Os pesquisadores alemães Jan Assmann e Aleida Assmann trataram do assunto na conferência Memórias Comunicativa e Cultural, que aconteceu no dia 15 de maio, no IEA. Show
À primeira vista, a memória parece uma coisa inerte, presa ao passado — a lembrança de algo que aconteceu e ficou parado no tempo. Mas um olhar mais cuidadoso revela que a memória é dinâmica e conecta as três dimensões temporais: ao ser evocada no presente, remete ao passado, mas sempre tendo em vista o futuro. Na conferência Memórias Comunicativa e Cultural, os pesquisadores Jan Assmann e Aleida Assmann, ambos professores da Universidade de Konstanz, Alemanha, abordaram esse caráter dinâmico da memória. Jan tratou da durabilidade e dos aspectos simbólicos da memória cultural, enfatizando seu papel na construção de identidades, enquanto Aleida priorizou a narrativa histórica contemporânea, concentrando-se nos processos mnemônicos ligados à constituição de novos estados-nação. O evento, realizado no dia 15 de maio, no IEA, abriu o ciclo de conferências Espaços da Recordação, que os pesquisadores proferiram no país de 15 a 21 de maio. O ciclo integrou a programação do Ano da Alemanha no Brasil e foi uma realização da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Instituto de Estudos Avançados sobre Mobilidades Sociais e Culturais, com o apoio do IEA e de outras instituições. Após passar pelo IEA, Jan e Aleida fizeram conferências na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, no dia 16; na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioste), Cascavel, no dia 17; na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, e na Universidade Estadual de Londrina (UEL), ambas no dia 20; e na Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, no dia 21. Memória Cultural A memória cultural é constituída, assim, por heranças simbólicas materializadas em textos, ritos, monumentos, celebrações, objetos, escrituras sagradas e outros suportes mnemônicos que funcionam como gatilhos para acionar significados associados ao que passou. Além disso, remonta ao tempo mítico das origens, cristaliza experiências coletivas do passado e pode perdurar por milênios. Por isso, pressupõe um conhecimento restrito aos iniciados. A memória comunicativa, por outro lado, restringe-se ao passado recente, evoca lembranças pessoais e autobiográficas e é marcada pela durabilidade de curto prazo, de 80 a 110 anos, de três a quatro gerações. E, por seu caráter informal, não requer especialização por parte de quem a transmite. Identidade A memória cultural atua, portanto, preservando a herança simbólica institucionalizada, à qual os indivíduos recorrem para construir suas próprias identidades e para se afirmarem como parte de um grupo. Isso é possível porque o ato de rememorar envolve aspectos normativos, de modo que, "se você quer pertencer a uma comunidade, deve seguir as regras de como lembrar e do que lembrar", como frisou o pesquisador. Ele ressaltou que, por funcionar como uma força coletiva unificadora, a memória cultural é considerada um perigo pelos regimes totalitários. Como exemplo, mencionou o caso da Guerra da Bósnia, quando a artilharia sérvia destruiu a Biblioteca de Saravejo na tentativa de minar a memória dos bósnios e de minorias da região. O objetivo, afirmou, era fazer da cultura uma tábua rasa para que fosse possível começar do zero uma nova identidade sérvia: "Essa foi a estratégia do regime totalitário para destruir o passado, porque se a gente controla o presente, a gente controla o passado, e se a gente controla o passado, a gente controla o futuro". O passado em foco Esse fenômeno, destacou, é efeito do período de violência excessiva do século 20 e de novos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea, como a crise ambiental, por exemplo. Mas advertiu que não se trata de mera nostalgia ou de rejeição dos tempos modernos, uma vez que a memória cultural está sempre direcionada para o futuro, "lembrando para frente, por assim dizer". A memória surge, assim, como um artifício para proteger o passado contra a ação corrosiva do tempo e para dar subsídios para que os indivíduos entendam o mundo e saibam o que esperar, "para que não tenham que inventar a roda e começar do zero a cada geração", como explicou a pesquisadora. Memória nacional Pensando a partir do caso da França — país que se definiria pelo caráter triunfal de seu povo —, o conceito de lugares da memória refere-se a objetos simbólicos concretos, como monumentos, museus e arquivos, ligados a uma autoimagem de heroísmo e de orgulho por parte das nações. Mas, para a pesquisadora, esse conceito não se aplica aos novos estados-nação surgidos a partir de 1945 (pós-colonial) e de 1989 (pós-União Soviética). Diferentemente da França, esses países não se constituem em torno do triunfo, mas do trauma gerado por eventos passados. Assim, no momento em que ex-colônias são elevadas à condição de nações livres e definem uma identidade própria, começa a vigorar uma memória marcada pelo histórico de violência, escravidão e genocídios. Segundo Aleida, as nações rememoram essas feridas na tentativa de obter, no presente, um reconhecimento do sofrimento e dos abusos pelos quais passaram. Esse tipo de memória, construído sobre episódios traumáticos, se intensifica na década de 1990, quando os testemunhos das vítimas ganham espaço e são inaugurados diversos museus e memoriais ao redor do mundo dedicados a eternizar simbolicamente o passado de violações aos direitos humanos. O caso de Israel "Essa memória traumática não foi elaborada imediatamente, mas após um grande período de latência por uma razão política: havia um novo país a ser construído e um status de independência a ser conquistado", disse, destacando que a preocupação, naquele momento, era compor uma memória heroica, e não dar espaço à memória das vítimas. Jan completou afirmando que o objetivo do estado de Israel imediatamente após sua criação era o de nunca mais ser vítima, enquanto o da Alemanha era o de nunca mais repetir os crimes que cometeu na Segunda Guerra. "O reconhecimento das vítimas veio mais tarde. A primeira ideia era a do 'nunca mais'", frisou. Riscos e benefícios A pesquisadora concluiu que a memória cultural não deve ser entendida como uma fixação patológica com o passado, mas como um back-up, uma espécie de bagagem necessária para que a sociedade construa seu futuro. Mas, de acordo com ela, essa memória deve ser inspecionada criticamente, como acontece com qualquer bagagem. Por isso, afirmou, é preciso tomar cuidado para que o passado negativo, uma vez transformado em memória, não desperte o revanchismo: "A memória pode ser perigosa e destrutiva se desenterrar raiva e a vontade de revisar a história". Conferencistas Jan Assmann é professor honorário de teoria cultural e religiosa na Universidade de Konstanz. Doutor honoris causa em teologia pela Universidade de Münster, suas publicações abrangem a área da egiptologia, com foco em interpretações sobre as origens do monoteísmo, a recepção do Egito na tradição europeia, história da religião, antropologia histórica e outros temas. Nos últimos anos, tem se voltado para a dimensão da memória cultural numa escala temporal longínqua, que remonta a mais de 3 mil anos. A partir disso, busca entender o papel da memória nas disputas entre israelenses e palestinos no Oriente Médio e entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte. RELACIONADO
Fotos: Mauro Bellesa/IEA-USP Qual a importância da memória local?Os lugares de memória, então, podem ser considerados esteios da identidade histórica, contribuindo consideravelmente para evitar o esquecimento e o desprendimento do passado.
Qual a importância da memória de um povo?A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista é também um instrumento e um objeto de poder.
Por que é importante preservar as memórias do passado?Conforme mencionado na pesquisa, de acordo com Le Goff (2003), a memória por conservar certas informações, contribui para que o passado não seja completamente esquecido. O passado é capaz de trazer identidade e sentido, é como olhar a Praça da Sé, e não compreender sua importância para nossa cidade.
Qual a importância da preservação das memórias do passado para o presente e para a construção do futuro?A memória histórica é essencial para a manutenção das atividades de uma determinada sociedade no longo prazo porque fornece as bases para a sobrevivência da forma de vida da sociedade.
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