Quanto às regras de Direito Empresarial o Código Civil atual 2002 adotou a teoria dos atos de comércio ou a teoria da empresa?

Marcelo Gazzi Taddei

Advogado. Administrador Judicial em processos de Recuperação Judicial e Falência no Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial na UNIP – São José do Rio Preto, SP. Graduado e Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, de Franca/SP.

  1. O impacto do Código Civil de 2002 no Direito Empresarial brasileiro

O Direito Empresarial brasileiro passou por profundas alterações nos últimos 50 anos. A promulgação do Código Civil de 2002 (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002) foi responsável pela consolidação no país da teoria italiana da empresa, inaugurando uma nova e importante fase do Direito Empresarial. Entretanto, a técnica da unificação legislativa utilizada pelo legislador causou, inicialmente, infundado receio do desaparecimento da disciplina empresarial no país. A unificação legislativa, ou seja, a inserção de normas civis e empresariais no mesmo Código constitui critério de organização do legislador e não afeta a autonomia jurídica do Direito Empresarial, que possui método próprio, princípios específicos e uma extensão delimitada, o que evidencia a sua autonomia jurídica, tanto que após vinte anos de vigência do Código Civil, o Direito Empresarial permanece como disciplina jurídica autônoma no país.

O Código Civil de 2002 não atribui aos civilistas a necessidade cogente da ampliação de seus estudos somente pelo fato de possuir normas de natureza empresarial. A matéria empresarial e a matéria civil não se confundem no Código Civil, a teoria da empresa não extinguiu a dicotomia do direito privado tradicional, ampliou, isso sim, a abrangência do Direito Empresarial ao alterar os limites de incidência das normas empresariais, que passaram a tratar de atividades econômicas anteriormente destinadas ao regime civil pela problemática teoria francesa dos atos de comércio.

O Código Civil de 2002, embora apresente grande importância para o Direito Empresarial, constituindo o marco inaugural do último e atual período de sua evolução no país,  não alterou de forma abrangente o conteúdo do Direito Empresarial. O Código Civil de 2002 contém atualmente 230 artigos de natureza empresarial, deixando de disciplinar muitos e relevantes institutos jurídicos empresariais, que continuam previstos em leis especiais. A exemplo do que ocorreu durante a vigência da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, o estudo e aplicação do Direito Empresarial na vigência do Código Civil de 2002 não se encontram concentrados nesse diploma legal, destacando-se a importância da legislação especial (v.g. Lei n. 8934/4994, Lei n. 9279/1996, Lei n. 11.101/2005).

No Código Civil de 2002 encontra-se a base para a caracterização do empresário, que também permite a delimitação da matéria empresarial de acordo com a teoria da empresa, contribuindo para a definição da empresarialidade das relações jurídicas no país. Outros temas específicos e importantes do Direito Empresarial também são disciplinados no Código Civil, dentre os quais se destacam o estabelecimento empresarial, o nome empresarial, a sociedade limitada, a sociedade simples e as outras sociedades empresárias de menor importância previstas no Livro II.

Os demais institutos jurídicos empresariais, não disciplinados no Código Civil de 2002, continuam a ser regidos por leis especiais, que não sofreram alterações com o surgimento do Código Civil de 2002. Assim, o registro de marcas e de desenhos industriais, a patente de invenções e de modelos de utilidade, encontram-se disciplinados na Lei n° 9.279/1996; a sociedade anônima continua a ser regida pela Lei n° 6.404/1976; os títulos de crédito típicos continuam disciplinados pela legislação correspondente (letra de câmbio e nota promissória – Dec. n° 2.044/1908 e Dec. n° 57.663/1966, cheque – Lei n° 7357/1985, duplicata – Lei n° 5.474/ 1968), sendo que a Lei nº 11.101/2005 disciplina falência, recuperação judicial e recuperação extrajudicial.

Em relação ao Registro Público de Empresas Mercantis, embora o Código Civil apresente alguns dispositivos referentes à inscrição do empresário, o registro realizado nas Juntas Comerciais permanece disciplinado pela Lei n° 8.934/1994, regulamentada pelo Dec. n° 1.800/1996. As operações e as ligações societárias, responsáveis pela transformação da espécie societária ou de sua estrutura, compreendendo a transformação, incorporação, fusão e cisão, devem obedecer ao regime do Código Civil de 2002 caso não envolvam sociedades por ações. Se envolver sociedades por ações (sociedade anônima e sociedade em comandita por ações), deve-se aplicar a disciplina da Lei n° 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas).

O Código Civil de 2002, sob a perspectiva do Direito Empresarial, é importante por ser o marco inaugural de nova fase dessa disciplina jurídica no país e o seu grande trunfo foi a adoção da teoria da empresa, que se mostra mais adequada às atuais conjunturas econômicas. Ao contrário do que a unificação legislativa poderia sugerir, o Direito Empresarial não perdeu seu brilho com a inserção de suas normas fundamentais ao lado das normas civis no mesmo Código, pelo contrário. A unificação legislativa foi apenas parcial, não alcançou todos os institutos jurídicos empresariais e, por ironia, foi em seu bojo que o Direito Empresarial brasileiro rompeu o período transitório vivido no país, conseguindo superar a ultrapassada teoria francesa dos atos de comércio e ingressar, definitivamente, no período da teoria da empresa.

Em artigo elaborado logo após o surgimento do Código Civil de 2002[1], diante do caráter dinâmico das normas empresariais, foi previsto que o Livro II da Parte Especial sofreria  alterações em curto espaço de tempo. Confirmando referida previsão, após vinte anos de vigência do referido diploma civil vários dispositivos de natureza empresarial sofreram alterações, destacando-se nesse período o surgimento e o desaparecimento de uma nova figura jurídica empresarial, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) no art. 980-A, bem como a possibilidade da constituição da Sociedade Limitada com um único sócio.

Embora seja possível a identificação de várias críticas ao Código Civil de 2002, é possível ressaltar os benefícios proporcionados ao Direito Empresarial brasileiro. Dentre os pontos relevantes favoráveis, destaca-se a adoção da teoria da empresa nas normas fundamentais, que permitiu consolidar a ampliação da abrangência do Direito Empresarial no país, tendência verificada nos últimos trinta anos que antecederam o surgimento do Código Civil de 2002. Com a teoria da empresa, o Direito Empresarial passou a ser delimitado com base na atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, libertando-se da arbitrária divisão das atividades econômicas segundo o seu gênero, como previa a teoria francesa dos atos de comércio.

2. Bases históricas: do Direito Comercial ao Direito Empresarial

A compreensão do atual Direito Empresarial, bem como das opções utilizadas pelo legislador brasileiro, exige um voo pelos principais aspectos da evolução histórica desse relevante ramo do Direito, lembrando-se que a história do desenvolvimento das atividades comerciais confunde-se com a história da própria civilização. O surgimento do Direito Comercial relaciona-se com a ascensão da classe burguesa, originando-se da necessidade dos comerciantes da Idade Média manter um conjunto de normas para disciplinar a atividade profissional por eles desenvolvida. Reunidos em corporações de ofício, os comerciantes criaram o Direito Comercial com base nos usos e costumes comerciais difundidos pelos povos que se dedicaram à atividade comercial, dentre os quais destacam-se os gregos e os fenícios. Esses povos antigos trouxeram importantes contribuições na área do comércio marítimo, permitindo o surgimento de importantes institutos jurídicos incorporados pelo Direito Comercial no decorrer de sua evolução histórica.

O Direito Comercial aparece na Idade Média com um caráter eminentemente subjetivista, já que foi elaborado pelos comerciantes reunidos nas corporações para disciplinar suas atividades profissionais, caracterizando-se, no início, como um direito corporativista e fechado, restrito aos comerciantes matriculados nas corporações de mercadores. Criado para disciplinar a atividade profissional dos comerciantes, o Direito Comercial nasce como um direito especial, autônomo em relação ao Direito Civil, o que lhe permitiu alcançar autonomia jurídica, possuindo uma extensão própria, além de princípios e métodos característicos, que contribuíram para a sua consolidação como disciplina jurídica autônoma.

O prestígio e a importância das corporações começaram a se enfraquecer com o mercantilismo, que fortaleceu o Estado e afastou das corporações de mercadores a elaboração das normas comerciais e sua respectiva aplicação pelos cônsules, que eram os juízes eleitos pelos comerciantes nas corporações para decidir os conflitos de natureza comercial. As primeiras codificações das normas comerciais surgiram na França, com as Ordenações Francesas. A primeira Ordenação, de 1673, tratava do comércio terrestre e ficou conhecida como Código Savary em referência ao nome do comerciante responsável pela sua elaboração. Em 1681 surgiu a Ordenação da Marinha, que disciplinava o comércio marítimo.

As Ordenações Francesas tiveram vigência por um longo tempo e o Código Savary foi a base para a elaboração do Código de Comércio Napoleônico de 1807, responsável pela objetivação do Direito Comercial, afastando-o do aspecto subjetivo da figura do comerciante matriculado na corporação. Com o Código Comercial francês de 1807 o Direito Comercial passou a ser baseado na prática de atos de comércio enumerados na lei segundo critérios históricos, deixando de ser aplicado somente aos comerciantes matriculados nas corporações.

De acordo com a teoria francesa dos atos de comércio, a matéria comercial deixa de ser baseada na figura do comerciante da Idade Média e passa a ser definida pela prática dos atos de comércio enumerados na lei. Assim, para se qualificar como comerciante e submeter-se ao Direito Comercial, deixou de ser necessário à pessoa que se dedica a exploração de uma atividade econômica pertencer a uma corporação, bastando a prática habitual de atos de comércio. Essa objetivação do Direito Comercial atendia aos princípios difundidos pela Revolução Francesa em 1789 e influenciou a legislação de vários países, dentre os quais destacam-se Portugal, Espanha, Itália e o Brasil.

Na enumeração realizada nos artigos 632 e 633 do Código francês, o legislador considerou de natureza comercial os atos que eram tradicionalmente realizados pelos comerciantes na sua atividade, não sendo possível identificar nessa enumeração legal qualquer critério científico para definir quando um ato é ou não de comércio. Ao enumerar os atos de comércio, o legislador baseou-se em fatores históricos, sendo esse o grande problema da teoria francesa, que se mostrou bastante limitada diante da rápida evolução das atividades econômicas, tornando-se uma teoria ultrapassada por não identificar com precisão a matéria comercial, já que não foi possível a identificação de um elemento de ligação entre os atos de comércio previstos na lei que não fosse o histórico, o que enfraqueceu a teoria.

A enumeração legal dos atos de comércio apresenta natureza exemplificativa e, sabendo-se que novas atividades econômicas surgiriam, coube à doutrina elaborar uma fórmula para se definir a comercialidade das relações jurídicas. Entretanto, jamais se conseguiu criar um critério seguro para se definir a comercialidade de um ato com base na teoria francesa, já que os atos de comércio foram selecionados e inseridos na lei tendo como referência apenas o fato de serem praticados pelos comerciantes no exercício de sua profissão. Assim, atividades econômicas que tradicionalmente não eram desenvolvidas pelos comerciantes, como a atividade imobiliária, a prestação de serviços em geral e a atividade agrícola, foram afastadas do regime comercial. A ausência de um critério científico na separação das atividades econômicas em civis e comerciais e a exclusão de importantes atividades do regime comercial, em razão do seu gênero, constituíram os principais fatores para o desprestígio da teoria francesa, contribuindo para a sua superação.

 Em consonância com o desenvolvimento das atividades econômicas e de acordo com a tendência de crescimento do Direito Comercial, surgiu na Itália uma teoria que substituiu a teoria francesa, superou os seus defeitos e ampliou o campo de abrangência do Direito Comercial. Essa teoria, denominada de teoria jurídica da empresa, caracteriza-se por não dividir as atividades econômicas em dois grandes regimes, como fazia a teoria francesa, e foi inserida no Código Civil italiano de 1942, que ficou conhecido por ter realizado a unificação legislativa do direito privado na Itália.

A teoria da empresa elaborada pelos italianos afasta o Direito Comercial da prática de atos de comércio para incluir no seu núcleo a empresa, ou seja, a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Com a teoria da empresa, deixa de ser importante o gênero da atividade econômica desenvolvida, não importando se esta corresponde a uma atividade agrícola, imobiliária ou de prestação de serviços, mas, que seja desenvolvida de forma organizada, em que o empresário reúne capital, trabalho, matéria-prima e tecnologia para a produção e circulação de riquezas.

De acordo com a teoria da empresa, o Direito Comercial tem o seu campo de abrangência ampliado, alcançando atividades econômicas até então consideradas civis em razão do seu gênero. A teoria da empresa, ao contrário da teoria francesa, não divide as atividades econômicas em dois grandes regimes (civil e comercial), prevê um regime amplo para as atividades econômicas, excluindo desse regime apenas as atividades de menor importância, que são, a princípio, as atividades intelectuais, de natureza literária, artística ou científica. Segundo a teoria da empresa, a atividade agrícola também pode estar afastada do Direito Comercial, já que cabe ao seu titular a opção pelo regime comercial, que ocorre mediante o registro da atividade econômica no Registro Público de Empresas, realizado no Brasil pelas Juntas Comerciais e disciplinado pela Lei nº 8.934/1994.

Considerando o núcleo que delimita a matéria comercial ao longo de sua evolução histórica, pode-se dividir o desenvolvimento do Direito Comercial em três períodos. O primeiro período, do Séc. XII ao Séc. XIX, denominado de PERÍODO SUBJETIVO CORPORATIVISTA ou período subjetivo do comerciante, tem como núcleo do Direito Comercial a figura do comerciante matriculado na corporação. O segundo período, denominado de PERÍODO OBJETIVO DOS ATOS DE COMÉRCIO, compreendido entre o Séc. XIX e o Séc. XX, inicia-se com o Código de Comércio Napoleônico de 1807 e tem como núcleo os atos de comércio. O terceiro e atual período de evolução histórica do Direito Comercial, denominado PERÍODO DA TEORIA DA EMPRESA, inicia-se com o Código Civil italiano de 1942 e tem como núcleo a empresa, compreendendo o Séc. XX até nossos dias.

3.  A trajetória do Direito Empresarial no país

O Direito Comercial brasileiro tem origem em 1808 com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a abertura dos portos às nações amigas. Da sua origem até o surgimento do Código Comercial brasileiro, disciplinavam as atividades comerciais no país as leis portuguesas e os Códigos Comerciais da Espanha e da França, já que entre as leis portuguesas existia uma lei (Lei da Boa Razão) prevendo que no caso de lacuna da lei portuguesa deveriam ser aplicadas para dirimir os conflitos de natureza comercial as leis das nações cristãs, iluminadas e polidas. Por essa razão, nessa primeira fase do Direito Comercial brasileiro a disciplina legal das atividades comerciais mostrava-se bastante confusa e mesmo após a proclamação da independência em 1822, as leis portuguesas continuaram a ser aplicadas no Brasil para disciplinar as questões comerciais.

Em 1834, uma comissão de comerciantes apresentou ao Congresso Nacional um projeto de Código Comercial, que após uma tramitação de mais de 15 anos originou o primeiro código brasileiro no âmbito do Direito Privado, o Código Comercial (Lei n° 556, de 25 de junho de 1850), que foi baseado nos Códigos de Comércio de Portugal, da França e da Espanha. O Código Comercial brasileiro adotou a teoria francesa dos atos de comércio, podendo-se, entretanto, identificar traços do período subjetivo na lei de 1850, em razão do art. 4° prever que somente os comerciantes matriculados em alguns dos Tribunais de Comércio do Império poderão gozar dos privilégios previstos no Código Comercial.

Cumpre ressaltar que embora o Código Comercial brasileiro seja baseado na teoria dos atos de comércio, em nenhum dos seus artigos ele apresenta a enumeração legal desses atos, como faz o Código Comercial francês de 1807 nos artigos 632 e 633. Essa ausência da enumeração dos atos de comércio no Código Comercial foi proposital, justificando-se pelos problemas que a enumeração causava na Europa, onde eram conhecidas grandes divergências doutrinárias e jurisprudenciais referentes à caracterização da natureza comercial ou civil de determinadas atividades econômicas em razão da enumeração legal dos atos de comércio.

Temendo que essas divergências e disputas judiciais se repetissem no país, o legislador brasileiro preferiu, após grandes discussões na fase de elaboração do Código Comercial, não inserir a enumeração dos atos de comércio na Lei n° 556, de 1850. Entretanto, não foi possível ao legislador brasileiro escusar-se de apresentar uma enumeração legal dos atos de comércio no país, que foi realizada no Regulamento n° 737 de 1850, especificamente nos artigos 19 e 20. O Regulamento n° 737 tratava do processo comercial e a enumeração dos atos de comércio baseou-se no Código de Comércio francês.

Até 1875, a enumeração dos atos de comércio constante no Regulamento n° 737 era utilizada para delimitar o conteúdo da matéria comercial para o fim jurisdicional e para qualificar a pessoa como comerciante no país. Em 1875 os Tribunais de Comércio foram extintos e com a unificação do processo deixou de ser necessário para o fim jurisdicional diferenciar a atividade comercial da atividade civil. Assim, sob o aspecto processual, a teoria dos atos de comércio perdeu a sua importância no Brasil, mas, continuou a ser necessária para diferenciar o comerciante do não comerciante, já que a lei prevê um tratamento diferenciado para aquele que desenvolve uma atividade econômica de natureza comercial, sendo o principal exemplo dessa diferenciação a aplicação do regime falimentar ao comerciante, dentre outras distinções.

O Regulamento n° 737 de 1850 foi revogado em 1939 pelo Código de Processo Civil e desde então deixou de existir no país um diploma legal que apresentasse a enumeração dos atos de comércio, dificultando a definição da comercialidade das relações jurídicas no Brasil a ponto de não existir até o surgimento do Código Civil de 2002 um critério seguro para se definir o conteúdo da matéria comercial. Essa dificuldade justificava-se por vários motivos. A teoria dos atos de comércio, por sua própria natureza, não permitiu a criação de um critério científico para definir a natureza comercial de um ato e, quando determinado ato não se encontrava enumerado na relação legal, surgiam insuperáveis dificuldades para definir sua natureza comercial ou não.

No Brasil esse problema intensificou-se porque desde 1939, com a revogação do Regulamento nº 737/1850, a enumeração legal dos atos de comércio deixou de existir. Se não bastasse, a partir de 1970, várias leis brasileiras de natureza comercial passaram a apresentar fortes traços da teoria da empresa e a doutrina nacional passou a se dedicar ao estudo da teoria italiana, prestigiando-a em detrimento da teoria francesa, o que acabou refletindo em várias decisões dos Tribunais brasileiros, que passaram a definir o conteúdo da matéria comercial de acordo com a teoria italiana.

Todo esse contexto fez com que a definição da comercialidade das relações jurídicas no país se transformasse em um grande problema. Nessa difícil tarefa em delimitar o conteúdo da matéria comercial utilizou-se como referência histórica os atos de comércio enumerados no revogado Regulamento n° 737 de 1850, o disposto em lei como sendo matéria comercial (sociedades anônimas, empresas de construção civil) e a jurisprudência, já que várias decisões envolvendo complexos casos passaram a definir a natureza comercial de certas atividades econômicas.

Na delimitação do conteúdo da matéria comercial foi possível identificar em várias ocasiões a adoção da teoria da empresa para definir como comercial a natureza de determinada atividade econômica, evidenciando a influência e o prestígio da teoria italiana no direito brasileiro. Nesse sentido, destacaram-se decisões que consideraram como de natureza comercial as atividades desenvolvidas por clínicas de serviços médicos, salões de cabeleireiros, empresas de publicidade e também a atividade pecuária. Essas atividades, pela teoria dos atos de comércio estariam, em regra, afastadas do regime comercial e, consequentemente, não estariam submetidas à falência e não poderiam obter concordata.

As dificuldades encontradas na definição da comercialidade das relações jurídicas e a adoção da teoria da empresa para caracterizar determinadas atividades econômicas sob o regime comercial caracterizaram o período de transição do Direito Comercial brasileiro nos últimos 30 anos que antecederam o Código Civil de 2002. Esse período transitório entre a teoria dos atos de comércio, presente no Código Comercial e na antiga Lei de Falência de 1945, e a teoria da empresa, prestigiada pela doutrina e pela jurisprudência e presente em importantes leis comerciais (p. ex.: Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – Lei das Sociedades Anônimas; Lei n° 8.934, de 18 de novembro de 1994 – Lei de Registro Público de Empresas; Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996 – Lei da Propriedade Industrial), foi finalmente superado com o surgimento do Código Civil brasileiro de 2002.

4.  O Direito de Empresa no Código Civil de 2002: inspiração italiana.

O Código Civil brasileiro de 2002 nasceu com 2.046 artigos e divide-se, fundamentalmente, em Parte Geral e Parte Especial. A Parte Geral possui três Livros: I. Das Pessoas; II. Dos Bens; III. Dos Fatos Jurídicos. A Parte Especial contém cinco Livros: I. Do Direito das Obrigações; II. Do Direito de Empresa; III. Do Direito das Coisas; IV. Do Direito de Família; V. Do Direito das Sucessões. As disposições finais e transitórias estão previstas no Livro Complementar.

As normas fundamentais do Direito Empresarial estão presentes no Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominado “Do Direito de Empresa”. Esse Livro II foi baseado no Código Civil italiano de 1942, famoso por ter realizado a unificação formal ou legislativa do Direito Privado na Itália, mas, que se destaca realmente sob o aspecto jurídico por apresentar uma teoria nova para disciplinar as atividades econômicas, a teoria da empresa, que substitui com vantagens a imprecisa e ultrapassada teoria francesa dos atos de comércio.

Em relação ao Direito Empresarial a grande evolução proporcionada pelo Código Civil de 2002 foi a introdução da teoria da empresa nas suas normas fundamentais e a consequente revogação da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, permitindo a superação da teoria dos atos de comércio e a harmonização do tratamento legal da disciplina privada da atividade econômica no país. O Livro II da Parte Especial não tratou de todos os institutos jurídicos empresariais em seus iniciais 229 artigos, ressaltando-se que importantes temas empresariais não foram ali disciplinados. O Livro “Do Direito de Empresa” não abrangeu falência, não tratou dos títulos de crédito em espécie, remeteu para a lei especial a disciplina legal da sociedade anônima, não se referiu aos bens industriais (marcas de produtos ou serviços, desenho industrial, invenção e modelo de utilidade) e também não disciplinou a concorrência empresarial.

O fato desses importantes institutos jurídicos não serem abordados pelo Código Civil de 2002, se por um lado foi objeto de críticas da doutrina, por outro lado evidenciou a característica fragmentária sempre presente no Direito Empresarial, que dificulta a codificação dos seus principais institutos jurídicos e contribui para a existência de uma grande quantidade de leis especiais, mais adequadas ao dinamismo exigido para as normas empresariais. O Direito Empresarial é um ramo do direito privado que adota o método indutivo, acompanhando o desenvolvimento das atividades econômicas, o que torna as suas normas extremamente dinâmicas. Esse fato caracteriza sua fragmentariedade, afastando desse ramo jurídico a tendência da codificação, mais adequada ao Direito Civil, de normas estáticas e de caráter conservador em razão da utilização do método dedutivo, que valoriza as tradições de uma sociedade, mostrando-se pouco receptivo às novas tendências.

O Direito Empresarial destaca-se por disciplinar o desenvolvimento profissional das atividades econômicas, devendo apresentar normas capazes de acompanhar o ritmo da evolução dos negócios empresariais, sob pena de se tornarem obsoletas. Nesse contexto, as normas dinâmicas do Direito Empresarial ajustam-se melhor em leis especiais. A tendência inovadora e a dinamicidade desse ramo jurídico de tendências profissionais devem estar disciplinadas, preferencialmente, fora da estrutura pesada de um Código.

Em relação ao conteúdo do Livro II da Parte Especial, são disciplinados no livro “Do Direito de Empresa”: a caracterização do empresário; sociedades empresárias; sociedade simples; sociedade em comum; sociedade em conta de participação; sociedade cooperativa; sociedades coligadas; liquidação da sociedade; transformação, incorporação, fusão e cisão das sociedades; sociedade dependente de autorização; sociedade nacional e sociedade estrangeira; estabelecimento empresarial; registro público de empresas; nome empresarial; prepostos; gerentes; contabilistas e escrituração.

Ao caracterizar o empresário no art. 966, o Código Civil de 2002 introduz definitivamente no direito brasileiro a definição de empresário que já vinha se cristalizando no Brasil durante o período transitório. De acordo com referido dispositivo, empresário é aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. O parágrafo único do art. 966 exclui da definição de empresário quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O Código Civil de 2002 afastou do Direito Empresarial a antiga figura do comerciante, que se caracterizava pela prática habitual de atos de comércio. Sob o enfoque da teoria da empresa o enigmático e impreciso conceito de ato de comércio foi definitivamente superado, surgindo a empresa (atividade econômica) como o novo núcleo do Direito Empresarial atual. A antiga figura do comerciante transformou-se no empresário, que passa a ser o principal elemento da empresarialidade. É o empresário quem organiza o estabelecimento empresarial e exerce a atividade econômica. Em sentido jurídico, empresa corresponde à atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, surgindo da vontade do empresário, que exerce a atividade econômica a partir da organização dos bens que integram o estabelecimento. Tem-se assim os três elementos da empresarialidade (empresário, estabelecimento empresarial e empresa), que constituem a base fundamental do atual Direito Empresarial.

Da mesma forma que no Código Civil italiano de 1942, o Código Civil de 2002 também não apresenta o conceito legal para empresa. Seguindo o modelo italiano, o Código nacional definiu apenas dois dos elementos da empresarialidade – empresário e estabelecimento empresarial. Entretanto, quando confrontamos referidos dispositivos conceituais, é possível verificar que o conceito doutrinário adotado para empresa encontra-se intuitivamente presente na conjugação dos arts. 966 e 1.142 do Código Civil, de forma que o caráter abstrato da empresa, que corresponde ao perfil funcional identificado pelo italiano Asquini, deve ser prestigiado no âmbito do atual Direito Empresarial.

Caracteriza-se como empresário, segundo o art. 966, quem se dedica profissionalmente à produção ou circulação de bens ou serviços, excluindo-se dessa definição, segundo o parágrafo único do referido artigo, quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica. Assim, a princípio, estão excluídos do regime empresarial os profissionais liberais (dentista, médico e engenheiro, por exemplo), que podem ingressar no regime empresarial se fizerem do exercício da profissão um elemento de empresa, ou seja, se inserirem a sua atividade numa organização empresarial.

Pela caracterização do empresário prevista no art. 966 identifica-se o regime geral estabelecido pela teoria da empresa para as atividades econômicas, do qual são excluídas apenas as atividades econômicas de menor importância. Em relação aos agricultores (empresários rurais), o Código Civil de 2002 prevê no art. 971 ser facultativa a opção pelo regime empresarial: “O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”. A Lei n. 14.193/2021 incluiu no referido dispositivo legal o parágrafo único, assim redigido: “Aplica-se o disposto no caput deste artigo à associação que desenvolva atividade futebolística em caráter habitual e profissional, caso em que, com a inscrição, será considerada empresária, para todos os efeitos.”

O art. 970 do novo Código Civil prevê que “A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”. Nota-se que referido dispositivo não prevê a dispensa da inscrição aos agricultores (conforme visto, a inscrição nesse caso é optativa para submetê-los ao regime comercial) e aos pequenos empresários, como previa o antigo texto do artigo correspondente do projeto que sofreu emenda no Senado Federal.

O conceito de pequeno empresário previsto no art. 970 não se refere ao microempresário (ME) e ao empresário de pequeno porte (EPP), definidos atualmente no art. 3° da Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte). O pequeno empresário recebeu definição legal por meio da Lei Complementar nº 139, de 10 de novembro de 2011, que alterou a redação do art. 68 da Lei Complementar nº 123/2006, que passou a definir pequeno empresário da seguinte forma:

“Art. 68. Considera-se pequeno empresário, para efeito de aplicação do disposto nos arts. 970 e 1.179 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), o empresário individual caracterizado como microempresa na forma desta Lei Complementar que aufira receita bruta anual até o limite previsto no §1º do art.18-A.”

Portanto, pequeno empresário é o Microempreendedor Individual – MEI cuja receita bruta anual não seja superior a R$81.000,00 (oitenta e um mil reais), que seja optante pelo Simples Nacional e se enquadre na definição de empresário individual prevista no art. 966 do Código Civil de 2002, não podendo possuir mais de um estabelecimento, participar de outra empresa como titular, sócio ou administrador ou constituir-se na forma de startup. O art. 18-C da LC 123/2006 permite que o MEI contrate um único empregado que receba exclusivamente 1 (um) salário mínimo ou o piso salarial da categoria.

O Código Civil de 2002, no art. 967, prevê a obrigatoriedade da inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede antes de iniciar a atividade empresarial. O art. 967 refere-se ao arquivamento do ato constitutivo do empresário na Junta Comercial, disciplinado pela Lei n° 8.934, de 18 de novembro de 1994, que já apresentava traços da teoria da empresa ao ampliar o âmbito do registro (arquivamento) realizado na Junta Comercial em seu art. 2°: “Os atos das firmas mercantis individuais e das sociedades mercantis serão arquivados no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, independentemente de seu objeto, salvo as exceções previstas em lei”. Em relação às exceções previstas em lei, destaca-se a sociedade voltada a prestação de serviços de advocacia, que deve ter os seus atos constitutivos encaminhados à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conforme determina o §1°, art. 15, da Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia).

Ao prever a possibilidade de registro aos empresários individuais e às sociedades empresárias sem considerar a natureza da atividade desenvolvida (independentemente de seu objeto), a Lei n° 8.934, de 1994, demonstra claramente a adoção da teoria da empresa (regime geral para as atividades econômicas sem considerar o gênero da atividade, mas, a sua importância) e a superação da teoria dos atos de comércio (divisão das atividades econômicas em razão do gênero da atividade).

As sociedades empresárias devem ter os seus atos constitutivos arquivados na Junta Comercial, ao passo que a sociedade que não se configura como empresária, em razão de não prevalecer nessa sociedade a organização de capital e trabalho sobre a profissão intelectual de seus integrantes possuem os seus atos constitutivos arquivados no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, correspondendo à Sociedades Simples. As sociedades empresárias adquirem personalidade jurídica com o registro na Junta Comercial (art. 985, Código Civil 2002), enquanto a Sociedades Simples torna-se pessoa jurídica com a inscrição no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (arts. 45 e 1.150, Código Civil 2002).

Na disciplina jurídica do Código Civil existem cinco espécies de sociedades empresárias: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade em comandita por ações e sociedade anônima. A sociedade de capital e indústria prevista no Código Comercial de 1850 não foi prevista na lei de 2002. Em relação à manutenção no Código das sociedades em nome coletivo, em comandita simples e em comandita por ações, questionou-se a permanência em razão da rara utilização dessas espécies de sociedades empresárias no país. Na constituição de uma sociedade empresária para a exploração da atividade econômica, os empreendedores escolhem aquelas em que a responsabilidade de todos os sócios, em regra, é limitada ao valor investido. No Brasil, as sociedades empresárias mais utilizadas são a sociedade limitada e a sociedade anônima em razão da limitação da responsabilidade, em regra, de todos os seus sócios.

A partir da vigência do Código Civil de 2002, a sociedade limitada, anteriormente denominada sociedade por quotas de responsabilidade limitada, passou a ser disciplinada no Capítulo IV (Da Sociedade Limitada). Sendo omisso o Código Civil na disciplina da sociedade limitada, aplicam-se supletivamente as normas da sociedade simples (art. 1.053, Código Civil 2002) ou da sociedade anônima, caso o contrato social assim estabelecer (parágrafo único, art. 1053, Código Civil 2002). Portanto, se o contrato social da limitada apresentar cláusula prevendo a disciplina supletiva dessa espécie societária pelas normas da sociedade anônima, aplica-se a Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas) nas omissões do Capítulo IV do Código Civil, do contrário, a lei prevê que nas omissões do referido capítulo devem ser aplicadas as normas das sociedades simples. Ressalta-se que o Código Civil é a lei aplicável na constituição e dissolução da sociedade limitada, ainda que o contrato social eleja a lei das sociedades anônimas para a regência supletiva. Em relação à sociedade anônima, o Código Civil, no art. 1.089, remete para lei especial a sua disciplina jurídica. Assim, a sociedade anônima continua a ser regida pela Lei n° 6.404, de 1976, que já foi objeto de várias alterações.

No âmbito da limitação da responsabilidade decorrente da exploração da atividade econômica destaca-se a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, criada pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, que acrescentou o Título I-A. Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, ao Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, mediante a introdução do art. 980-A ao diploma legal, que corresponde a uma das principais alterações sofridas pelo Código Civil nos primeiros 10 anos de sua vigência.

Não obstante, com a inclusão do §1° no art. 1052 do Código Civil pela Lei n. 13.874/2019, passou a ser admitida a sociedade limitada constituída por apenas um único sócio e a EIRELI, por exigir um valor mínimo de investimento no capital social equivalente a 100 salários mínimos, perdeu importância, havendo a revogação do art. 980-A do Código Civil pela Medida Provisória n. 1.085/2021, sendo que o art. 41 da Lei n. 14.195/2021 prevê a transformação automática da EIRELI em sociedade limitada, independentemente de qualquer alteração do ato constitutivo, devendo ser atualizado o nome empresarial, que no final deve substituir o EIRELI para LTDA.

O Código Civil 2002, pela primeira vez no país, disciplinou de forma específica o estabelecimento empresarial no Título III (Do estabelecimento), dedicando oito artigos que apresentam a definição de estabelecimento, sua natureza como objeto de direito, os efeitos do contrato de compra e venda do estabelecimento (trespasse), os requisitos para a eficácia da sua alienação, a questão da sucessão empresarial como regra e a proibição do restabelecimento do empresário alienante do estabelecimento nos 5 anos seguintes à transferência do mesmo, ressalvando a estipulação das partes em contrário no contrato de trespasse.

O estabelecimento empresarial, chamado antigamente de fundo de comércio e conhecido na Itália por azienda, corresponde ao conjunto de bens organizados pelo empresário para a exploração da atividade econômica. Juntamente com o empresário e a empresa, o estabelecimento empresarial corresponde a um dos elementos da empresarialidade e o tratamento previsto no Código Civil mostrou-se de grande relevância para o tratamento das questões jurídicas envolvendo o estabelecimento, motivando elogios por parte da doutrina.

Em 2021 foram acrescentados três parágrafos ao art. 1142 do Código Civil pela Media Provisória n. 1085/021:

“§ 1º  O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual.

§ 2º  Quando o local onde se exerce a atividade empresarial for virtual, o endereço informado para fins de registro poderá ser, conforme o caso, o endereço do empresário individual ou de um dos sócios da sociedade empresária.

 § 3º  Quando o local onde se exerce a atividade empresarial for físico, a fixação do horário de funcionamento competirá ao Município, observada a regra geral prevista no inciso II do caput do art. 3º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019.”

5. Alterações nas normas jurídicas empresariais do Livro II – Do Direito de Empresa desde o surgimento do Código Civil de 2002

A dinamicidade das normas jurídicas empresariais, que fulminaram a integridade do Código Comercial de 1850 em menos de cinquenta anos da sua existência, também motivaram importantes alterações no Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002.

Nos quase vinte anos de vigência do diploma civil de 2002, ocorreram as seguintes alterações no Livro II da Parte Especial:

  1. A Lei Complementar n° 147/2014 alterou a redação do inciso I do art. 968, prevendo a possibilidade de substituição na firma da assinatura autógrafa do empresário pela assinatura autenticada com certificação digital ou meio equivalente comprobatório de sua autenticidade, ressalvado o disposto no art. 4º, §1°, I, da Lei Complementar n° 123/2006.
  2. A Lei Complementar nº 128/2008 acrescentou o §3º ao art. 968, que também sofreu alteração com os acréscimos dos §§4º e 5º pela Lei nº 12.470/2011, tornando possível a transformação do empresário individual em sociedade empresária e disciplinando a abertura, registro, alteração e baixa do microempreendedor individual – MEI de forma simplificada.
  3. A Lei n. 14.193/2021 incluiu o parágrafo único ao art. 971, tornando possível o arquivamento na Junta Comercial da associação que desenvolva atividade futebolística em caráter habitual e profissional, para permitir pela opção realizada sua caracterização como empresária para todos os efeitos.
  4. Absorvendo o consolidado entendimento dos Tribunais sobre a participação de menores em sociedades, a Lei n. 12.399/2011 acrescentou o §3° ao art. 974 para estabelecer que as Juntas Comerciais devem registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, concomitantemente, os requisitos legais previstos (sócio incapaz não exerça a administração da sociedade, o capital social encontre-se totalmente integralizado e o sócio relativamente incapaz seja assistido e o absolutamente incapaz representado por seus representantes legais).
  5. A Lei nº 12.441/2011 acrescentou o Título I-A “Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, composto pelo art. 980-A, caput e por seis parágrafos, modificando a redação do parágrafo único do art. 1033, lembrando que posteriormente, a Medida Provisória n° 1.085/2021 revogou o art. 980-A e a Lei n. 14.195/2021 revogou o parágrafo único do art. 1033.
  6. A Lei n° 14.195/2021 revogou o parágrafo único do art. 1015, que previa as hipóteses de aplicação da teoria inglesa ultra vires societatis, destinada a coibir os atos praticados com excesso de poder pelos administradores, afastando a responsabilidade da sociedade pelos atos configuradores de excesso quando comprovada uma das hipóteses previstas no revogado parágrafo único do art. 1015 (prova que a limitação do poder gerencial era conhecida pelo terceiro que negociou com a sociedade, quando a limitação dos poderes encontrava-se inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade e quando a operação mostrava-se evidentemente estranha aos negócios da sociedade, ou seja, ao seu objeto social).
  7. A Lei n° 14.195/2021 também revogou o inciso IV e o parágrafo único do art. 1033, afastando a hipótese de dissolução da sociedade pela falta de pluralidade de sócios não reconstituída no prazo de 180 dias (inciso IV) e a previsão de não aplicação do inciso IV no caso do sócio remanescente na sociedade unipessoal transformá-la mediante registro na Junta Comercial para empresário individual ou EIRELI (parágrafo único).
  8. A Lei n° 13.874/2019 incluiu os parágrafos 1° e 2° no art. 1052, proporcionando talvez a mais importante alteração no Direito Societário brasileiro, visto que o §1° estabelece a possibilidade da constituição de sociedade limitada com apenas um único sócio, introduzindo no país a sociedade limitada unipessoal, tornando possível a exploração da atividade econômica sem sócio e com responsabilidade limitada ao valor investido no capital social, que não apresenta limite mínimo de constituição, como ocorria na constituição da EIRELI.
  9. A Lei n° 12375/2010 alterou a redação do art. 1061 para estabelecer que a designação de administradores não sócios na sociedade limitada dependerá da aprovação da unanimidade dos sócios enquanto o capital social não estiver integralizado e de 2/3, no mínimo, após sua integralização sem a necessidade de previsão expressa no contrato social.
  10. A Lei n° 13.792/2019 atribuiu nova redação ao §1° do art. 1063 para estabelecer que na hipótese de sócio administrador nomeado no contrato social da sociedade limitada, sua destituição somente será possível pela aprovação de sócios representantes de mais da metade do capital social, salvo disposição diversa no contrato social.
  11. A Lei n° 13.792/2019 também alterou a redação do art. 1076, caput, que passou a prever que “Ressalvado o disposto no art. 1.061, as deliberações dos sócios serão tomadas I – pelos votos correspondentes, no mínimo, a três quartos do capital social, nos casos previstos nos incisos V e VI do art. 1.071; II – pelos votos correspondentes a mais de metade do capital social, nos casos previstos nos incisos II, III, IV e VIII do art. 1.071; III – pela maioria de votos dos presentes, nos demais casos previstos na lei ou no contrato, se este não exigir maioria mais elevada.”
  12. A Lei n° 14.030/2020, em consonância com o atual entendimento referente à realização de atos na forma digital, acrescentou o art. 1080-A para estabelecer que o sócio poderá participar e votar a distância em reunião ou em assembleia, nos termos do regulamento do órgãos competente do Poder Executivo Federal, sendo que o parágrafo único do dispositivo acrescentado prevê que a reunião ou a assembleia poderá ser realizada de forma digital, respeitados os direitos legalmente previstos de participação e de manifestação dos sócios e os demais requisitos regulamentares.
  13. A Lei n° 13192/2019 alterou a redação do parágrafo único do art. 1085, que trata da exclusão de sócio, prevendo que ressalvado o caso em que haja apenas dois sócios na sociedade, a exclusão de um sócio somente poderá ser determinada em reunião ou assembleia especialmente convocada para esse fim, devendo o acusado encontrar-se ciente em tempo hábil para permitir o seu comparecimento e o respectivo exercício do direito de defesa.
  14. A Medida Provisória n° 1085/2021 acrescentou três parágrafos ao art. 1142, que trata da definição do estabelecimento empresarial, reforçando que por constituir um conjunto de bens, não se confunde com o local onde o empresário exerce a atividade, que pode ser físico ou virtual (§1°), hipótese em que o endereço informado para fins de registro poderá ser o endereço do empresário individual ou de um dos sócios da sociedade empresária (§2°). Quando o estabelecimento for físico, o §3° prevê que a fixação do horário de funcionamento é de competência do Município, observada o disposto no art. 3º, II, da Lei n° 13.874,2019.
  15. A Medida Provisória n° 1085/2021 também promoveu alterações na formação do nome empresarial, afastando a obrigatoriedade da indicação do objeto social na denominação das sociedades por ações, alterando a redação do art. 1160 para tornar facultativa a designação do objeto social na denominação da sociedade anônima e do art. 1161 para facultar a designação do objeto social na denominação da sociedade em comandita por ações.
  16. Recentemente, a Lei n° 14.451/2022 alterou novamente os quóruns para a designação de administrador não sócio na Sociedade Limitada, reduzindo os quóruns para 2/3 dos sócios quando o capital social não estiver totalmente integralizado e para sócios representantes de mais da metade do capital social após a integralização total do capital social. Referida lei também alterou o art. 1076 do Código Civil, extinguindo o quórum de 3/4, repercutindo diretamente na redução do quórum geral de alteração do contrato social para a maioria absoluta.

Conforme se observa, em vinte anos de existência, o Código Civil de 2002 recebeu significativas alterações em seus dispositivos legais de natureza empresarial. Paralelamente, demonstrando a dinamicidade das normas jurídicas empresariais, destaca-se nesse período a entrada em vigor da Lei nº 11.101/2005, que introduziu no país os institutos da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial e já foi objeto de recente reforma proporcionada pela Lei n° 14.112/2020.

Também surgiu ao tempo da vigência do Código Civil o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte por meio da Lei Complementar nº 123/2006 (que já recebeu importantes alterações), lembrando que o Decreto nº 6.022/2007 instituiu o Sistema Público de Escrituração Digital – SPED, dentre várias alterações sofridas por outras leis empresariais nesse período (v.g. Lei nº 8.934/1994, Lei n° 9.279/1996).   

Destaca-se, recentemente, a criação da Sociedade Anônima de Futebol – SAF pela Lei n° 14.193/2021 e o surgimento da Lei n° 14.195/2021 (Lei do Ambiente de Negócios), que apresenta normas destinadas a facilitar a abertura de empresas e o comércio exterior, a proteção dos acionistas minoritários e a desburocratização societária e de atos processuais, além de promover alterações nas regras dos tradutores públicos e intérpretes comerciais. Referida lei também criou o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos – SIRA e abordou as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, sendo a responsável pela consolidação da sociedade limitada unipessoal e pela extinção da EIRELI no país.

Em relação às alterações ocorridas diretamente nas normas jurídicas empresariais constantes no Livro II – Do Direito de Empresa, na sequência a análise das principais modificações realizadas no Código Civil de 2002 desde o seu surgimento.

5.1. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI: do esperado surgimento à discreta extinção

Nesses 20 anos de existência do Código Civil de 2002, a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI e a possibilidade, posteriormente, da constituição de sociedade limitada com um único sócio, correspondem às principais novidades desse período vintenário, já que a doutrina, desde a tramitação do Projeto 634/1975 (projeto do novo Código Civil), pleiteava a limitação da responsabilidade na exploração individual da atividade econômica.

A busca da limitação de possíveis prejuízos decorrentes da exploração da atividade econômica, sempre presentes e inerentes ao desenvolvimento da atividade empresarial, motivou os empreendedores nacionais a optarem, por muito tempo, pela criação de sociedades limitadas pro forma, ou seja, pessoas jurídicas constituídas por apenas dois sócios onde apenas um deles participava ativamente do desenvolvimento da empresa.

Essa realidade verificada no âmbito empresarial motivou a apresentação de sugestões doutrinárias para permitir a limitação da responsabilidade na exploração individual da atividade econômica no Brasil, a exemplo do que já se verificava em outros países. O Código Civil de 2002 perdeu, ao tempo da sua elaboração, a grande oportunidade de trazer para o direito brasileiro a limitação da responsabilidade na exploração individual da empresa, a exemplo do que ocorre em Portugal, onde foi criado em 1986 o EIRL (Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada).

No EIRL o empresário individual destaca uma parcela de seu patrimônio, destinando-o à exploração da atividade econômica. Essa parcela do seu patrimônio corresponde ao capital inicial do EIRL e equivale ao limite da sua responsabilidade. A limitação da responsabilidade na exploração individual da atividade econômica também existe na França, Itália e Alemanha. A Alemanha introduziu em seu sistema normativo a sociedade unipessoal em 1980, sendo seguida pela Itália. Em 1985 a França também aderiu a ideia da limitação da responsabilidade na exploração individual da atividade econômica.

O Brasil aproximou-se de limitar a responsabilidade do empresário individual em 2006. O art. 69 da Lei Complementar n° 123/2006, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, previa no art. 69 o Empreendedor Individual de Responsabilidade Limitada, mas, o art. 69 foi objeto de veto do presidente da República por razões tributárias. O vetado dispositivo previa:

 “Art. 69.  Relativamente ao empresário enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte nos termos desta Lei Complementar, aquele somente responderá pelas dívidas empresariais com os bens e direitos vinculados à atividade empresarial, exceto nos casos de desvio de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que a responsabilidade será integral.”

 Frustrada a tentativa prevista na LC n° 123/2006, foi atribuída a limitação da responsabilidade ao empreendedor individual no país pela Lei n° 12.441, de 11 de julho de 2011, que alterou o Código Civil de 2002, acrescentando o inciso VI ao art. 44 e o art. 980-A ao Livro II da Parte Especial. Referida lei também alterou o parágrafo único do art. 1.033 para instituir a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”.

A análise das alterações promovidas pela Lei n° 12.441/2011 permitiu constatar a criação de um novo tipo jurídico empresarial, a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, que nos termos da redação atribuída ao art. 44, VI, do Código Civil de 2002, atribuiu à “EIRELI” a natureza de pessoa jurídica de direito privado, mesma categoria das associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos. A Lei n° 12.441/2011 introduziu o Título I-A no Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominado “Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”. O Título I do referido Livro trata “Do Empresário” e o Título II é denominado “Da Sociedade”, de forma que o novo tipo jurídico empresarial instituído em 2011 encontrava-se entre o empresário individual e as sociedades.

De acordo com as alterações promovidas, as alternativas possíveis para a exploração da atividade empresarial no país passaram a ser três: empresário individual, empresa individual de responsabilidade limitada e sociedade empresária. Como empresário individual, a responsabilidade pelas obrigações contraídas na exploração da atividade econômica é ilimitada, ou seja, se o empreendedor desejasse explorar sozinho a empresa e limitar os riscos decorrentes da exploração da atividade econômica, deveria optar pela constituição da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, já que ainda não existia na época a possibilidade da constituição da sociedade limitada unipessoal.

Nos termos do revogado art. 980-A, caput, do Código Civil de 2002, a EIRELI era constituída por uma única pessoa, titular da totalidade do capital social, que deveria encontrar-se totalmente integralizado e não poderia ser inferior a 100 salários mínimos vigentes no país no ato da constituição. Chegou-se a discutir se essa única “pessoa” deveria ser necessariamente pessoa natural ou também poderia ser pessoa jurídica, ainda que o texto legal mencionasse simplesmente “pessoa” em seu contexto genérico, que abrange tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica, consolidando-se sobre a questão o entendimento judicial que tanto uma como a outra pessoa poderia ser titular de uma EIRELI.

Outro ponto que gerou divergências foi a previsão de um limite vinculado ao salário mínimo para a constituição do capital social da EIRELI. Quanto à inconstitucionalidade do capital mínimo vinculado ao salário mínimo, no julgamento da ADI nº 4.637, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser a exigência do capital mínimo perfeitamente compatível com os princípios constitucionais, na medida em que viabilizava a constituição da EIRELI e protegia os credores, encontrando respaldo no relatório do Banco Mundial (Doing Business 2011), que demonstrava exigências similares em outros países, como Itália e Argentina.

A exigência do valor mínimo de 100 salários mínimos para constituição da EIRELI sempre foi o maior obstáculo para sua consolidação no país como novo tipo jurídico empresarial. Nesse contexto, o surgimento da sociedade limitada unipessoal pela alteração no art. 1052 pela Lei n° 13.874/2019 permitiu, finalmente, a exploração da atividade econômica pela sociedade empresária mais utilizada no país por uma única pessoa e sem a exigência de um valor mínimo de investimento no capital social.

Essa fórmula simples e de sucesso garantido, naturalmente, atraiu os empreendedores para a nova opção em detrimento da EIRELI, havendo a correspondente revogação do art. 980-A pela Medida Provisória n° 1.085/2021 e a revogação do parágrafo único do art. 1033 pela Lei n. 14.195/2021. O empresário individual no país permanece respondendo de forma ilimitada pelas obrigações contraídas na exploração da atividade econômica. A limitação da responsabilidade pelos fracassos na exploração da atividade econômica encontra-se prevista somente na sociedade anônima e na sociedade limitada, que nos termos da atual redação atribuída ao art. 1052, pode agora ser constituída por um único sócio.

Vale lembrar que a exploração da atividade empresarial no país como empresário individual ainda tem como efeito a responsabilidade ilimitada pelos riscos decorrentes do desenvolvimento da empresa, de forma que os bens pessoais do titular (pessoa natural) respondem pelas dívidas contraídas na exploração da atividade econômica. Por outro lado, os bens utilizados na exploração da atividade econômica e titularizados pelo empresário individual também respondem pelas dívidas pessoais, identificando-se, no caso, a confusão patrimonial entre a pessoa natural e o empresário individual, que correspondem a mesma e única pessoa (vide STJ. REsp 1355000/SP.  Rel. Ministro Marco Buzzi. 4ª Turma. DJ 20.10.2016).

Não há distinção entre a pessoa natural e a pessoa jurídica em função do CPF e CNPJ titularizados pelo empresário individual, tanto que o patrimônio é comum, confundindo-se e servindo a ambas, uma e outra se fundem para todos os fins de direito em um todo único e indivisível. Não havendo distinção, quem celebrar negócios jurídicos com a pessoa natural tem como garantia o patrimônio destinado à exploração da atividade econômica e vice versa, conforme consolidado entendimento do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (v.g. AgI n° 2118316-45.2017.8.26.0000. 16ª Câm. Direito Privado. Rel. Des. Simões de Vergueiro. DJ 22.08.2017; AgI n° 2128623-58.2017.8.26.0000. 25ª Câm. Direito Privado. Rel. Des. Edgard Rosa. DJ 24.082017).

Quanto à EIRELI, a Lei n° 14.195/2021 (Lei do Ambiente de Negócios) formalizou sua extinção no país, apagando seus rastros no art. 41 ao prever sua transformação automática em sociedade limitada, independentemente de qualquer alteração do ato constitutivo, devendo ser atualizado o nome empresarial, substituindo-se no final o “EIRELI” pela “LTDA”.

5.2. Possibilidade de transformação do empresário individual em sociedade empresária e vice versa

A introdução do §3º ao art. 968 do Código Civil tornou possível a transformação do empresário individual em sociedade empresária, observando-se, no que couber, os arts. 1.113 e 1.115 do Código Civil. Trata-se de uma novidade introduzida ao ordenamento jurídico brasileiro, já que no regime anterior referida possibilidade não existia, exigindo que o empresário individual que desejasse transformar-se em sociedade empresária mediante a entrada de sócios, deveria promover sua extinção como empresário individual no Registro Público de Empresas.  

A transformação de empresário individual em sociedade empresária e vice versa, deve ser promovida no âmbito do Registro Público de Empresas, de acordo com as normas administrativas do DREI. O art. 1113 do Código Civil define transformação como a operação pela qual o empresário ou sociedade empresária passa de um tipo para outro, independentemente de dissolução ou liquidação, respeitados os preceitos que disciplinam a constituição e a inscrição do tipo em que vai converter-se. No âmbito do DREI, a transformação pode ser i) societária, quando ocorrer entre sociedade empresárias, nos termos dos arts. 1113 do Código Civil e 220 da Lei n° 6.404/1976 (LSA) ou ii) de registro, nos termos do art. 968, §3°, do Código Civil.

A possibilidade de transformação do empresário individual em sociedade empresária repercutiu nas hipóteses de dissolução da sociedade previstas no art. 1.033 do Código Civil. Antes de sua revogação em 2021, o parágrafo único do art. 1033 do Código Civil estabelecia que verificada a unipessoalidade societária em decorrência de direito de retirada, falecimento sem o ingresso de herdeiro, expulsão ou cessão de quotas, se o sócio remanescente não conseguisse reconstituir a pluralidade de sócios no prazo de 180 dias, ele poderia, como opção à dissolução da sociedade, requerer a transformação da sociedade empresária em empresário individual ou em EIRELI.

Ocorre que o parágrafo único do art. 1033 do Código Civil foi revogado pela Lei n° 14.195/2021, que também revogou o inciso IV do referido dispositivo legal. Em relação à sociedade limitada, a situação da unipessoalidade é solucionada em razão da possibilidade da constituição de sociedade limitada com um único sócio. Não obstante, não podemos esquecer que o Código Civil de 2002 prevê a existência de outras sociedades empresárias de menor repercussão, onde a pluralidade de sócios ainda constitui exigência legal e, com a alteração promovida, deixou de existir a previsão legal de dissolução decorrente da unipessoalidade durante a existência da sociedade.

A inovação introduzida no art. 968, §3º, encontra-se em consonância com as atuais exigências empresariais e tendência de desburocratização no desenvolvimento da atividade empresarial. A necessidade de admissão de novos sócios em razão do crescimento dos negócios explorados pelo empresário individual e a possibilidade da manutenção dos cadastros existentes pela agora permitida transformação em sociedade empresária certamente contribui para a reunião de novos investidores para fortalecer uma atividade que se mostrou rentável, permitindo o seu crescimento.

Por outro lado, não menos incomum é a unipessoalidade que se verifica em muitas sociedades, de forma que a possibilidade de continuidade da mesma atividade e com a manutenção dos cadastros existentes pelo sócio remanescente mediante a adoção de outro tipo jurídico empresarial sem a necessidade de dissolução da sociedade, mostra-se mais coerente e prestigia o princípio da preservação da empresa.

5.3.  Sociedades constituídas por incapazes

O art. 308 do Código Comercial de 1850 proibia os menores de fazerem parte de sociedade, quando herdeiros da participação societária. A lei vedou, assim, a participação de menores nas sociedades comerciais previstas no Código Comercial. Na década de 1970, apesar de ainda vigorar a proibição legal de participação de menor em decorrência de ato causa mortis, passou a predominar na jurisprudência a admissibilidade na sociedade limitada de sócio incapaz desde que presentes determinados requisitos, cuja exigência decorria do atendimento às normas civis de representação e também para a proteção do patrimônio do incapaz.

A partir de 1980 o Registro Público de Empresas passou a admitir o arquivamento referente às sociedades limitadas constituídas por incapaz, desde que atendidos os requisitos exigidos pela jurisprudência: o incapaz deveria ser representado ou assistido na forma da lei civil, o capital social deveria encontrar-se e permanecer totalmente integralizado e o incapaz não poderia exercer a administração da sociedade.

A orientação do antigo DNRC às Juntas Comerciais refletiu o entendimento do Superior Tribunal Federal. Assim, se o incapaz não é juridicamente apto para manifestar, por si só, a sua própria vontade, não há como lhe atribuir poderes para manifestar a vontade da sociedade. A exigência da integralização do capital social objetiva afastar do incapaz a regra da solidariedade entre os sócios pela parte que falta para a integralização do capital, mantendo o limite da sua responsabilidade ao montante investido na sociedade.  Em razão da incapacidade absoluta ou relativa, o incapaz deve ser representado ou assistido de acordo com as normas civis.

Em consonância com o entendimento jurisprudencial e respectiva orientação do antigo Departamento Nacional de Registro do Comércio, a Lei n° 12.399/2011 acrescentou o §3° ao art. 974 do Código Civil de 2002, que prevê:

“§3° – O Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais deverá registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, de forma conjunta, os seguintes pressupostos:

I – o sócio incapaz não pode exercer a administração da sociedade;

II – o capital deve ser totalmente integralizado;

III – o sócio relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente incapaz deve ser representado por seus representantes legais.”

Conforme se verifica, mediante o acréscimo do referido §3º, o Código Civil de 2002 passou a disciplinar a participação de incapazes nas sociedades contratuais de acordo com os critérios já adotados pelas Juntas Comerciais no país, de forma que a questão, até então tratada apenas no âmbito jurisprudencial e administrativo do Registro Público de Empresas, foi recepcionado pelo ordenamento jurídico, encontrando-se o tema devidamente positivado desde 2011 no âmbito do Código Civil de 2002.

5.4. Designação de administrador não sócio na sociedade limitada

Uma das inovações introduzidas pelo Código Civil 2002 foi a possibilidade de terceiros, não integrantes do quadro societário, exercerem a administração da sociedade limitada. Nos termos do art. 1060 do Código Civil, a designação de administrador pode ser feita no contrato social e também em ato separado, mas, de acordo com o seu parágrafo único, a administração atribuída no contrato a todos os sócios não se estende de pleno direito aos que posteriormente adquiriram essa qualidade.

Pela redação antiga do art. 1061, a designação de administrador não sócio na sociedade limitada exigia que o contrato social apresentasse previsão expressa nesse sentido, autorizando previamente a nomeação de administrador não sócio: “Se o contrato permitir administradores não sócios, a designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização.”

A redação atribuída ao dispositivo pela Lei n° 12.375/2010 afastou a necessidade de cláusula expressa no contrato social autorizando previamente a designação de terceiros para a administração societária: “A designação de administradores não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3 (dois terços), no mínimo, após a integralização.”

De acordo com a redação anterior, se o contrato social não autorizasse previamente a existência de administrador não sócio na sociedade, era necessário alterar o contrato social para incluir a cláusula permissiva, conforme art. 1071 c/c art. 1076 do Código Civil.

Com a alteração prevista, a designação de administrador não sócio independe de prévia autorização contratual, dependendo somente do atendimento aos quoruns legais e respectivas providências perante o Registro Público de Empresas para a formalização e eficácia da nomeação de terceiro para administrar a sociedade.

Recentemente, a Lei n° 14.451/2022 alterou novamente a redação do art. 1061 do Código Civil, que passou a apresentar a seguinte redação:

“Art. 1.061. A designação de administradores não sócios dependerá da aprovação de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e da aprovação de titulares de quotas correspondentes a mais da metade do capital social, após a integralização.” 

Referida lei também modificou o art. 1076 do Código Civil de 2022, excluindo o quórum de ¾ (três quartos) anteriormente previsto. De acordo com as alterações promovidas pela Lei n° 14.451/2022, a designação de administrador não sócio na Sociedade Limitada depende da vontade de 2/3 dos sócios quando o capital social não estiver totalmente integralizado e sócios representantes de mais da metade do capital social após a integralização total do capital social. No caso de administrador sócio nomeado no contrato social, a alteração do contrato social depende agora somente da vontade de sócio ou sócios representantes de mais da metade do capital social para a designação, visto que o quórum de ¾ (três quartos) foi excluído do art. 1076.

Desperta atenção na nova redação do art. 1061 a previsão do quórum mínimo de 2/3 “dos sócios”, que certamente causará divergências na aplicação do texto legal considerando a votação “por cabeça” ou a representatividade de acordo com a participação dos sócios no capital social.

5.5. Atividade rural e atividade futebolística: a possibilidade de opção pelo regime empresarial

De acordo com a sistemática do Código Civil, baseada na teoria da empresa, a empresarialidade do agente econômico decorre da exploração profissional da atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços (art. 966), podendo, por opção, aqueles que exercem atividade rural e futebolística, aderirem ao regime empresarial mediante o arquivamento na Junta Comercial (nas palavras do legislador, inscrição no Registro Público de Empresas).

A Lei n° 14.193/2021, que criou a Sociedade Anônima de Futebol – SAF, incluiu o parágrafo único ao art. 971, tornando possível o arquivamento na Junta Comercial da associação que desenvolva atividade futebolística em caráter “habitual e profissional”, para permitir, pela opção realizada, sua caracterização como empresária para todos os efeitos. Com disciplina diversa das sociedades anônimas disciplinadas pela Lei n° 6.404/1976, a Lei n° 14.193/2021 objetiva atribuir maior profissionalismo ao futebol no país.

Pela sistemática legal, o produtor rural – e agora a associação que desenvolva atividade futebolística em caráter profissional, possui a opção de ingressar no regime empresarial e, fazendo essa opção por meio do arquivamento na Junta Comercial, fica equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro. Qualificado como empresário, estará sujeito a todas as obrigações previstas aos empresários, sujeitando-se à falência e aos seus efeitos, inclusive no âmbito penal. Por outro lado, gozará de todos os benefícios previstos aos empresários, podendo requerer recuperação judicial e extrajudicial.

5.6. O fim da teoria ultra vires societatis no país

A sociedade, como pessoa jurídica de direito privado, precisa de uma pessoa natural para a manifestação da sua vontade, que corresponde ao administrador escolhido pelos sócios de acordo com as normas legais. O administrador da sociedade recebe poderes dos sócios para tornar presente a vontade da sociedade, contraindo obrigações e realizando os atos necessários ao desenvolvimento da atividade econômica, podendo a sociedade ter um ou mais administradores, com os poderes previstos e delimitados nos atos constitutivos.

A regra geral prevista no art. 1016 do Código Civil estabelece que os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados por culpa no desempenho de suas funções, de forma que se agirem com violação da lei ou do contrato social, ficarão os administradores responsáveis perante a sociedade e terceiros prejudicados. Na hipótese do terceiro demandar a sociedade e essa indenizá-lo, poderá a sociedade, pela via da ação regressiva proposta em face do mau administrador, pleitear a indenização pelos prejuízos sofridos.

Considerando os prejuízos causados às sociedades pelos atos praticados com excesso ou abuso de poder pelos administradores, surgiu na Inglaterra a teoria ultra vires societatis, que objetiva proteger a sociedade e os seus sócios dos atos dos maus administradores. Referida teoria foi recepcionada no parágrafo único do art. 1015 do Código Civil de 2002, que estabelecia que o excesso de poder decorrente de ato do administrador poderia ser oposto pela sociedade ao terceiro com o objetivo da sociedade eximir-se da responsabilidade decorrente do ato praticado indevidamente pelo seu administrador.

Para que isso fosse possível, o parágrafo único do art. 1015 exigia a verificação de uma das seguintes hipóteses: a) provar-se que a limitação do poder gerencial era conhecida pelo terceiro; b) encontrar-se a limitação dos poderes inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; c) tratar-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade, ou seja, ao seu objeto social.

As excludentes legais exigiam que todos os que viessem a contratar com uma sociedade tivessem o cuidado e a preocupação de verificar o seu ato constitutivo registrado ou, no caso de administrador nomeado em instrumento apartado, o respectivo ato averbado à margem da inscrição da sociedade para consultar o alcance, as condições e as limitações dos poderes conferidos aos administradores. Também deveriam verificar se a operação encontrava-se em consonância com o objeto social, visto que se fosse evidentemente estranha aos negócios da sociedade, o ato gerencial poderia tornar-se inimputável à pessoa jurídica, isentando-a da responsabilidade perante terceiro.

No âmbito dos Tribunais, o afastamento da responsabilidade da sociedade foi condicionada aos benefícios decorrentes do ato praticado com excesso de poder pelo seu administrador, caso em que a sociedade passaria a ter responsabilidade proporcional ao benefício experimentado (v.g. REsp 704.546/DF).

A aplicação da teoria ultra vires societatis sempre despertou muita resistência, sendo muitas vezes vista como uma proteção descabida aos sócios que elegeram mal o administrador da sociedade, protegendo a sociedade e os demais sócios em detrimento de terceiros de boa-fé, mostrando-se incompatível, inclusive, com a teoria da aparência, princípio da boa-fé objetiva e com o dinamismo contratual.

A teoria ultra vires foi abandonada em seu país de origem (Inglaterra) e também nos Estados Unidos. No Brasil a Lei n° 14.195/2021 revogou o parágrafo único do art. 1015, que previa as hipóteses de aplicação da teoria inglesa ultra vires societatis, afastando sua aplicação no país em benefício da evolução do Direito Empresarial e maior segurança do tráfego negocial.

Com o fim da teoria ultra vires societatis, em caso de excesso de poder do administrador mediante a prática de atos não autorizados ou que se afastam do objeto social, a sociedade fica vinculada à obrigação por ele contraída e será responsabilizada, ficando o administrador que agiu com excesso de poder, responsável perante a sociedade pelos prejuízos causados.

5.7. Destituição de administrador sócio nomeado no contrato social da sociedade limitada

Nas sociedades contratuais a hipótese mais comum de nomeação de administrador sócio é mediante previsão no contrato social, seja na constituição da sociedade  ou nas alterações contratuais ao longo de sua existência.

O administrador sócio nomeado no contrato social será eleito por sócio ou sócios titulares da maioria absoluta do capital (quorum exigido para a alteração do contrato social – art. 1076, II, CC 2002) e o designado em ato separado por sócio ou sócios representantes de mais da metade do capital (arts. 1071, II e 1076, II, CC 2002). Já o administrador não sócio, independentemente do instrumento de sua nomeação, deve ser escolhido pela vontade de 2/3 dos sócios, enquanto o capital social não estiver totalmente integralizado e, no mínimo, por sócio ou sócios detentores de mais da metade do capital social, após sua total integralização (art. 1061, CC 2002).

De acordo com o art. 1062, o administrador nomeado em ato separado será investido no cargo mediante termo de posse no Livro Atas da Administração. Caso o termo não seja assinado nos 30 dias seguintes à designação, essa se tornará sem efeito. Nos 10 dias seguintes ao da investidura, o administrador deve requerer a averbação de sua nomeação no registro competente, mencionando o seu nome, nacionalidade, estado civil, residência com exibição de documento de identidade, o ato de nomeação e o prazo de gestão. De acordo com o art. 1012, o próprio administrador nomeado em ato separado deve promover a averbação do instrumento à margem da inscrição da sociedade, respondendo pessoal e solidariamente com a sociedade pelos atos que praticar antes da averbação.

Nos termos do art. 1063 a designação dos administradores pode ser feita por tempo determinado ou indeterminado. Quando por tempo determinado, vencido o prazo, é necessário renovar o mandato ou escolher substituto. Em qualquer caso, como os administradores exercem função de confiança dos sócios podem ser destituídos a qualquer tempo, mesmo que o mandato seja por tempo determinado.

A Lei n° 13.792/2019 atribuiu nova redação ao §1° do art. 1063 para estabelecer que na hipótese de sócio administrador nomeado no contrato social da sociedade limitada, sua destituição somente será possível pela aprovação de sócios representantes de mais da metade do capital social (maioria absoluta), salvo disposição diversa no contrato social.

O legislador reduziu o quórum anteriormente previsto de 2/3 do capital social, mantendo a possibilidade de os sócios disciplinarem a questão no contrato social, ampliando ou reduzindo o quórum, dentre outras disposições referentes à questão. Na hipótese de administrador não sócio ou administrador sócio nomeado em ato separado, nos termos dos arts. 1071, III e 1076, II, do Código Civil, a destituição exige a vontade de sócio ou sócios titulares de mais da metade do capital social (maioria absoluta).

A destituição de administrador não sócio nomeado no contrato social exige a alteração contratual, existindo regra específica para a destituição dos administradores no art. 1071 que agora se encontra em consonância com o novo quórum geral da maioria absoluta para a alteração do contrato social destinada a destituição (arts. 1071, III, V e 1076, II, do Código Civil).

A alteração legal que reduziu o quórum para a destituição do sócio administrador nomeado no contrato social de 2/3 para mais da metade do capital social reduz a dificuldade imposta pela redação anterior da norma, ampliando a possibilidade da destituição extrajudicial do sócio administrador que pratica falta grave no exercício da administração societária, solucionando o problema no interesse dos demais sócios e da sociedade sem que se mostre necessária a destituição pela morosa via judicial.

5.8. A exclusão extrajudicial do sócio na sociedade limitada: art. 1085, CC 2002

Na sociedade limitada, o sócio que não cumpre suas obrigações perante os demais ou a sociedade pode ser excluído (expulso), de forma judicial ou até mesmo extrajudicial. A exclusão de sócio não decorre da discricionariedade da maioria societária, podendo ocorrer somente nas hipóteses legais:  i) sócio remisso – descumpre a obrigação de integralizar o capital social (art. 1004); ii) falta grave no cumprimento das obrigações de sócio (art. 1030); iii) por incapacidade superveniente (art. 1030); iv) em caso de falência do sócio (art. 1030); v) na hipótese de liquidação das quotas do sócio em execução de seus credores particulares nos termos do art. 1026, parágrafo único (art. 1030) e, vi) quando o sócio coloca em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade e o contrato social prevê a exclusão por justa causa (art 1085).

O art. 1030 do CC 2002 prevê que “Ressalvado o disposto no art. 1004 e seu parágrafo único, pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave do cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente”. O parágrafo único prevê que “será de pleno direito excluído o sócio declarado falido ou aquele cuja quota tenha sido liquidada nos termos do parágrafo único do art. 1026”.

A exclusão do sócio na sociedade limitada corresponde à resolução da relação contratual por culpa do contratante, de forma que o contrato social se resolve em relação a uma das partes sem afetar os demais vínculos plurilaterais. Haverá a correspondente redução do capital social caso não recomposta a parte do sócio excluído. A exclusão causa a dissolução parcial da sociedade limitada, que permanece com os demais sócios ou com o sócio remanescente.

O caput do art. 1085 prevê que “Ressalvado o disposto no art. 1030, quando a maioria dos demais sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa.” Conforme se verifica, a expulsão extrajudicial de sócio na hipótese prevista no art. 1085 exige previsão específica no contrato social referente à expulsão de sócio por justa causa, ou seja, se o contrato social não apresentar referida cláusula permissiva, essa hipótese de exclusão não pode se efetivar.

Encontrando-se prevista referida cláusula no contrato social, os sócios titulares de mais da metade do capital social, diante de elementos que comprovem que o sócio objeto da exclusão praticou ato que coloca em risco a continuidade da empresa, em virtude de inegável gravidade, devem convocar reunião ou assembleia específica para a análise e deliberação do caso, assegurando ciência ao acusado em tempo hábil para permitir o seu comparecimento e o exercício do direito de defesa.

É condição de validade do ato que seja dada ciência em tempo hábil ao acusado da convocação para que ele possa comparecer e, querendo, defender-se. Realizada a reunião ou assembleia e aprovada a exclusão pelos votos dos sócios representantes de mais da metade do capital social, deve-se elaborar o instrumento de alteração do contrato social, excluindo o sócio e, proceder ao seu arquivamento na Junta Comercial, com os correspondentes documentos, aperfeiçoando-se, assim, a exclusão extrajudicial.

A Lei n° 13192/2019 alterou a redação do parágrafo único do art. 1085, dispensando a convocação da reunião ou assembleia para a e exclusão de sócio quando a sociedade for constituída por apenas dois sócios. A nova redação dispõe que “Ressalvado o caso em que haja apenas dois sócios na sociedade, a exclusão de um sócio somente poderá ser determinada em reunião ou assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil para permitir seu comparecimento e o exercício do direito de defesa.”

Conforme se verifica, a alteração realizada dispensa a necessidade de convocação da reunião ou assembleia para a expulsão de um sócio nas sociedades limitadas constituídas por apenas dois sócios, visto que nessa hipótese de expulsão extrajudicial o legislador considerou desnecessária a realização de uma reunião ou assembleia para a apresentação de defesa do acusado ao único sócio que pleiteou sua exclusão. No caso, resta ao sócio excluído buscar no âmbito judicial o reconhecimento do seu direito de ser reintegrado à sociedade limitada e obter o ressarcimento pelos eventuais prejuízos decorrentes da exclusão, na hipótese de não existir a comprovação da justa causa que motivou sua exclusão.

5.9. A consolidação do alcance da definição do estabelecimento empresarial

O Código Civil de 2002 proporcionou um grande avanço ao instituto jurídico do estabelecimento empresarial ao discipliná-lo de forma específica pela primeira vez no país. O tratamento legal atribuído à azienda pode ser conferido no Título III, denominado “Do Estabelecimento”, em um Capítulo Único que apresenta disposições gerais referentes ao instituto nos arts. 1.142 a 1.149, correspondendo a um dos pontos de destaque da legislação de 2002.

O estabelecimento empresarial é frequentemente relacionado ao local onde o empresário exerce a atividade econômica. Essa noção vulgar não corresponde à definição jurídica de estabelecimento, que não se resume ao local de desenvolvimento da empresa, apresentando uma definição bem mais ampla que o simples local de exploração da atividade econômica. O art. 1.142 do Código Civil define estabelecimento nos seguintes termos:

“Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.

A definição legal de estabelecimento presente no Código Civil brasileiro é baseada no Codice Civile italiano de 1942, conforme se observa pela leitura do seu art. 2.555, in verbis:

“Art. 2555. Nozione. – L’azienda è il complesso dei beni organizzati dall’imprenditore per l’esercizio dell’impresa (2082)”

A Medida Provisória n° 1085/2021 acrescentou três parágrafos ao art. 1142, ressaltando que por constituir um conjunto de bens, não se confunde com o local onde o empresário exerce a atividade, podendo ser físico ou virtual (§1°), hipótese em que o endereço informado para fins de registro poderá ser o endereço do empresário individual ou de um dos sócios da sociedade empresária (§2°). Quando o estabelecimento for físico, o §3° prevê que a fixação do horário de funcionamento é de competência do Município, observada o disposto no art. 3º, II, da Lei n° 13.874,2019.

5.10. Afastamento da obrigatoriedade da indicação do objeto social na denominação das sociedades por ações

O nome empresarial no país encontra-se disciplinado nos arts. 1155 a 1168 do Código Civil, podendo ser da espécie firma ou denominação. A firma é constituída pelo nome civil do empresário individual ou dos sócios da sociedade em nome coletivo, sociedade limitada,  sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações, observadas as formalidades legais. Já a denominação é composta pelo elemento fantasia, que corresponde a uma expressão comum ou vulgar da língua nacional ou estrangeira, sendo utilizada obrigatoriamente pela sociedade anônima e, por opção, pela sociedade limitada e pela sociedade em comandita por ações.

Com o surgimento do Código Civil, passou a ser obrigatória a indicação do objeto social na denominação. A Medida Provisória n° 1085/2021 promoveu alterações na formação do nome empresarial, afastando a obrigatoriedade da indicação do objeto social na denominação das sociedades por ações, modificando a redação do art. 1160 para tornar facultativa a designação do objeto social na denominação da sociedade anônima e do art. 1161 para facultar a designação do objeto social na denominação da sociedade em comandita por ações.

Em relação ao nome empresarial, destaca-se ainda que a Lei n° 14.195/2021 incluiu o art. 35-A na Lei n° 8934/1994 (Lei de Registro Público de Empresas) para permitir que o empresário ou a sociedade empresária utilizem o número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) como nome empresarial, seguido da identificação do tipo societário ou jurídico, quando exigida por lei.

6. O Código Civil de 2002 em 2022: maior dinamicidade e desburocratização no desenvolvimento da atividade econômica

A dinamicidade das normas empresariais, conforme demonstrado pela história do Direito Empresarial brasileiro, motivou importantes alterações no Livro II – Do Direito de Empresa ao longo dos vinte anos de existência do Código Civil de 2002. Paralelamente, importantes leis especiais de natureza empresarial surgiram e já foram atualizadas (v.g. nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, Estatuto Nacional da ME e da EPP), houve a criação da Sociedade Anônima Futebolística – SAF pela Lei n° 14.193/2021 e outras leis empresariais vigentes sofreram alterações (Lei de Registro Público de Empresas – Lei n° 8.934/1994, Lei das Sociedades Anônimas –Lei n° 6.404/1976 e Lei da Propriedade Industrial – Lei n° 9.279/1996).

Nesse contexto, a Lei n ° 14.195/2021, objetivando o aprimoramento do ambiente de negócios às novas exigências mundiais, introduziu importantes alterações no direito societário brasileiro, criando inovações destinadas a facilitar a abertura de empresas no país, com destaque para a digitalização dos procedimentos. Referida lei também buscou a proteção dos acionistas minoritários ao ampliar seu poder de decisão em determinadas matérias, além de ajustar a Lei das Sociedades Anônimas às boas práticas de governança corporativa, mostrando-se nítida a busca pela desburocratização empresarial ao permitir, por exemplo, a realização de assembleias gerais por meios eletrônicos.

O surgimento de novas leis empresariais e as frequentes alterações nas leis de natureza empresarial vigentes, com destaque para a Lei n° 14.195/2021, demonstram a dinamicidade das normas jurídicas empresariais para o atendimento das necessidades do meio empresarial, identificando-se que as alterações promovidas nos últimos anos apresentam fortes traços desburocratizantes, que sinalizam para a consolidação de um novo período do Direito Empresarial no país.


[1] O futuro do direito comercial e o novo Código Civil brasileiro. Revista EM TEMPO. Vol. IV, p. 98-109, agosto de 2002, Marília, SP.

Quanto às regras de Direito Empresarial o Código Civil atual 2002 adotou a teoria dos atos de comércio ou a teoria da empresa?

Qual foi a teoria adotada pelo Código Civil de 2002 em relação ao direito empresarial?

A teoria da empresa foi adotada pelo Novo Código Civil (NCC) - Lei 10.406/2002, substituindo então a teoria dos atos de comércio.

Qual teoria é adotada no direito empresarial?

A Teoria da Empresa é utilizada para identificar o empresário e a atividade empresarial, baseando a aplicação de normas específicas para estes atores jurídicos. Surgiu no direito brasileiro com Código Civil de 2002, fruto das contínuas transformações comerciais.

Quais as principais mudanças que ocorreram no direito empresarial entre os anos de 2002?

Em relação ao Direito Empresarial a grande evolução proporcionada pelo Código Civil de 2002 foi a introdução da teoria da empresa nas suas normas fundamentais e a consequente revogação da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, permitindo a superação da teoria dos atos de comércio e a harmonização do tratamento ...

O que afirma a teoria dos atos de comércio?

A teoria dos atos de comércio foi adotada pelo Código Comercial de 1850. Por esta concepção, as atividades comerciais estavam sujeitas a um regime jurídico próprio e diferenciado do aplicável para outras atividades econômicas.