério de ferro ficaram preocupados com a disponibilidade do produto, dadas as interrupções na produção. E como isto se refletiria diretamente nas operações ferroviárias, ficou demonstrada a preocupação da empresa MRS Logística S.A. em relação à perda potencial de 15% de carga com o plano de extração da Vale após a tragédia (ABIFER, 2019).

  • 8 Rosa Luxemburgo (1970) já atentava para a permanência, ao longo do desenvolvimento capitalista, de (...)

47Esses eventos figuram entre os maiores crimes ambientais do mundo no setor de mineração. Ambos foram precedidos por uma série de incidentes semelhantes que ocorreram nos arredores do Quadrilátero Ferrífero, hoje região especializada na extração de minério, mas que continha abundante biodiversidade do Cerrado e da Mata Atlântica. Tais incidentes sugerem uma negligência de longa data e apontam para a natureza sistêmica da ineficiência nos processos de tomada de decisão em torno de licenças ambientais e fiscalização. Nesta perspectiva, as empresas de mineração estariam praticando formas de acumulação por despossessão no território8 e estes eventos seriam então o auge dos desastres que começaram com o licenciamento ambiental. E ainda, após os desastres os marcos regulatórios de fiscalização e reparação foram flexibilizados (LASCHEFSKI, 2019). Com isso, as empresas de mineração fortaleceram não só seus interesses frente às demandas das vítimas, mas também o controle territorial.

48Notamos que tais eventos pouco ou nada afetaram as atividades da mineradora. No período entre os dois desastres, de 2015 a 2018, a Vale S.A. não só seguiu com as atividades de mineração, mas triplicou o lucro (LASCHEFSKI, 2019). E sem seguida, « observou-se que os volumes de produção das empresas de mineração no Brasil mantiveram-se estáveis em sua grande maioria » ao longo do ano de 2019 (IBRAM, 2019, p. 37), o que corrobora com dados da ANTT sobre o mesmo ano, quando a Agência relata que o desempenho do indicador de movimentação de cargas por ferrovia esteve inclusive acima da meta em 2019 (ANTT, 2020).

49Em meio a isso, evidenciamos a reação dos trabalhadores das comunidades atingidas, ao reivindicar a retomada das atividades das empresas mineradoras. Isso revela, por um lado, uma profunda dependência dessas pessoas em relação à mineração e, por outro, uma condição de chantagem locacional (ACSELRAD, PINTO, 2009, p. 60) praticada pelas mineradoras, o que envolve a construção de uma agenda positiva junto aos movimentos reivindicatórios atrelada à ameaça de não gerar localmente empregos e receitas públicas. A lógica neoliberal impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, ordenando as relações sociais segundo o modelo do mercado e nos obrigando, cotidianamente, a justificar e a viver desigualdades cada vez mais profundas (DARDOT & LAVAL, 2016). Este é o panorama da região que convencionou-se chamar Quadrilátero Ferrífero onde, no final de 2020, a Samarco retomou as operações, mesmo sem ter entregue nenhuma casa aos desabrigados e sem ter procedido com as devidas recuperações ambientais (G1, 2020). « (...) Quadrilátero Ferrífero. É de um mau gosto enorme dar um nome desses pra um lugar. O que ele quer dizer? Que estamos ferrados. Duas barragens (...) derramaram ferro em cima da gente » (KRENAK, 2020, p. 27).

50Por outro lado, sobre Carajás, em meio à Amazônia paraense, engana-se quem pensa que não houve desastres. Na realidade, o desastre consiste na própria implementação do empreendimento, inaugurado oficialmente em 1985 e expandido recentemente. O relatório intitulado « Mineração e Violação de Direitos » da Missão de Investigação e Incidência, lista uma série de violações de direito que envolvem acesso e uso ilegal do território de Carajás com injustiças sociais e ambientais dos mais variados tipos, que ocorrem não só nos locais de extração do minério de ferro, mas nas extensões por onde o produto é escoado, ao longo da ferrovia e na região portuária. Os impactos e conflitos socioambientais decorrentes da infraestrutura de transporte e escoamento do minério de ferro são:

degradação ambiental, poluição do ar, solo e de recursos hídricos, poluição sonora, trepidação e rachaduras nas casas, atropelamentos de pessoas e animais e exploração sexual de mulheres e meninas; problemas de saúde decorrentes da atividade siderúrgica. (...) violações relacionadas ao direito à educação; ao incentivo deliberado à divisão das comunidades, o que gera conflitos entre os comunitários e facilita as negociações para a empresa; à vigilância e perseguição de lideranças comunitárias; (...) a ausência de participação efetiva das comunidades nos processos decisórios em torno dos projetos que impactam os territórios (FAUSTINO, FURTADO, 2013, p. 25).

51No entanto, durante a pandemia, a Vale S.A. conduz de modo desenfreado a produção do minério de ferro em terras brasileiras.

Aqui na minha região, a Vale está parecendo a bolsa de valores: nervosa. Desde que o mundo parou, ela acelerou. Os trens dela passam a trezentos, quinhentos quilômetros da minha casa. Apenas um rio em coma nos separa da estrada de ferro. E a composição dos trens é gigante. A terra treme quando eles passam. O vaivém não pára, a noite inteira, o dia inteiro, eu até fiquei pensando: será que estão fazendo o último assalto? Estão piores que antes, a febre deles subiu. Acho que um navio, em algum lugar do mundo, falou: ‘Manda logo tudo, acelera aí’! (KRENAK, 2020, p. 23-24).

52Esta agitação descrita por Ailton Krenak corresponde à produção do transporte de minério de ferro pelas ferrovias estudadas, que seguem firmes em meio à pandemia, conforme os dados que constam na tabelas de produção de Transporte Ferroviário Origem – Destino da ANTT (2020) para o período. Por outro lado, isso também tem relação com a potencial competição de capitais. O aspecto da concorrência e, portanto, da competição faz parte e impulsiona as dinâmicas observadas no processo de neoliberalização (BRENNER, PECK, THEODORE, 2012).

  • 9 Unidades de Conservação voltadas à preservação ambiental e cultural, estes parques contém a maior e (...)
  • 10 Também constam no Mapa registros das circunstâncias descritas anteriormente acerca da atuação da VA (...)

53À título de exemplo, existe a concorrência do projeto da SRN Mineração, instalada em 2014 em São Raimundo Nonato, Piauí, para ali explorar o minério de ferro. O projeto se encontra em fase avançada de pesquisa, passada a fase de mapeamento geológico, sondagens e testes (SRN, 2020). Possivelmente, em pouco tempo a região centro-sul piauiense, entre os Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões9, na Caatinga piauiense, ficará especializada na produção do minério, e as ferrovias do entorno, especializadas em seu transporte. Com a produção prevista pela SRN, cerca de 300 mil toneladas de minério de ferro seriam transportadas pela Ferrovia Transnordestina por ano. Antes mesmo de iniciar as atividades, a instalação da empresa já consta no Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, no qual agricultores familiares e comunidades quilombolas denunciam violações de direitos (FIOCRUZ, 2020)10. Por outro lado, as atenções dos capitalistas, dos acionistas anônimos, se voltam para projetos gigantescos de mineração em outros continentes, como é o caso da exploração de minério de ferro em uma cordilheira em Simandou, na Guiné. O minério neste local possui alto teor de ferro e, portanto, atenderia satisfatoriamente o mercado mundial. Não à toa, neste momento empresas estão em conflito visando a exploração das minas e os investimentos para a construção de uma estrada de ferro e de um porto já foram autorizados pelo Governo da Guiné (MINING [DOT] COM, 2020).

54De fato, a partir da introdução do maquinário e sua consolidação, o capital só encontra limites na escassez ou insuficiência de matéria-prima, ou na falta de mercado para escoar aquilo que produz (MARX, 2013). Com isso, no caso da produção de minério de ferro, o capitalismo no Brasil se vê praticamente sem limites, já que o produto apresenta-se no mercado mundial enquanto matéria-prima fundamental. A descoberta dos usos deste mineral foi e continua sendo essencial para as transformações tecnológicas ao longo dos tempos. Desse modo, não obstante todos os desastres, conflitos e injustiças, a produção do minério de ferro segue desenfreada nas mãos de sociedades anônimas, que usam de infraestruturas concedidas pelo Estado brasileiro através da governança neoliberalizada. Isto porque o capitalismo continua a ser, mesmo em sua fase amplamente financeirizada, um modo de produção de mercadorias.

Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vêm se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para colocá-las em xeque? (DARDOT & LAVAL, 2016).

55A esta questão nos dedicamos a seguir, apresentando evidências de que a pandemia não constitui um freio no sistema, como à princípio pode parecer. Tendo como base a análise das políticas priorizadas e debatidas pelo Estado brasileiro na atualidade, especificamente aquelas que têm relação com o setor ferroviário, observamos o seu papel fundamental na garantia da ordem neoliberal, dos processos privados de planejamento territorial, de controle da terra e da infraestrutura ferroviária.

As renovações do espectro neoliberal

56Enquanto as produções de minério de ferro e de transporte do produto seguem firmes, outros processos acontecem em meio a pandemia: o Governo Federal trata da prorrogação das concessões e da privatização da infraestrutura ferroviária brasileira. Em um pronunciamento oficial veiculado em redes de rádio e televisão no dia 02 de junho de 2021 isso ficou claro. Nesta data, o chefe do Executivo federal deu destaque ao processo de privatizações das ferrovias relacionando-o ao que definiu como a retomada do modal ferroviário no Brasil. Notamos que, em um contexto catastrófico e de adoecimento em todos os sentidos, o governo direcionou a sua fala para os agentes do mercado e não para a população.

57Destacamos aqui que, desde 2015, concessionárias cujos contratos venceriam nos anos 2020 começaram a pleitear a prorrogação dos mesmos por mais 30 anos, o que já era previsto nos contratos firmados há décadas atrás. Dentre elas estão a MRS Logística e Vale S.A., cujos contratos venceriam em 2026 e 2027, respectivamente. O processo de repactuação desses contratos iniciou-se com o lançamento, em 2015, de uma etapa do Programa de Investimento e Logística (PIL) pelo Governo Federal e reflete um momento de retomada das concessões como principal mecanismo de investimento em infraestrutura com o Programa de Parceria de Investimentos (PPI) (WERNER, 2020). Com isso, em relação às concessões existentes, foi anunciada uma projeção de investimentos por meio da prorrogação antecipada dos contratos dentro dos Novos Investimentos em Concessões Existentes (NICE). Assim, em 2016, foi publicada a Medida Provisória n.º 752/2016 estabelecendo diretrizes para a prorrogação dos contratos então vigentes.

58Em 2017, a medida foi convertida na Lei n.º 13.448/2017 que atribuiu à ANTT a responsabilidade técnica para a realização de « estudo técnico prévio que fundamente a vantagem da prorrogação do contrato de parceria em relação à realização de nova licitação para o empreendimento ». No âmbito desta Lei, pode-se dizer que o conceito de prorrogação foi reconfigurado quando ficaram previstas duas modalidades: i) contratual premial, na qual se compartimenta o contrato possibilitando que o concedente, no caso o Estado, avalie se a concessionária preencheu os requisitos para a extensão da vigência contratual a cada parte, e ii) antecipada, mediante a realização de investimentos não previstos no âmbito do contrato já em vigência. Contudo, nos contratos firmados nos anos 1990, a exemplo daquele firmado para a concessão da EFC, consta que nenhum pagamento será devido pela concessionária à concedente em razão da prorrogação do contrato (§4.º da Cláusula Terceira do Contrato de Concessão, 1997).

59Em 2018, tendo isso e outros motivos em vista, a Procuradoria Geral da República entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei 13.448/2017, conhecida como Lei da Relicitação, argumentando que os mesmos contrariam os princípios constitucionais da eficiência, impessoalidade, moralidade e razoabilidade, além de violar a regra da licitação e comprometer a qualidade dos serviços oferecidos à sociedade (PGR, 2018). O pedido de liminar visava suspender os efeitos da medida que, em geral, flexibiliza critérios para prorrogação antecipada dos contratos de concessão da infraestrutura visando investimentos.

60Com isso, o processo entrou em um imbróglio. Notícias afirmavam que a Vale e a MRS Logística construiriam ferrovias em parceria com o Governo em contrapartida pela renovação das concessões – a própria Secretaria Geral do Governo Federal publicou que a MRS Logística teria a concessão de diversas ferrovias em troca de construir um novo ramal nas adjacências do Porto de Santos (SECRETARIA GERAL, 2018). Por outro lado, a ANTT prosseguiu no papel que lhe foi atribuído, à exemplo do procedimento com a empresa MRS Logística, apresentando minutas de Caderno de Obrigações, Plano de Investimentos, Plano de Conflitos Urbanos e Especificações Técnicas de cumprimento obrigatório das empresas, « com vistas a assegurar a adequada exploração da infraestrutura e prestação do serviço de transporte ferroviário, a preservação dos bens concedidos, bem como a redução e mitigação de impactos socioambientais » (ANTT, 2019). Após a verificação da documentação, em 2019, a Agência explicitou a apreciação em relação à prorrogação do contrato, tornando os processos públicos por meio da abertura de Audiências Públicas, com o objetivo colher contribuições e subsídios.

61Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu a ação da PGR. Por maioria, os ministros entenderam que a Lei de Relicitação é compatível com as normas federais. No Plenário, a ministra relatora salientou que « a prorrogação é analisada caso a caso e está sujeita à fiscalização » e destacou ainda a « previsão de que o contrato seja submetido a consulta pública » (STF, 2020). Por outro lado, ministros que divergiram consideraram a dificuldade de reversão do processo de renovação das concessões em curso como um perigo concreto para o interesse público. Para estes, a flexibilização dos requisitos para a renovação no formato previsto pela Lei 13.448/2017 « reduz a possibilidade de participação de mais interessados e, aparentemente, negligencia o princípio da competitividade e a regra da licitação, que permite à administração pública a contratação da melhor proposta. » (STF, 2020). Com essa decisão mais o aval do Tribunal de Contas da União, que saiu no mesmo ano, ficaram aprovadas as renovações dos Contratos de Concessão das ferrovias EFC e EFVM à concessionária Vale S.A. Assim, com as Deliberações n.º 514 e 515/2020, a Diretoria da ANTT aprovou os estudos técnicos e documentos jurídicos para assinatura dos aditivos aos Contratos (DOU, 2020, p. 109). E ainda em 2020 o Ministério da Infraestrutura anunciou reunião com executivos da MRS Logística S.A. e informou que a renovação do contrato com a empresa está prevista para 2021, juntamente com bilhões em investimentos (MInfra, 2020).

62Por outro lado, desde o final de 2020 encontra-se em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei n.º 261/2018, Marco Legal das Ferrovias. Com celeridade instada pelo Ministério da Economia, que em ofício justificou-a pelo agravamento da crise em função da pandemia, o PL versa sobre a autorregulação ferroviária que permite à iniciativa privada a construção e operação de ferrovias sem seguir o rito das licitações para obter concessões. Caso se torne lei, o setor privado estará autorizado a aplicar instrumentos de política urbana como desapropriações, o que cerceia as atribuições do Poder Público, bem como desconsidera o interesse social sobre o planejamento, indicando o iminente descumprimento do princípio da função social da propriedade previsto na Constituição Federal.

63Simultaneamente, está em andamento a expansão da malha ferroviária brasileira por meio da construção de conexões e ferrovias inteiras visando uma melhor integração das regiões produtoras aos portos. Em 2020, cerca de 3.228 quilômetros de ferrovias estavam em construção no Brasil (ANTT, CNT, 2020) e isto reflete sobremaneira as circunstâncias dos anos anteriores. Nesse sentido, a Ferrovia de Integração Oeste-Leste e a Ferrovia Norte Sul se encontram em construção pela VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias, uma empresa pública, sob a forma de sociedade por ações, controlada pela União através do MInfra e operacionalizada pela Vale; já a Ferrovia Transnordestina está em expansão, sendo que as obras foram retomadas justamente em 2020, no Ceará, após um período de três anos de paralisação no qual era negociado o seu licenciamento ambiental; já o projeto da Ferrovia Norte Sul é visto como a espinha dorsal do transporte ferroviário brasileiro, que permitirá o transporte de cargas do Centro-Oeste e escoamento tanto pelo Porto de Itaqui (MA), como pelo Porto de Santos (SP), ampliando a matriz de transporte de cargas ferroviária, com maior vazão à produção do país (ANTT, 2020). Não é preciso descrever muitos projetos para que se perceba que a maioria deles reforça e serve ao papel do Brasil como primário-exportador, aprofundando as desigualdades anteriormente descritas.

64Dessas formas o espectro neoliberal se renova e se reestrutura no âmbito das ferrovias brasileiras, ao passo que a desigualdade se intensifica durante a pandemia. O caráter extensivo e predatório em que se desenha a geografia desigual do desenvolvimento capitalista brasileiro determina a apropriação contínua de porções territoriais em (re)estruturação nas frentes de expansão (BRANDÃO, 2010).

Considerações finais

65Estas observações sobre a infraestrutura ferroviária brasileira na lógica neoliberalizada do capital demonstram que enquanto o mundo enfrenta como pode a pandemia de COVID-19, o processo de concentração de capitais não cessa, muito pelo contrário. O capitalismo segue funcionando, assim como a extração do minério de ferro do solo brasileiro e a produção de transporte do produto nas ferrovias brasileiras, em uma guinada neoextrativista. Capitalismo e neoliberalismo se alimentam destas crises, não se enfraquecem com elas.

66Como visto, em virtude de aspectos históricos e geopolíticos que discriminam o papel do Brasil na economia mundial, o sistema ferroviário brasileiro está acuradamente organizado para conectar regiões específicas. Estes aspectos indicam substancialmente a concepção a partir da qual as ferrovias foram e são implantadas no território brasileiro, bem como os marcos regulatórios que garantem que a infraestrutura permaneça concedida a sociedades anônimas. Percebemos, portanto, o aspecto relacional das infraestruturas ferroviárias no que se refere à conformação do território brasileiro e não apenas o seu aspecto relativo. Inferimos uma relação complementar entre ambos, o que atenta para a importância do entendimento sobre a produção capitalista dos espaços ferroviários brasileiros e para a compreensão da conformação de territórios especializados em produção, suas contradições e injustiças, bem como para a investigação de crimes impunes relacionados aos desastres mencionados.

67O fato das infraestruturas ferroviárias não terem sido acionadas como aliadas no processo logístico de combate à pandemia deve-se, em parte, ao modelo de gestão que o Estado determinou para suas ferrovias no final do século passado, ao concedê-las para a iniciativa privada, à opção política do atual governo federal, que tem desempenhado um papel articulador para o enfrentamento da crise sanitária, e também à produção capitalista do espaço que tem determinado historicamente o traçado destas ferrovias. Olhar por esta perspectiva pode elucidar as relações de poder que se dão sobre e através da infraestrutura ferroviária brasileira ao longo de sua história. O histórico das ferrovias no Brasil e a atual produção de transporte nas ferrovias brasileiras comprovam que atualmente acontece algo muito parecido quando da implantação das primeiras estradas de ferro no século XIX, cuja motivação era substancialmente a exportação de produtos primários. Portanto, é possível a analogia com a conhecida frase de Marx « a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. » O que acontece é que brasileiros « fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram » (MARX, 2011, p. 25).

Qual o motivo da implantação de ferrovias no Brasil?

O objetivo de construção das ferrovias era agilizar o escoamento da produção de café, diminuindo o tempo de transporte entre os locais de produção e os portos de onde a mercadoria era exportada. As ferrovias eram uma das condições gerais de produção necessárias ao crescimento econômico do país.

Qual a importância das ferrovias no século XIX?

Palavras-chave: Ferrovias; Fronteiras; Estrada de Ferro Leopoldina. O transporte ferroviário desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo industrial do século XIX, visto que possibilitou a circulação de mercadorias e a realização do capital em uma velocidade jamais experimentada anteriormente.

Que descoberta tecnológica possibilitou o desenvolvimento das ferrovias no século XIX?

As ferrovias têm origem no século XIX, quando a máquina a vapor começou a ser utilizada para movimentar composições por cima de trilhos.

Qual as primeiras ferrovias implantadas no Brasil Qual a importância dessas ferrovias?

A Primeira ferrovia do Brasil A Estrada de Ferro Mauá trouxe integração entre o transporte aquaviário e o ferroviário. Sua operação foi considerada o primeiro transporte intermodal no Brasil. As embarcações atracavam no Porto no fundo da Baía de Guanabara e, então, a carga passava para o transporte ferroviário.